Voz do Associado qui, 14 de maio de 2020
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Por: Fernando Couto Garcia, procurador do Município de Belo Horizonte, publicado no dia 13 de abril pelo Conjur.

A Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, aprovada no início deste ano para dispor "sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019", previu, em seu artigo 3º, VII, a possibilidade de "requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa".

A despeito de a Constituição previr a requisição de "propriedade particular" (artigo 5º, XXV), silenciando sobre a possibilidade da incidência do instituto acerca de serviços, essa não é uma novidade no ordenamento jurídico brasileiro.

A requisição de "bens ou serviços essenciais ao abastecimento da população" foi prevista no artigo 1º do Decreto-lei nº 2/1966 e a requisição de bens e serviços essenciais à continuidade das atividades de assistência social de interesse da população foi instituída no artigo 25 da Lei 6.439/1977. Contudo, era possível interpretar a referência desses dois diplomas legais a "requisição de serviços" como assunção imediata e urgente, pelo Poder Público, de atividades que vinham sendo prestadas por particulares, de modo similar a uma intervenção, por exemplo, em um hospital privado ou um centro de distribuição de alimentos.

No âmbito da vigilância epidemiológica, a requisição de serviços parece atingir uma dimensão ainda inédita em termos de restrição a direitos fundamentais: a prestação obrigatória de serviços profissionais por pessoas físicas, sem qualquer vínculo de trabalho ou previsão sobre quando será paga a indenização posterior. Essa possibilidade se infere não apenas do já citado dispositivo da Lei 13.979/2020, mas, de modo até mais preciso, da Lei Orgânica do Sistema Único de Saúde (Lei nº 8.080/1990), cujo artigo 15, XIII, estabelece que, "para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias, a autoridade competente da esfera administrativa correspondente poderá requisitar bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de jurídicas".

Essa interpretação da Lei 13.979/2020 parece ter sido adotada pelo Ministério da Saúde na Portaria nº 356, de 11 de março deste ano, cujo artigo 7º reitera a possibilidade de requisição de serviços de pessoas físicas, e sobretudo na Portaria nº 639, de 31 de março de 2020, que cria um "cadastro geral de profissionais da área de saúde, de caráter instrumental e consultivo, visando [a] auxiliar os gestores federais, estaduais, distritais e municipais do Sistema Único de Saúde (SUS) nas ações de enfrentamento à Covid-19".

A requisição de serviços profissionais para pagamento posterior por indenização de valor desconhecido e data de vencimento a ser fixada pelo requisitante é incompatível com a Constituição por três razões: (I) constitui a criação de uma hipótese de serviço obrigatório, o que a Constituição só admite para fins militares (artigo 143); (II) constitui trabalho forçado, o que a Constituição não admite nem mesmo como pena a criminosos condenados (artigo 5º, XLVII), muito menos na hipótese de pessoas que não praticaram crime algum; (III) extrapola até mesmo as medidas excepcionais possíveis no Estado de Sítio, que incluem a "requisição de bens" (artigo 139, VII), mas não a requisição de serviços de pessoas físicas.

O próprio Ministério da Saúde parece intuir a dificuldade de levar à frente tais medidas, pois a única consequência de eventual recusa de cadastramento pelos profissionais de saúde é informar o fato ao conselho profissional que regulamenta a profissão (artigo 4º da Portaria nº 639/2020), que, por sua vez, não poderá punir qualquer profissional por essa razão.

Caso se pretenda a instituição de uma obrigação cívica ampla e drástica como essa, é indispensável que o Senado Federal delibere sobre a Proposta de Emenda Constitucional nº 36, de 2011, de autoria do senador Humberto Costa e outros, que "institui o serviço civil obrigatório para egressos dos cursos de graduação das profissões de saúde regulamentadas". Sem alterar a Constituição, contudo, não será possível fazê-lo.

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