Voz do Associado qui, 14 de julho de 2022
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Por: Marcelo Cheli de Lima,
Procurador do Município de Limeira/SP

  1. INTRODUÇÃO

A responsabilidade civil do Estado é um dos assuntos mais candentes do direito, porquanto, não obstante o teor do § 6º do art. 37 da Constituição prever a responsabilidade sem culpa (objetiva) do Estado como regra geral, há situações que exigem maiores reflexões, v.g., a responsabilidade do Estado no desempenho de atribuições de intervenção na economia.

A Constituição autoriza o Estado a intervir, direta e indiretamente, na ordem econômica, destarte, diante de tal autorização, o Estado poderia ser responsabilizado pela prática de atos destinados a regular, por exemplo, determinado setor da economia? Em caso afirmativo, quais são os pressupostos que dão ensejo ao dever de indenizar? Seriam os mesmos pressupostos para caracterização da responsabilidade objetiva do Estado (conduta, dano e nexo de causalidade)? 

Este artigo pretende responder as questões supracitadas, mas, em primeiro lugar, a análise delas não prescinde de breve investigação histórica acerca da responsabilidade civil do Estado, posições do Estado no domínio econômico e o estabelecimento das formas de intervenção estatal na economia. 

Para elucidar os questionamentos acima citados, o presente artigo analisará o que diz a melhor doutrina, que fixou parâmetros para legitima incidência do instituto da responsabilidade civil do Estado por intervenção no domínio econômico e, conforme será visto, o dever de indenizar do Estado, nesse caso, não depende apenas dos pressupostos comuns que dão ensejo ao dever de indenizar (conduta, dano e nexo de causalidade). 

Ademais, dois casos práticos, decididos em última instância pelo Supremo Tribunal Federal (STF), foram selecionados para compreensão de qual o entendimento jurisdicional sedimentado pela jurisprudência acerca da responsabilidade civil do Estado por intervenção na ordem econômica: os casos Varig (congelamento de preços) e Destilaria Alto Alegre (tabelamento de preço).        

  1. DA IRRESPONSABILIDADE ESTATAL À RESPONSABILIDADE PÚBLICA

A possibilidade de responsabilização do Estado pela prática de atos, desde que ocorra algum dano ao particular, é a realidade dos Estados modernos, no entanto, ao longo da história, vigorou a irresponsabilidade estatal como corolário do desequilíbrio nas relações entre o Poder Público e os administrados. 

A respeito, Sérgio Severo ensina que, por longo período, constatou-se a irresponsabilidade do Estado que era uma das consequências do desequilíbrio das relações entre o Estado e os particulares:     

A máxima the king can do no wrong, que identifica o representante da soberania (o rei, no caso), excluindo do Estado a responsabilidade por atos que possam causar dano a particulares, em contraposição a um sistema de imposição estatal perante os súditos, demonstra que, por um longo período, prevaleceu um regime de desequilíbrio nas relações entre o Poder Público e o indivíduo, ainda vislumbrado como súdito e não como cidadão, em face da fragilidade que antecede a consagração dos direitos fundamentais, especialmente por consagrar uma radical transformação, com a afirmação da responsabilidade pública, a superação da irresponsabilidade estatal e o estabelecimento dos lineamentos gerais de tal instituto.      

A histórica teoria da irresponsabilidade estatal, portanto, tinha como fundamentos a ideia de que o rei ou o Estado não erravam e o notório desequilíbrio de poder que marcava as relações entre o Poder Público e os particulares (noção de soberania que não admite a igualdade entre o Estado e o súdito). Na mesma linha de raciocínio, Yussef Said Cahali identifica três fundamentos da teoria da irresponsabilidade absoluta do Estado: 

1) uma noção de soberania que não admite a igualdade entre o Estado e o súdito, sendo impossível a responsabilidade do soberano perante este; 

2) uma concepção de que o direito representa o Estado soberano, não podendo aparecer como violador daquele; consequentemente, 

3) os atos ilegais praticados por funcionários não seriam identificados como atos estatais, por eles respondendo os funcionários, em nome próprio.   

A derrocada do período de irresponsabilidade do Estado se encetou no século XIX, a partir da jurisprudência do Conselho de Estado francês, portanto, conforme ressalta Sérgio Severo: “o exame sob a ótica do direito comparado demonstra que a superação da irresponsabilidade estatal é um fenômeno jurisprudencial, gradual e contemporâneo nos ordenamentos jurídicos da família romano-germânica”

O surgimento da responsabilidade pública foi, destarte, uma reação contra o Estado absolutista, conforme escólios de Almiro do Couto e Silva

No século XIX a reação contra o Estado era notada, na medida em que em sua figura estavam identificadas a força e o arbítrio herdados das monarquias absolutas, posição excepcionada por Hegel, que considerava na figura estatal a via de superação do indivíduo e uma forma de realização da liberdade plena do ser humano, mas não tinha, contudo, o condão de afetar a concepção social no sentido de frear ou mesmo erradicar o poder do Leviatã. 

Tal reação (tardia) contra o absolutismo, revelou-se quase um século após a revolução em França de 1789 e consolidou o modelo liberal de Estado, gerando um forte mecanismo de controle do poder estatal, ampliando as respostas jurídicas ante a ação estatal que gerasse danos as pessoas

O Estado que até então agia irresponsavelmente passou a ser responsável, em casos pontuais, sempre que houvesse previsão legal específica para imputar-lhe algum tipo de responsabilidade

Posteriormente, a responsabilidade do Estado evoluiu para teoria da responsabilidade com culpa (teoria civilista), ou seja, o dever de indenizar surgirá desde que haja comprovação da prática de ato ilícito evidenciado o nexo de causalidade entre a conduta (dolosa ou culposa) atribuída ao Estado e o efetivo prejuízo acarretado ao particular. 

É possível identificar uma variação da teoria civilista, denominada pela doutrina de culpa anônima ou falta do serviço. Para tal variante, a responsabilidade do Estado prescinde da identificação, pelo particular prejudicado, do agente público responsável pela prática do ato. Para fins de caracterização da responsabilidade civil informada pela ideia de culpa anônima ou falta do serviço, José dos Santos Carvalho Filho ensina: 

A falta do serviço podia consumar-se de três maneiras: a inexistência do serviço, o mau funcionamento do serviço ou o retardamento do serviço. Em qualquer dessas formas, a falta do serviço implicava o reconhecimento da existência de culpa, ainda que atribuída ao serviço da Administração. Por esse motivo, para que o lesado pudesse exercer seu direito à reparação dos prejuízos, era necessário que comprovasse o fato danoso se originava do mau funcionamento do serviço e que, em consequência, teria o Estado atuado culposamente. Cabia-lhe, ainda, o ônus de provar o elemento culpa.       

A evolução da teoria da responsabilidade do Estado não estacionou no modelo de responsabilidade por culpa, porquanto se desenhava a ideia, mais uma vez na jurisprudência francesa, de responsabilidade estatal informada pela teoria do risco, ou seja, o dever de indenizar do Estado surgirá independentemente da existência de culpa (teoria objetiva). 

A teoria da responsabilidade por culpa, inicialmente, não foi rechaçada completamente pela teoria da responsabilidade objetiva, conforme pondera Maria Sylvia Zanella Di Pietro, ademais a doutrinadora aponta que a teoria da responsabilidade sem culpa tem por fundamento a igualdade de todos perante os encargos sociais, in litteris:   

Sem abandonar essa teoria, o Conselho de Estado francês passou a adotar, em determinadas hipóteses, a teoria do risco, que serve de fundamento para a responsabilidade objetiva do Estado.

Essa doutrina baseia-se no princípio da igualdade de todos perante os encargos sociais e encontra raízes no artigo 13 da Declaração dos Direitos do Homem, de 1789, segundo o qual “para a manutenção da força pública e para as despesas de administração é indispensável uma contribuição comum que deve ser dividida entre os cidadãos de acordo com as suas possibilidades”. O princípio significa que, assim como os benefícios decorrentes da atuação estatal repartem-se por todos, também os prejuízos sofridos por alguns membros da sociedade devem ser repartidos. Quando uma pessoa sofre um ônus maior do que o suportado pelas demais, rompe-se o equilíbrio que necessariamente deve haver entre os encargos sociais; para restabelecer esse equilíbrio, o Estado deve indenizar o prejudicado, utilizando recursos do erário.

Atualmente, a posição adotada por parte significativa dos Estados modernos é a que prestigia, em regra, a teoria da responsabilidade objetiva do Estado, adotada, inclusive, no Brasil, nos termos do § 6º do art. 37 da Constituição da Federal.

A evolução histórica do instituto da responsabilidade civil, portanto, transita por longo período de irresponsabilidade estatal, até o regime de responsabilização pública, este último, conforme arremata Sérgio Severo, se deu em fases distintas, a saber: (a) falta do serviço; (b) risco administrativo; e, (c) teoria do risco integral.    

  1. RESPONSABILIDADE CIVIL: CONCEITO, ESPÉCIES E PRESSUPOSTOS

O vocábulo responsabilidade possui várias acepções, no entanto, não são todas úteis para fins de compreensão do instituto da responsabilidade do Estado. Interessa, para os fins pretendidos neste artigo, a acepção jurídica, portanto, a responsabilidade é a “condição jurídica de quem, sendo considerado capaz de conhecer e entender as regras e leis e de determinar as próprias ações, pode ser julgado e punido pelos seus atos”.

A responsabilidade civil estatal, portanto, pode ser conceituada como a possibilidade jurídica do Estado ser compelido a indenizar prejuízos efetivamente suportados pelos particulares, desde que resultantes de suas ações ou omissões.

Segundo Flávio Tartuce, a responsabilidade civil: “surge em face do descumprimento obrigacional, pela desobediência de uma regra estabelecida em um contrato, ou por deixar determinada pessoa de observar um preceito normativo que regula a vida”

É possível concluir, portanto, que a responsabilidade civil encontra supedâneo no princípio neminem laedere, isto é, a fórmula, surgida em Roma, que recomenda às pessoas agir de forma a não lesar os direitos de outrem.

Acerca das espécies de responsabilidade civil do Estado, pode-se identificar quatro espécies, a saber: subjetiva, objetiva, contratual e extracontratual. 

A responsabilidade subjetiva não prescinde do elemento culpa (em sentido amplo), isto é, não lhe basta apenas a conduta, o nexo de causalidade e o dano, porquanto é necessário a presença do dolo ou culpa (em sentido estreito). O Estado responde com base na responsabilidade civil subjetiva, como regra geral, por condutas omissivas. 

A responsabilidade objetiva, por sua vez, é a responsabilidade sem culpa, informada pela teoria do risco, ou seja, para caracterização do dever de indenizar, basta a presença dos seguintes pressupostos: conduta, dano e nexo de causalidade. Tal espécie de responsabilidade, conforme prevê o § 6º do art. 37 da Constituição, é a regra geral no que tange à responsabilidade civil do Estado. 

O Estado poderá responder, ainda, por danos causados aos particulares pelo descumprimento de obrigações contratuais; neste caso, tem-se a chamada responsabilidade civil contratual. Lado outro, quando o dever de indenizar não deriva do descumprimento de normas jurídicas contratuais, estar-se diante da responsabilidade extracontratual ou aquiliana. 

A doutrina evidencia que quatro são os pressupostos (elementos) essenciais da responsabilidade civil (subjetiva): a ação ou omissão, culpa ou dolo do agente, relação de causalidade e o dano experimentado pela vítima. 

Não se pode olvidar que, como regra, a responsabilidade civil do Estado é objetiva, portanto, a culpa não é requisito indispensável ao surgimento do dever de indenizar, portanto, são pressupostos da responsabilização objetiva do Estado: conduta (ação ou omissão), nexo de causalidade e dano. 

  1. ORDEM ECONÔMICA: CONCEITO

A “ordem econômica” é disciplina pela Constituição em título próprio (VII) que é dividido em quatro capítulos: dos princípios gerais da atividade econômica, da política urbana, da política agrícola e fundiária e da reforma agrária e do sistema financeiro nacional.

A ordem econômica pode ser conceituada, de acordo com Leonardo Vizeu de Figueiredo, como “as disposições constitucionais estabelecidas para disciplinar o processo de interferência do Estado na condução da vida econômica da Nação, mormente nas atividades geradoras de rendas e riquezas”.

Em outra definição, partindo de premissas extraídas da sociologia (sociologia econômica), Max Weber aponta que a expressão “ordem econômica” deve ser empregada para expressar situações advindas da combinação de dois fatores: a forma pelo qual o poder é distribuído sobre os bens de consumo e a forma pela qual esses produtos são utilizados em virtude deste poder: 

A sociologia econômica, por outro lado, contempla as interconexões de atividades humanas à medida que vão acontecendo e que são condicionadas e orientadas à “situação econômica dos fatos”. Devemos, portanto, usar o termo “ordem econômica” para situações advindas da combinação de dois fatores: primeiro, a forma pela qual o poder factual é distribuído sobre produtos e serviços econômicos, à medida que eles emergem do processo de estabilização de interesses conflitantes; e, segundo, a forma pela qual esses produtos e serviços são realmente usados em virtude desse poder e das intenções subjacentes. 

Ainda, segundo o autor, a expressão ordem econômica não pode ser confundida com a ordem jurídica, pois esta não está diretamente ligada com o mundo da conduta econômica real, porquanto situada no plano do dever-ser:

A “ordem jurídica” ideal da teoria jurídica não está diretamente ligada com o mundo da conduta econômica real, pois ambas existem em níveis diferentes. Uma existe na esfera do ideal do “dever”, enquanto a outra, no mundo real do “ser”. Se apesar disso for dito que uma ordem econômica e uma jurídica estão ligadas intimamente uma a outra, a última será entendida, não no sentido legal, mas no sentido sociológico, como sendo empiricamente válida. (grifo do autor). 

  

A visão weberiana nitidamente distingue a ordem econômica da ordem jurídica, indicando que esta está situada no plano ideal (dever-ser) e aquela no mundo do ser. Tal distinção é sobremodo relevante, pois pode contribuir para apartarmos as situações em que há emprego da referida expressão. Vital Moreira, por exemplo, identifica três sentidos para ela, a saber: (a) sentido de fato; (b) sentido normativo; e, (c) sentido jurídico: 

Em um primeiro sentido, “ordem econômica” é o modo de ser empírico de uma determinada economia concreta; a expressão, aqui, é termo de um conceito de fato e não de um conceito normativo ou de valor (é conceito do mundo do ser, portanto); o que o caracteriza é a circunstância de referir-se não há um conjunto de regras ou normas reguladoras de relações sociais, mas sim a uma relação entre fenômenos econômicos concretos; conceito do mundo do ser, exprime a realidade de uma inerente articulação do econômico como fato. 

(...)

Em um segundo sentido, “ordem econômica” é expressão que designa o conjunto de todas as normas (ou regras de conduta), qualquer que seja sua natureza (jurídica, religiosa, moral etc.), que respeitam à regulação do comportamento dos sujeitos econômicos; é o sistema normativo (no sentido sociológico) da ação econômica. 

(...)

Em um terceiro sentido, “ordem econômica” significa ordem jurídica da economia.  

    

Não obstante o esforço dos dois autores supracitados no estabelecimento de critérios seguros de distinção, este artigo adotará os escólios de Eros Roberto Grau, cuja posição consiste na afirmação de que a ordem econômica é mera parcela da ordem jurídica:

Ainda que se oponha à ordem jurídica a ordem econômica, a última expressão é usada para referir uma parcela da ordem jurídica. Esta, então – tomada como sistema de princípios e regras jurídicas – compreenderia uma ordem pública, uma ordem privada, uma ordem econômica, uma ordem social.  

A responsabilidade civil do Estado por intervenção no domínio econômico não prescinde da compreensão do conceito de ordem econômica, porquanto, as normas jurídicas que compõem o conceito é que darão ensejo à atuação estatal no domínio econômico, conforme determina o princípio da legalidade previsto no caput do art. 37 da Constituição.    

  

4.1 POSICIONAMENTO ECONÔMICO ESTATAL: ESTADO LIBERAL, INTERVENCIONISTA OU REGULADOR

O posicionamento econômico estatal, isto é, a forma de intervenção no domínio econômico, dar-se-á de acordo com o modelo que é adotado por um determinado Estado. Existem, basicamente, três modelos distintos de posicionamento econômico adotado por um Estado, a saber: liberal, intervencionista e regulador. 

O Estado liberal, no plano econômico, é fruto da doutrina de Adam Smith, o filósofo escocês defendia que a harmonia social seria alcançada por meio da liberdade de mercado, aliando-se a persecução do interesse privado dos agentes econômicos a um ambiente concorrencialmente equilibrado. Por meio do devido processo competitivo, os agentes mais aptos iriam se sobressair sobre os menos eficientes, sendo estes naturalmente eliminados. Desta feita, em um mercado onde os participantes estão em constante disputa para atrair maior número de consumidores, estes experimentam os benefícios da competição, tendo à disposição produtos e bens qualitativamente diferenciados, por preços cada vez menores, garantindo, assim, a maximização de seu nível de bem-estar social e econômico.       

O modelo liberal de Estado se funda na liberdade de mercado, na qual o modo de produção está sujeito, tão somente, à auto-organização (autorregulação) da economia, não sofrendo quaisquer influências ou interferências estatais, uma vez que, ao Estado competiria, apenas, a manutenção da ordem interna e a defesa externa das fronteiras.  

A experiência liberal não foi bem-sucedida, porquanto a capacidade de autorregulação do mercado se mostrou bastante deficiente e incapaz de “proteger o modo de produção capitalista dos capitalistas”, ademais, do ponto de vista social, o paradigma liberal contribuiu para criação de países cada vez mais desiguais, inclusive, do ponto de vista econômico, não foi capaz de aumentar as taxas de crescimento.  

O declínio do Estado liberal, pelas razões expostas, impulsionou a ascensão de outro paradigma de posição econômica estatal, que surge como alternativa àquele modelo qual seja: o Estado intervencionista econômico.

No modelo intervencionista, o Estado atuará com o escopo de garantir o exercício racional das liberdades individuais, especialmente àquelas de matiz econômicas. Tal modelo, não tem pretensões de ignorar completamente os postulados liberais, mas, apenas, defende a atuação estatal para coibir o exercício desmedido e pernicioso das ideias liberais.

Na dicção de Leonardo Vizeu Figueiredo, o modelo intervencionista econômico recebeu forte influência da doutrina de John Maynard Keynes, especialmente das lições extraídas da obra Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. Neste livro, Keynes demonstra que o nível de emprego e, por consequência, de desenvolvimento socioeconômico de uma nação, é influenciado pelas políticas públicas desenvolvidas pelo Estado e por certos fatores macroeconômicos.  

O modelo de Estado intervencionista desdobra-se, conforme o grau de intervenção estatal no domínio econômico, em três espécies: (a) modelo intervencionista econômico; (b) modelo intervencionista social; e (c) modelo intervencionista socialista. 

No modelo intervencionista econômico, não se constata maiores preocupações com questões sociais, porquanto seria papel do Estado, tão somente, atuar para garantir a livre iniciativa e a liberdade de concorrência, coibindo práticas perniciosas como, v.g., a formação de cartéis, a prática de truste entre outras. 

No intervencionismo social, o escopo é a atuação estatal na implementação de políticas públicas com o fito de prover, em suas necessidades vitais, a parcela da população mais vulnerável. Este modelo difere do modelo intervencionista econômico, porque, além da atuação colimando a defesa das liberdades de iniciativa e concorrência, há preocupação com as demandas sociais, portanto, deverá o Estado atuar positivamente na implementação dos direitos sociais (saúde, educação, emprego, moradia, lazer, transporte, previdência, assistência social etc.). 

O paradigma socialista, sem entrar em pormenores, é a forma mais intensa do modelo de Estado intervencionista. Neste modelo, toda produção de bens é controlada pelo Estado que será o responsável pelo estabelecimento do plano econômico que será determinante para o Estado e, igualmente, para os particulares. 

Karl Marx, principal teórico do socialismo, pregava que o proletariado usasse sua supremacia política para arrancar pouco a pouco todo o capital da burguesia, a fim de centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado em classe dominante e a fim de aumentar o mais rapidamente possível a massa das forças produtivas.  

Os escólios de Leonardo Vizeu Figueiredo são profícuos para o processo de compreensão das peculiaridades do Estado intervencionista socialista, para o autor este padrão tem como fundamentos uma política econômica planificada, a supremacia do Estado na administração da economia, a inexistência de propriedade privada dos bens de produção: 

É a forma intervencionista máxima do Estado, uma vez que este adota uma política econômica planificada, baseada na valorização do coletivo sobre o individual. O Poder Público passa a ser o centro exclusivo para deliberações referentes à economia. Baseia-se em teorias de organização econômica, que defendem: a) a supremacia do Estado na administração; b) a propriedade pública e coletiva dos meios de produção; c) a distribuição de bens, garantindo uma sociedade caracterizada pela igualdade de oportunidades e meios para todos os indivíduos, com um método igualitário de compensação e nivelamento das diferenças pessoais.

Os bens de produção são apropriados coletivamente pela sociedade por meio do Estado, de modo que este passa a ser o único produtor, vendedor e empregador. A livre-concorrência e a liberdade de mercado são literalmente substituídas pelo planejamento econômico racional e centralizado em torno do Poder Público, rejeitando-se, sistematicamente, a autonomia das decisões privadas. 

No plano econômico baseia-se na teoria da planificação proposta por Lênin, defendida por Trotsky, operacionalizada e mantida por Stalin. A planificação se trata de medida de total intervenção do Estado, no qual o Poder Público se torna o único centro de decisões econômicas.  

Os experimentos socialistas não foram bem-sucedidos. Grosso modo, os Estados que adotaram o paradigma intervencionista socialista não foram capazes de atender a diversidade das necessidades individuais, ademais não foram capazes de suprir o abastecimento interno e a economia popular, porquanto a planificação da economia teve como resultado a limitação da circulação e do acesso aos bens de consumo.    

Por fim, o Estado regulador, na dicção de Fernando Dias Menezes de Almeida, relaciona-se a dois fatores: (a) necessidade de redução da atuação direta do Estado em matéria de serviços públicos e de sua intervenção direta explorando atividades econômicas e (b) necessidade de ampliação da atuação estatal indireta em relação às atividades econômicas em sentido amplo, zelando pela observância dos princípios da ordem econômica. 

A adoção do paradigma de Estado regulador pode representar a contribuição mais útil para um Estado que decide retirar-se da intervenção econômica direta (por meio da prestação de uma gama bastante variada de serviços) para sua função de organizador das relações sociais e econômicas e que, por outro lado, reconhece ser para tanto insuficiente o mero e passivo exercício de um poder de polícia sobre os mercados.  

O Estado regulador, portanto, difere do Estado intervencionista, porquanto pressupõe uma intervenção indireta na atividade econômica, exercida pelo Estado por meio das funções, v.g., de fiscalização e normatização.  

Há duas escolas de pensamento que servem de supedâneo ao Estado regulador: escola do interesse público e escola neoclássica ou econômica. 

Para escola do interesse público a adoção de qualquer forma de regulação da atividade econômica nada tem a ver com a necessidade de preservação do mercado, pois o escopo primordial é a preservação do interesse público.

A escola neoclássica ou econômica opera com dois pontos fundamentais: a negação de qualquer fundamento de interesse público na regulação da atividade econômica e a afirmação do objetivo de substituição ou correção do mercado mediante a regulação. Na verdade, esta teoria crê poder prever os resultados e, consequentemente, indicar os fins da atividade econômica. A regulação serve apenas como substituto do mercado. O regulador é ou deveria ser capaz de “reproduzir um mercado em laboratório” ou, melhor dizendo, nos gráficos de oferta e demanda. Evidentemente, porque baseada na crença cega no mercado, para tal teoria a regulação só será necessária enquanto não existir solução de mercado mais eficiente.

Concluída, mesmo que brevemente, a análise dos modelos estatais de intervenção na economia, é preciso definir quais são as formas de intervenção do Estado na atividade econômica. Para tanto, a compreensão do tema não prescinde da compreensão dos modelos de intervenção apresentados neste subitem.   

4.2 FORMAS DE INTERVENÇÃO DO ESTADO NA ORDEM ECONÔMICA

A atuação do Estado no processo de intervenção na ordem econômica assume, basicamente, duas formas distintas: Estado como agente executor e Estado como agente regulador. 

O Estado agente executor opera no domínio econômico por meio de intervenções diretas, ou seja, atua executando atividades que, normalmente, são desempenhadas pela iniciativa privada. Esta modalidade de intervenção pode assumir duas espécies: exploração direta e indireta, esta pressupõe a criação de empresas estatais (empresa pública ou sociedade de economia mista), por meio do processo de descentralização administrativa, que estarão incumbidas da intervenção; por sua vez, na exploração direta, o próprio Estado é o responsável pela intervenção por meio de seus órgãos (processo de desconcentração administrativa). 

Não se pode olvidar que, de acordo com o caput do art. 173 da Constituição Federal, ressalvados os casos nela previstos, o Estado somente poderá explorar diretamente atividade econômica quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou relevante interesse coletivo, portanto, é vedado ao Estado, v.g., criar uma empresa estatal que seria utilizada como hipermercado, porque ausente relevante interesse coletivo ou imperativo de segurança nacional. 

Outra forma de intervenção do Estado na ordem econômica ocorre por meio do processo de regulação (intervenção indireta), pois, conforme recorda Eros Roberto Grau, o capitalismo reclama não o afastamento do Estado dos mercados, mas sim a atuação estatal, reguladora, a serviço dos interesses do mercado, pois não há dúvida em relação à circunstância de que os processos econômicos capitalistas demandam regulação. O mercado não seria possível sem um ordenamento jurídico capaz de protegê-lo.   

O Estado regulador opera por meios indiretos, especialmente mediante normas jurídicas que pretendem disciplinar a conduta dos agentes econômicos. Nas palavras de José dos Santos Carvalho Filho, o “Estado regulador é aquele que, através de regime interventivo, se incumbe de estabelecer as regras disciplinadoras da ordem econômica com o objetivo de ajustá-las aos ditames da justiça social”

A forma reguladora de intervenção indireta do Estado na ordem econômica encontra espeque no caput do art. 174 da Constituição: “Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”. 

Na posição de agente normativo, o Estado cria as normas jurídicas que se destinam a regular as relações humanas advindas do exercício da atividade econômica. Outras formas de atuação são: fiscalização, incentivo e planejamento. A fiscalização implica a verificação dos setores econômicos, cujo escopo é evitar comportamentos abusivos. O incentivo representa o estímulo que o governo deve oferecer para o desenvolvimento econômico e social do país, fixando medidas como isenções fiscais, aumento de alíquotas para importação, a abertura de créditos especiais para o setor produtivo agrícolas e outras do gênero. Finalmente, o planejamento consiste no estabelecimento de metas a serem alcançadas pelo governo no ramo da economia em determinado período futuro; o planejamento econômico estatal é determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. 

A Constituição brasileira optou, como regra, pela forma indireta de intervenção do Estado na ordem econômica (modelo de Estado regulador), tal afirmação pode ser haurida do teor dos arts. 173 e 174, no entanto, não é defeso ao Estado atuar diretamente por meio de intervenção direta, excepcionalmente, desde que demonstrados os imperativos da segurança nacional ou o relevante interesse coletivo.  

  

  1. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR INTERVENÇÃO NO DOMÍNIMO ECONÔMICO

5.1 POSIÇÃO DOUTRINÁRIA

A lei maior, conforme já dito, autorizou o Estado a intervir na ordem econômica, seja direta ou indiretamente. Perante tal constatação indaga-se: é possível imputar ao Estado o dever de indenizar danos acarretados aos particulares decorrentes de sua atuação no domínio econômico?

O Estado exercerá, como agente regulador (intervenção indireta), de acordo com o texto constitucional, as funções de normatização e regulação, por meio de fiscalização, incentivo e planejamento.

Como agente normativo, caberá ao Estado – mediante leis (complementares, ordinárias, delegadas, medidas provisórias) e atos normativos das mais variadas espécies – a regulação da atividade econômica. Pela atuação indireta no domínio econômico, o Estado poderá ser responsabilizado civilmente, desde que edite leis inconstitucionais ou caso expeça atos normativos inconstitucionais ou ilegais. 

Acerca da atuação do Estado no domínio econômico por meio da edição de leis, a doutrina exige o preenchimento de dois pressupostos para sua caracterização: a ocorrência de dano específico à vítima e a declaração de inconstitucionalidade da lei pelo Poder Judiciário. 

A demonstração do dano específico à vítima (dano efetivo e não presumido) é exigido, porque, caso contrário, qualquer lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, por exemplo, daria ensejo à indenização.

O outro pressuposto (declaração de inconstitucionalidade) justifica-se em razão da presunção juris tantum de constitucionalidade das leis, portanto, o dever de o Estado indenizar não prescinde da declaração de inconstitucionalidade da lei geradora do dano pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle difuso ou concentrado de constitucionalidade. 

A exigência de declaração de inconstitucionalidade, no entanto, não será exigida quando o Estado, pretendo regular a atividade econômica, edite lei de efeitos concretos (leis materialmente administrativas), porquanto o conteúdo destas leis é de verdadeiro ato administrativo: 

Com relação às leis de efeitos concretos (também chamadas de leis materialmente administrativas), que atingem pessoas determinadas, incide a responsabilidade do Estado, porque, como elas fogem às características da generalidade e abstração inerentes aos atos normativos, acabam por acarretar ônus não suportado pelos demais membros da coletividade. A lei de efeito concreto, embora promulgada pelo Legislativo, com obediência ao processo de elaboração das leis, constitui, quanto ao conteúdo, verdadeiro ato administrativo, gerando, portanto, os mesmos efeitos que este quando cause prejuízo ao administrado, independentemente de considerações sobre a sua constitucionalidade ou não. Incide, nesse caso, o princípio da repartição dos encargos sociais, como fundamento da responsabilidade civil do Estado.

Vale dizer que, em se tratando de lei de efeitos concretos, aceita-se a responsabilidade do Estado mesmo que ela seja constitucional

Destarte, há duas regras distintas, a depender da espécie de lei editada, para caracterização da responsabilidade civil do Estado pela edição de leis para regular atividades econômicas: 

1ª no caso de edição de leis gerais e abstratas, o Estado responderá pelos danos causados, desde que haja declaração de inconstitucionalidade da lei e dano específico ao particular; 

2ª no caso de edição de leis de efeitos concretos, não será necessária a declaração de inconstitucionalidade da lei, porquanto tais leis têm conteúdo de ato administrativo, bastando, para o dever de indenizar, a demonstração efetiva do dano.    

O entendimento adotado em relação às leis inconstitucionais pode ser utilizado, pelos mesmos fundamentos, para os regulamentos do Poder Executivo e para os atos normativos das agências reguladoras e de outros entes que exerçam competência normativa no âmbito da Administração Pública, não só quando sejam inconstitucionais, mas também quando sejam ilegais, por exorbitarem dos limites de sua competência regulamentar, contrariando normas de hierarquia superior. Só que, no caso de ilegalidade, não há necessidade de prévia apreciação judicial. A indenização pode ser pleiteada, tendo por fundamento a ilegalidade do ato normativo do Poder Executivo ou dos entes reguladores.

Compete ao Estado, igualmente, mediante o exercício do poder de polícia, fiscalizar os agentes econômicos. No desempenho desta função, o Estado também poderá ser responsabilizado civilmente, desde que no exercício da fiscalização viole normas jurídicas e cause danos ao particular.

Não se pode olvidar que, além dos pressupostos específicos para responsabilidade civil do Estado por intervenção no domínio econômico, é fundamental que os demais requisitos que dão ensejo ao dever de indenizar estejam presentes, portanto, é possível concluir que os pressupostos para responsabilizar o Estado civilmente por intervenção no domínio econômico são, no caso de leis (exceto leis de efeito concreto): conduta, nexo de causalidade, dano específico e declaração de inconstitucionalidade da lei pelo Poder Judiciário; e, no caso de leis de efeito concreto, atos normativos (decretos, resoluções, portarias, circulares etc.) e exercício do poder de polícia (fiscalização): conduta, nexo de causalidade, dano específico e, somente se for o caso, reconhecimento da inconstitucionalidade ou ilegalidade do ato normativo.   

 

5.2 A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

5.2.1 O caso Varig 

Aos vinte e seis dias do mês de fevereiro do ano de 1993, a Viação Aérea Rio-Grandense (Varig) propôs ação indenizatória contra União em razão de prejuízos resultantes da política de congelamento tarifário que vigorou no Brasil do mês de outubro de 1985 até janeiro de 1992, instituída, inicialmente, pelo denominado “Plano Cruzado”.

A sociedade empresária afirmou que a insuficiência tarifária decorrente do referido plano adotado no país provocou grande endividamento de seu capital de giro, situação agravada pela política de juros elevados praticada pelo governo federal, juros estes que oneravam sobremodo o valor dos financiamentos obtidos pela sociedade empresária que foram contraídos em razão das perdas decorrentes do congelamento tarifário. 

A Varig pretendia a condenação da ré ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo de concessão de serviço público celebrado com a própria União, além de indenização por perdas e danos (danos emergentes e lucros cessantes). 

A ação proposta pela Varig foi julgada procedente, reconhecida, pela justiça federal de primeiro grau, a quebra do equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo decorrente da intervenção do Estado no domínio econômico. 

A União interpôs recurso de apelação e, antes da apreciação das razões pelo Tribunal Regional Federal da primeira região (TRF-1), o Ministério Público Federal (MPF) manifestou-se pelo provimento do recurso da União, alegando, basicamente, que o Estado não poderia ser responsabilizado por ato legislativo que institui plano econômico, porquanto tais atos têm por apanágio a generalidade, porque todos os membros da sociedade, sem distinção, devem suportá-los. O recurso da União foi provido parcialmente, porém mantido o dever de indenizar pelos danos econômicos suportados pela Varig. 

O MPF, contra o acórdão prolatado pelo TRF-1, interpôs recurso extraordinário afirmando que a mera redução ou perda de receita, decorrente de defasagem verificada nas tarifas de transporte aéreo por ato da autoridade pública (decretos de congelamento de preços), não é suficiente para caracterizar, por si, desequilíbrio econômico e financeiro do contrato de concessão, de ‘caráter especial’, nem impõe ao poder concedente a obrigação de indenizar à concessionária por alegado dano econômico. A Procuradoria Geral da República (PGR) manifestou-se pelo provimento do recurso, pois os danos econômicos suportados pela Varig decorreram de políticas públicas cujo escopo era o equilíbrio das contas públicas, além de que afetou a todos indistintamente, não havendo se falar em responsabilidade da União.

O STF decidiu, por maioria, vencidos os Ministros Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes, negar provimento ao recurso do MPF. Prevaleceu o entendimento exarado no voto da relatora, Ministra Cármen Lúcia, que reconheceu, no caso, a responsabilidade objetiva do Estado, informada pela teoria do risco administrativo. 

O voto vencedor restou claro de que se tratava de responsabilidade civil do Estado pela prática de ato lícito, porquanto o congelamento dos preços das tarifas aéreas tinha supedâneo no art. 5º do decreto n. 91.149/1985. Ademais, o voto da relatora baseou-se, basicamente, na responsabilidade objetiva do Estado (§ 6º, art. 37, CF) e no dever de manutenção das condições efetivas da proposta (inc. XXI, art. 37, CF): 

O princípio constitucional da estabilidade econômico-financeira do contrato administrativo é uma das expressões jurídicas do princípio da segurança jurídica, por ele se buscando conferir estabilidade àquele ajuste, como é a natureza do contrato de concessão, garantindo-se à empresa-contratada, tanto quanto possível, a permanência das circunstâncias e das expectativas que a animaram a assumir a execução, por sua conta e risco [mas no interesse público], de atribuições que competem a pessoa jurídica de direito público.

A preocupação com a qualidade na prestação da atividade concedida (no caso a exploração do serviço de transporte aéreo), impõe, pelo surgimento de fatos e circunstâncias mesmo jurídicas, como se dá na espécie, que possam romper a mantença das condições pactuadas, a adoção de medidas garantidoras do reequilíbrio da equação econômico-financeira do contrato, o que pode se dar por meio da repactuação, do reajuste, da revisão e da indenização.

(...)    

Questão sujeita ao exame da matéria nesta fase recursal é se a atuação lícita, de efeitos gerais e abstratos, do Poder Público teria o condão de impor o reconhecimento jurídico da responsabilidade da entidade estatal, que atuou, segundo lei fixando os parâmetros e as medidas de atuação, de modo a gerar o seu dever de impor-se a indenização à empresa concessionária de serviço público pelo desequilíbrio contratual comprovado. 

Não há muito tempo, a Segunda Turma deste Supremo Tribunal Federal defrontou-se com questão similar no julgamento do Recurso Extraordinário n. 422.941 (Relator o Ministro Carlos Velloso, DJ 24.3.2006). Cuidava-se de saber se se figurava o dever da União em indenizar empresa sucro-alcooleira pela fixação de preços dos seus produtos em valores inferiores aos custos de produção.

Entendeu-se, então, que os danos patrimoniais gerados pela intervenção estatal no setor imporiam a indenização, tendo-se em vista a adoção, no Brasil, da teoria da responsabilidade objetiva do Estado com base no risco administrativo, bastando, assim, configuração do dano e a verificação do nexo de causalidade entre ele e a ação estatal.

O Ministro Luís Roberto Barroso acompanhou a relatora e destacou que a Varig era à época concessionária de serviço público que exercia suas atividades nos termos de contrato administrativo celebrado, este previa regras para a fixação de tarifas que não poderiam ser violadas pela União, independentemente da generalidade da política pública adotada

Acompanharam a relatora, igualmente, os Ministros: Rosa Weber, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski. Foram impedidos de julgar os Ministros Teori Zavascki e Luiz Fux, ausente o Ministro Dias Toffoli. 

Os Ministros Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes divergiram do entendimento da relatora, porquanto, o congelamento de preços não afetou de maneira exclusiva autora da demanda, pois os corolários do ajuste recaíram em muitos setores da economia, bem como suportado por todos os cidadãos. O Ministro Joaquim Barbosa ponderou, ainda, que considerado o caráter geral buscados pelas medidas de controle da economia e a absoluta excepcionalidade da responsabilidade do Estado por atos legislativos de caráter geral, o dever de indenizar não estava configurado. 

Nos moldes do que foi dito em tópico próprio, a doutrina tem reconhecido a possibilidade de o Estado responder, v.g., pela edição de atos legislativos, desde que inconstitucionais. No entanto, o entendimento sufragado pelo STF no acórdão prolatado no caso Varig, na dicção da própria relatora, reconheceu que se tratava de responsabilidade civil decorrente da prática de ato lícito (responsabilidade objetiva), baseada na teoria do risco administrativo, portanto, seria irrelevante, para a maioria dos Ministros, ponderar se a intervenção da União na ordem econômica, no caso apreciado, teve caráter geral e abstrato.       

5.2.2 O caso Destilaria Alto Alegre

A destilaria Alto Alegre propôs ação indenizatória em face da União pleiteando indenização pelos prejuízos advindos da intervenção do Poder Público no domínio econômico, que resultou na fixação de preços, no setor sucroalcooleiro, abaixo dos valores apurados e propostos pelo Instituto Nacional do Açúcar e do Álcool. 

A justiça federal do Distrito Federal julgou procedente a ação proposta reconhecendo o dever de indenizar da União diante dos danos econômicos suportados pela iniciativa privada que foram decorrentes do tabelamento de preços no setor.  

A condenação foi mantida pelo TRF-1, porquanto este tribunal decidiu pela responsabilidade objetiva do Estado no caso, cravando que o governo federal não pode estabelecer uma política que cause prejuízo aos particulares, de tal maneira que possa levá-los à falência, e assim, o Estado responde pelos danos causados, nos termos do § 6º do art. 37 da Constituição.

A União interpôs recurso especial destinado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e obteve êxito na reforma do acórdão prolatado pelo TRF-1. Destaca-se, do voto da relatora, Ministra Nancy Andrighi, como razões de reforma: (i) a legitimidade do Estado para intervir no domínio econômico impondo restrições na liberdade de formação dos preços praticados no mercado, (ii) os preços fixados pelo Estado observaram os dispositivos legais correlatos e (iii) o exercício da atividade estatal de intervenção no domínio econômico não está vinculada ao levantamento de preços efetuados por órgão técnico de sua estrutura ou terceiros contratados, porque se trata de atuação discricionária do Estado: 

O Estado, como agente normativo e regulador não se impõe ao mercado para dominá-lo. Não o dirige, apenas vela que a livre iniciativa e a valorização do trabalho humano ocorram nos quadros dos princípios constitucionais. Consequentemente, em casos excepcionais, quando a ocorrência de certas anomalias é capaz de pôr em risco o próprio fundamento da atividade econômica livre, pode o agente-Estado promover a imposição de restrições na espontaneidade contingente do mercado na formação dos preços justamente com o objetivo de salvaguardá-la. Isto, obviamente, como exceção e jamais como regra, pois restringir regularmente não e fiscalizar, mas dirigir a economia, ainda que em termos setoriais.          

(...)

Com efeito, é reconhecido o poder do Estado, observado os princípios constitucionais, de intervir na fixação de preços públicos. Releva observar se, para o setor sucro- alcooleiro, os preços dos produtos foram fixados com observância dos critérios ditados pelos arts. 9º , 10 e 11 da Lei n.° 4.870/65, do que se dessumi que o critério era legal, e mais se aos referidos critérios devem ser agregados outros elementos que não os inseridos expressamente na Lei n.° 4.870/65.

(...)

Conclui-se pela improcedência do pedido de indenização, porque o exercício da atividade estatal, na intervenção no domínio econômico, não está jungido, vinculado, ao levantamento de preços efetuado por órgão técnico de sua estrutura administrativa ou terceiro contratado para esse fim específico; isto porque há discricionariedade do Estado na adequação das necessidades públicas ao contexto econômico estatal, eis que, no caso em tela, era necessária a conjugação de critérios essencialmente técnicos com a valoração de outros elementos de economia pública.

Contra o acórdão prolatado pelo STJ, a autora da demanda interpôs recurso extraordinário por ofensa ao § 6º do art. 37 da Constituição. O recurso foi distribuído à segunda turma, cuja relatoria coube ao Ministro Carlos Velloso, e foi provido, reconhecendo o direito de a destilaria ser indenizada pelos prejuízos suportados em razão da intervenção do Estado no domínio econômico. 

Na dicção do relator, o texto constitucional autoriza a intervenção do Estado na economia, por meio da regulação e regulamentação de setores econômicos; no entanto, o exercício de tal prerrogativa deve se ajustar aos princípios e fundamentos da ordem econômica. Destarte, a faculdade atribuída ao Estado de criar normas jurídicas de intervenção na economia não autoriza a violação ao princípio da livre iniciativa. 

O Ministro relator consignou, ainda, que o dever de indenizar do Estado, no caso, decorre do dano causado e independe de desobediência à lei específica, pois a intervenção estatal no domínio econômico encontra seus lindes no princípio constitucional da livre iniciativa, e o dever de indenizar decorre da existência de dano atribuído à atuação do Estado (responsabilidade objetiva). 

Na visão do Ministro Joaquim Barbosa, o governo federal, quando interveio no setor sucroalcooleiro para regular a concorrência e fixar os preços finais de venda dos produtos, o fez de forma desarrazoada, porquanto impôs aos produtos preços menores que aqueles necessários ao custeio da produção. Ademais, na dicção do Ministro, não pode o Estado, sob o pretexto de intervir na ordem econômica, suprimir integralmente a liberdade de concorrência e de livre iniciativa dos particulares sem que haja razoabilidade nessa medida.

Portanto, neste caso, aplicou-se a teoria da responsabilidade civil objetiva do Estado por intervenção no domínio econômico, nos termos do voto do relator, registre-se, no entanto, os fundamentos apresentados pelo Ministro Joaquim Barbosa que considerou a atuação do Poder Executivo Federal desarrazoada (ilegal), porquanto os preços tabelados foram fixados aquém do preço de custo de produção. Tal posição, é mais adequada ao posicionamento doutrinário, porquanto exige inconstitucionalidade ou ilegalidade dos atos infralegais expedidos pelo Estado no exercício das atribuições de agente regulador.    

  1. CONCLUSÃO

A responsabilidade civil do Estado, ao longo da história, passou por lenta e gradativa evolução, pois, inicialmente, por longo período, vigorou a irresponsabilidade estatal. No entanto, na segunda metade do século XIX, o instituto passou por grande evolução com a adoção da responsabilidade por culpa (subjetiva) e, ulteriormente, para responsabilidade baseada na teoria do risco (objetiva). 

O Estado responderá, portanto, por condutas (ações ou omissões) praticadas por seus prepostos, desde que tal conduta seja responsável por ocasionar danos aos particulares, entrementes, não são todos os atos atribuídos ao Estado que são indenizáveis, destarte, cabe indagar se a atuação estatal no domínio econômico pode dar ensejo ao dever de indenizar. 

O Estado pode assumir algumas posturas em relação a sua atuação na ordem econômica, tais posturas pressupõe desde nenhuma intervenção (paradigma liberal) até a postura em que o Poder Público se apropria dos bens de produção (paradigma intervencionista socialista). A compreensão do posicionamento estatal perante a economia é imprescindível para definir se haverá ou não o dever de indenizar. 

Conforme a posição doutrinária, o Estado responderá como agente regulador da ordem econômica, desde que edite leis inconstitucionais ou atos normativos infralegais inconstitucionais ou ilegais. Na primeira hipótese (leis gerais e abstratas), o dever de indenizar não prescinde da declaração de inconstitucionalidade da lei pelo STF e da demonstração do dano específico, sem os quais não há se falar em qualquer indenização. Na segunda hipótese (leis de efeitos concretos e atos infralegais), a doutrina entende que o dever de indenizar não dependerá da declaração de inconstitucionalidade da lei de efeitos concretos ou do ato infralegal, mas da demonstração de dano específico, além dos demais elementos (conduta, dano e nexo causal). 

Os precedentes selecionados do STF (casos Varig e Destilaria Alto Alegre) consolidam o posicionamento jurisprudencial de que o Estado responde objetivamente pelos danos causados aos particulares por sua atuação como agente regulador (intervenção indireta) da atividade econômica. Nos dois precedentes analisados, a maioria dos Ministros da suprema corte advogaram a tese de que a responsabilidade estatal por intervenção no domínio econômico pode ocorrer, independentemente da prática de ato ilícito pelo Estado, desde que haja dano efetivo aos particulares (responsabilidade objetiva, fundada na teoria do risco administrativo), nos termos do § 6º do art. 37 da Constituição.

No entanto, no julgamento do caso Valrig, destacam-se, pois substanciosos, os argumentos deduzidos pelo Ministro Joaquim Barbosa, pois se coadunam com a melhor doutrina que advoga a tese acerca da excepcionalidade da responsabilidade civil do Estado pela edição de atos legislativos e infralegais (incluindo-se aqueles atos que pretendem disciplinar a atividade econômica). 

Concito-vos a refletir sobre o seguinte: o Estado, mediante atuação geral e abstrata no domínio econômico, deve responder objetivamente, em qualquer caso, por eventuais danos suportados por setor específico da economia eventualmente prejudicado pela política pública? Não parece razoável, porquanto todos os particulares devem suportar os ônus socioeconômicos de eventuais medidas adotadas, desde que não violem a Constituição ou a lei. 

        

       

       

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