Voz do Associado qua, 12 de julho de 2023
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Por: Bernardo Bastos,  Diretor de Comunicação da ANPM, e

Alberto Balazeiro,  Ministro do Tribunal Superior do Trabalho.

Publicado pelo Conjur no dia 11 de julho de 2023.

Desde o movimento ludita do início do século 19 na Inglaterra, quando se atribui a Ned Ludd a destruição de máquinas têxteis em um ato de revolta contra o avanço técnico até, muito anos após, por ocasião dos debates constituintes brasileiros de 1988, ao se reconhecer os efeitos de redução de empregabilidade decorrentes da mecanização em um país de monoculturas regionais como o café ou cana-de-açúcar, sempre se atestou a influência das transformações tecnológicas no mundo trabalho e a necessidade de se reforçar as estruturas de proteção social.

Talvez o grande debate no momento resida na profundidade e no alcance dessas transformações frente aos desenvolvimentos na área da inteligência artificial (IA) — notadamente na sua velocidade e nas profissões e quantitativos de trabalhadores atingidos pelas.

A inteligência artificial é objeto de estudo de cientistas da computação de forma sistemática desde a década de 1950 — notadamente a partir da Conferência de Dartmouth, realizada no verão de 1956, no Dartmouth College, New Hampshire nos Estados Unidos. Embora o tema não seja absolutamente recente, tem havido uma crescente preocupação com a aplicação dessa tecnologia.

Sabe-se que antes do estudo sistematizado das últimas setenta décadas, considerações sobre a inteligência artificial podem ser rastreadas até antiguidade, com fez Pierre Marquis[1] e seus colegas ao compilarem contribuições de Aristóteles, Abu Bishr Matta ibn Yunus e Thomas Bayes. Por certo, o que Marquis buscou identificar nessas experiências passadas foram os elementos básicos da inteligência artificial, como os preciso conceitos da lógica e da matemática que são a base para essa tecnologia.

Do período em que o termo cotidiano foi cunhado, a computação avançou a passos largos. Ocorre que o avanço dos equipamentos (hardwares) — seguindo a Lei de Moore que previu, em 1965, com surpreendente grau de acerto, que a capacidade de processamento duplicaria a cada dois anos — ocorreu de forma mais notada que o avanço da programação ou dos softwares.  E aqui reside o assombro do momento.

É que as aplicações que usam inteligência artificial nos últimos anos evidenciam um salto exatamente das peças de programação (softwares). Embora os modelos de linguagem sejam a faceta da IA que mais impressiona — suscitando debates sobre inteligências similares às humanas — a verdade é que a IA é uma tecnologia com diversas aplicações além do processamento de linguagem natural (PLN, na sigla em inglês). Outros ramos da IA incluem por exemplo o processamento de imagens (visão computacional) e análise de dados massivos (big data) tendem a ser amplamente aplicados em todos os processos computacionais. Ademais, há ainda ramos que incluem o aprendizado de máquina, a robótica, os sistemas especialistas e as redes neurais.

Nos últimos anos — e, com maior ênfase, nos últimos meses, com a popularização de aplicativos como o ChatGPT — tem sido crescentes os debates sobre as ferramentas que utilizam IA. A diferença é que agora as discussões não se centram apenas na admiração ou nos benefícios dessas aplicações, tendo como cerne, em realidade, o receio dos efeitos deletérios da IA na sociedade. Uma pesquisa no Google Trends, serviço que mede o quanto um termo é usado na internet, revela que a busca por "inteligência artificial" dobrou de setembro de 2022 a julho de 2023.

Para que se tenha uma breve noção da enorme preocupação com o desenvolvimento da inteligência artificial, em maio passado, trezentos e cinquenta cientistas e executivos de tecnologia lançaram um manifesto alertando sobre os perigos existenciais dessa tecnologia. Chegaram a afirmar que "mitigar o risco de extinção pela IA deve ser uma prioridade global, juntamente com outros riscos de escala societal, como pandemias e guerra nuclear".

Pouco antes, empresários da área de tecnologia como Elon Musk (Tesla) e Steve Wozniak (co-fundador da Apple) pediram uma moratória de seis meses no desenvolvimento de sistemas avançados de IA.

É bem verdade que a preocupação vai muito além do mercado de trabalho, chegando a se cogitar em risco existencial para a humanidade, a exemplo de outra tecnologia que se começou a desenvolver uma década antes: a energia nuclear.

Filósofos, cientistas, engenheiros e empresários se filiam a previsões de que a inteligência artificial possa conduzir a uma superconectividade — conhecida como inteligência artificial geral — ou mesmo cruzar um ponto específico chamado de singularidade[2]. Para os cientistas da computação a singularidade trará mudanças sociais e históricas de tamanha relevância que sequer poderíamos entender do ponto de vista do presente. Ray Kurzweil,  festejado autor de "A Singularidade está Próxima"[3], chega  a afirmar que a singularidade seria um ponto futuro no qual o progresso tecnológico acelerado levará a mudanças radicais e imprevisíveis na sociedade humana.

A questão nodal é que em um horizonte muito mais curto — como a atual fase de assombro com o ChatGPT — algumas implicações, com os efeitos no mercado de trabalho já são prementes.

A relação entre inovações e o mercado de trabalho sempre foi observada de perto. Hoje são bastante diminutos os contingentes de datilógrafos e telefonistas — ocupações relativamente comuns no passado. A digitalização levou ao sumiço das revelações de fotografias, do telex e do fax.

Mas quais seriam as profissões vulneradas pela IA?

Há receios de que trabalhadores da indústria de publicidade sofram com o dall-e, sistema capaz de gerar imagens com requinte artístico seguindo instruções textuais [4].

Outros profissionais frequentemente citados são trabalhadores da indústria manufatureira, bem como o pessoal alocado nas atividades de atendimento ao consumidor — já em grande escala substituídos por chatbots e assistentes virtuais baseados em IA que não se comparam com os primeiros sistemas baseados em voz e que tinham uma marguem de acerto tão reduzida que foram descontinuados — ou, ainda, motoristas, notadamente nos EUA onde os avanços com veículos autônomos e sistemas de entrega autônomos já deixaram de ser previsões futuristas, dentre outras.

Um aspecto menos abordado, contudo, parece ser o impacto da IA nas chamadas profissões mais qualificadas.

É referenciado que a engenharia, em suas diversas áreas, costuma selecionar pessoas com alta capacidade analítica e raciocínio matemático para formar profissionais capazes de projetar aplicações técnicas, de pontes a robôs da indústria automobilística, passando pela produção de alimentos industriais, pela produção agrícola, aeronáutica, e a geração e distribuição de energia. A questão é que as atividades de projeto vêm sendo desempenhadas com qualidade cada vez maior por sistemas de IA.

E o que dizer da atividade de desenvolvimento dos próprios softwares? Paradoxalmente, essa é uma das funções da IA consideradas mais bem sucedidas, exatamente a redação de algoritmos de programação.

Habitualmente os avanços tecnológicos que vulneram trabalhos precários são discutidos com cerne na preocupação em se manter emprego e renda, e a médio e a longo prazo, com o objetivo de que esses avanços possibilitem a requalificação das pessoas para atividades, cujo labor seja socialmente mais valorizado, tais como o trabalho de médicos, advogados, servidores públicos. Mas ainda são poucas as reflexões concernentes à incidência da IA sobre esses trabalhos para os quais se exigem maior qualificação técnica formal.

Profissões de nível superior costumam ter profissionais orgulhosos da alegada complexidade de seus trabalhos. Mas não é absurdo cogitar que parte do trabalho desempenhado por profissionais da área jurídica e médica sejam atingidos por sistemas que desempenhem essas atividades de forma idêntica — talvez não com a mesma qualidade, mas certamente de forma satisfatória diante de sistemas cada vez mais massivos.

O tema causa ainda maior preocupação quando se percebe em nosso país uma tendência à compreensão de que as profissões tidas por mais qualificadas resultariam em maior carga de autonomia e, por essa razão, não necessitariam do manancial de proteção do direito do trabalho.

Com efeito, sob o argumento de maior autonomia, há que se ter em mente que a guinada de utilização das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) no mundo do trabalho tem servido como novo instrumento para o esgarçamento das condições de trabalho nas profissões mais qualificadas e, especialmente, nos trabalhos precários. É o que se visualiza, sem grandes dificuldades, em trabalhos tais como aqueles realizados integralmente em regime de home office e nos intermediados por plataformas digitais, nos quais, via de regra, os trabalhadores arcam com os custos para a execução do trabalho — o que não se verifica em trabalhos regulados por normas jurídico-trabalhistas.

Não fosse isso, é atribuída a Neils Bohr a sentença precisa e irônica de que é muito difícil fazer previsões, especialmente para o futuro. Mas nos arriscando um pouco, não nos parece haver no horizonte próximo — ou, ao menos esperamos que não haja — o risco de que a IA se traduza em um cenário digno da ficção científica de cinema, em que haja completa dominação dos homens pelas máquinas. Todavia, sem a ousadia de conceber uma singularidade, podemos prever um reequilíbrio nas preocupações de futuro entre as chamadas profissões mais qualificadas e as menos qualificadas.

Há um quarto de século, Domenico de Masi, de grande e singular repercussão no Brasil, propunha um futuro do trabalho na era pós-industrial onde as pessoas poderiam focar nos trabalhos mais criativos e qualificados[5]. Atualmente, os mais entusiastas da IA defendem uma era de abundância e prosperidade com a mesma promessa de um futuro com mais tempo livre e melhor qualidade de vida. Nessa nova equação, entrementes, a ideia de se dedicar às atividades intelectuais e mais criativas pode não ser tão promissora.

A substituição de parte da mão de obra na lavoura de cana-de-açúcar por maquinário agrícola não pode ser acusada de uma deterioração da qualidade do trabalho. Isso porque o trabalho nessa área já era tido como precarizado, como regra geral. Por outro lado, essa tendência demandou — e ainda demanda — debates sobre reposicionamento profissional, qualificação e geração de políticas de inclusão social através de programas de renda mínima [6].

Uma eventual escassez na demanda por engenheiros, artistas, programadores e operadores do direito teria de ser enfrentada por outros tipos de medidas.

A propósito, na 111ª Conferência Anual da Organização Internacional do Trabalho, realizada em junho de 2023, foi aprovada resolução sobre a segunda discussão recorrente acerca da proteção dos trabalhadores, aludindo expressamente à necessidade de se avaliar os impactos da inteligência artificial e do gerenciamento algoritmo para esse escopo protetivo.

De modo especifico, ali compreendeu-se que a Organização Internacional do Trabalho deve intensificar suas atividades de desenvolvimento de conhecimento e capacitação quanto à avaliação de impacto e conscientização sobre os desafios e oportunidades colocados pela digitalização, como inteligência artificial e gerenciamento algorítmico, para a proteção dos trabalhadores, incluindo riscos emergentes de SST, a fim de apoiar respostas políticas que garantam justiça, transparência e não discriminação de decisões.

O ser humano moderno se acostumou aos avanços tecnológicos. Nos últimos 200 anos todas as gerações se maravilharam com avanços técnicos e passaram a viver, no fim de suas existências, um mundo diferente daqueles que conheceram na infância. Se é certo que as atuais preocupações com a IA vão além das relações de trabalho, também é inquestionável que as implicações desse fenômeno são de difícil avaliação e exigirão uma abordagem mais ampla que perpasse pelo sistema educacional, pela regulamentação legal das profissões pela própria estrutura do mercado de trabalho. E essa abordagem mais ampla, inclusive sob o viés protetivo e principiológico do direito trabalhista, também terá de incluir as profissões mais valorizadas socialmente para as quais também tem havido importantes efeitos para os trabalhadores decorrentes da inserção da IA e das TICs.

 

[1] Pierre Marquis, Odile Papini, Henri Prade. Elements for a History of Artificial Intelligence in  A Guide Tour of Artificial Intelligence Research 1: Knowledge Representation, Reasoning and Learning. Springer Nature Switzerland AG 2020.

[2] O termo singularidade na tecnologia da informação não se confunde com o emprego na matemática e na física. Na matemática a singularidade está relacionada com ponto no qual um dado objeto matemático não é definido; normalmente quando uma função tende a um valor zero no denominador. Para a física, a singularidade normalmente envolve situações em que igualmente o denominador tende a zero e, consequentemente, o resultado da função tende ao infinito.

[3]Kurzweil, Ray. Singularidade está próxima quando os humanos transcendem a biologia. Brasil, Iluminuras, 2018.

[4] We Need to Talk About How Good A.I. Is Getting. Kevin Roose. The New York Times. 24 de agosto de 2022.

[5] Domenico de Masi. O Futuro do Trabalho: Fadiga e ócio na sociedade pós-industrial. 4ª ed. UNB: Brasília, 2000.

[6] Em julho de 2022, o Procurador-Geral da República ajuizou perante o Supremo Tribunal Federal Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO 73, apontando mora do Congresso Nacional em regulamentar o artigo 7°, inciso XXVII, da Constituição Federal que confere aos trabalhadores urbanos e rurais o direito social à proteção em face da automação.

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