Voz do Associado seg, 18 de maio de 2020
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Por: Francisco Bertino Bezerra de Carvalho, procurador do Município de Salvador, publicado no dia 16 de abril pelo Direito do Estado.

O alastramento por todo o globo da COVID-19 tem afetado todas as áreas da vida humana em sociedade, incluindo desde o convívio familiar e a liberdade individual até o arranjo produtivo.

Como não poderia deixar de ser neste cenário, o Direito, a criação humana para promover a complexa teia de cooperação que se tornou a vantagem evolutiva do Homo sapiens sapiens , está sob violento estresse.

Dada a gravidade e os impactos da situação, frequentemente tem sido utilizada uma analogia entre este momento vivenciado pelos governos e pelas sociedades e a guerra.

Se, por um lado, falta um aspecto fundamental (e terrível) do conflito bélico – o confronto entre seres humanos com intenção de mútuo aniquilamento –, por outro, efetivamente, as semelhanças são muitas, pois o inimigo mortal e invisível atingiu o cotidiano das pessoas de uma maneira que somente as guerras costumam fazer.

Não são apenas os aspectos físicos, econômicos e financeiros do distanciamento social, há os emocionais e psicológicos, incluindo o medo de uma ameaça, ao menos por enquanto, além de nossas forças individuais e coletivas.

Situações extremas, como a vivida agora e em tempos de guerra, alteram subitamente a tábua de valores e prioridades de uma sociedade de forma tão profunda que, em semanas ou dias, muda o conceito e a concepção do que importa, tem valor, vale a pena, é necessário, útil ou irrelevante. A mudança radical na vida diária de cada um e de quase todos transforma a percepção, testa os princípios e põe à prova os fundamentos da vida em sociedade. No plano privado e individual, a comunidade é obrigada a refletir sobre seus valores pessoais e comunitários e sobre os arranjos por meio dos quais estabelece suas interrelações.

A tudo isso também jamais poderia ser imune a organização estatal e seu instrumento de funcionamento: o direito administrativo.

Se, no plano público, por um ponto de análise, a dimensão do desafio tem trazido à tona a relevância do Estado em seu papel primordial de defesa dos direitos e interesses coletivos, por outro ponto de vista, mais do que nunca, as fragilidades dos gestores inaptos sobressaem à vista de todos. Não é necessária a edição pela Corte Interamericana de Direitos Humanos de uma Resolução (n°. 01/2020) para serem entendidos os deveres óbvios dos governantes, nem que Achille Mbembe sustente o elementar direito universal à respiração, mas é bom que sejam evidenciados, ratificados e registrados os deveres dos líderes e os direitos de todos para afastar dúvidas dos mais céticos ou cínicos.

Com efeito, restou evidente, em todo o globo, que apenas o Poder Público reúne as condições para estruturar a defesa e o combate da sociedade contra esta iminente ameaça, assim como ficou claro que a competência e a arte de governar requer capacidades intelectuais, emocionais e morais diferenciadas. É um tempo que não perdoará improviso, incompetência ou despreparo.

Tal e qual na guerra, a capacidade de liderar em condições adversas é o divisor de águas entre os comandantes de sucesso e aqueles que levam suas tropas à ruína. O sucesso na carreira militar percorre caminhos totalmente diferentes em tempos de paz e de guerra. Navegar em dias calmos não representa um grande desafio, mas chegada a tempestade é preciso reunir no plano intelectual, conhecimento e inteligência, no plano emocional, equilíbrio e serenidade e, no plano moral, valores capazes de inspirar aos comandados a confiança necessária para que cumpram seus deveres em condições adversas, muitas vezes com risco da própria vida.

Nestas horas a palavra pode convencer, mas somente o exemplo arrasta. Não basta ao líder ter sua escala de valores, é fundamental haver aderência com os princípios da comunidade, pois as difíceis decisões que tomará imporão pesados fardos que somente serão carregados se aceitos pelo juízo de valor da comunidade.

Há uma sensação palpável de que, mesmo sem conflito bélico, se está em guerra, e, como em todas as guerras, luta-se não apenas pelas vidas dos cidadãos, mas também pela preservação de um modo de vida, de valores e crenças que estruturam uma sociedade. Há ainda mais, sabe-se que, como sempre ocorreu, haverá um depois, no qual se construirá um futuro com as lições aprendidas.

Alguns aprendizados já são possíveis:

1) A importância de construir uma estrutura estatal capaz de tutelar com efetividade os interesses coletivos (mais do que nunca a soma dos individuais) em áreas como saúde pública (linha de frente deste combate), limpeza pública (segunda linha de defesa), segurança pública, mobilidade de bens e pessoas, regulação social, etc., pois as comunidades serão tão bem sucedidas quanto for a capacidade de organização, adaptação e resposta de seus organismos públicos;

2) A imprescindibilidade dos governantes serem capacitados intelectual, emocional e moralmente para liderar a sociedade em momentos de crise, assim como possuírem uma cartilha de valores essenciais convergente com os da população e efetivamente sintonizados com o interesse coletivo, pois um liderança capacitada, firme e comprometida com a comunidade que representa é condição necessária para manter a imprescindível coesão social;

3) A essencialidade, não apenas do respeito e da reverência, do investimento profundo no conhecimento (educação) e na investigação científica (pesquisa e extensão), nos quais hoje estão depositadas todas as esperanças de tratamento e de imunização contra a doença, sem os quais, simplesmente não surgirá uma saída para expressiva parte da população;

4) A relevância da solidariedade social como princípio fundamental da vida em comunidade, sem a qual se perdem todas as conquistas do longo processo histórico e civilizatório por meio do qual a humanidade alcançou uma prosperidade e uma longevidade sem precedentes;

5) A fragilidade de uma comunidade que seja capaz de produzir riqueza, conhecimento científico, produtos e serviços de qualidade e oportunidades, mas não seja de distribuir estas benesses do desenvolvimento humano à sua população, pois, mais uma vez fica evidente que o verdadeiro progresso de uma comunidade é aquele que alcança todos os seus membros;

6) A verdadeira hierarquia de nossas reais necessidades, tanto como indivíduos, quanto como sociedade, ou seja, quais os valores, bens, serviços, profissões, etc., essenciais, imprescindíveis e que devem ser diariamente reconhecidos, valorizados e priorizados, não apenas agora, (es)premidos pela urgência, mas sempre e daqui por diante, uma vez estar claro, entre tantas evidências, o custo imposto pela falta de investimento em conhecimento e pesquisa, a inutilidade dos bens de ostentação, a impossibilidade da vida pessoal e coletiva sem solidariedade e encontro, o quão elementares e básicos são a saúde e a paz, quantas coisas antes inadiáveis puderam e tiveram que esperar, muitas sem fazer falta, quão maravilhosos e admiráveis são os médicos e garis.

Que a sociedade seja capaz de aproveitar a oportunidade de aprender estas e tantas outras lições disponíveis para quem mantiver a mente aberta, a espinha ereta e o coração tranquilo.

No conflito contra o vírus microscópio as estruturas do Estado, e seus governantes, e a organização e os valores da sociedade, são colocados à dura prova para a qual não é suficiente boa intenção. É necessário ser criativo, reinventar-se, ou, como preferiria Darwin, readaptar-se à nova realidade, o único caminho para a sobrevivência quando o muda o meio ambiente.

Assim, tal como ocorre com o Estado, o direito, especialmente o administrativo, em época de guerra, torna-se outro, precisa reinventar-se. Não que se renuncie à evolução histórica dos institutos ou se construam novos pilares, ao revés, a partir dos verdadeiros princípios estruturantes do edifício é necessário e possível conceber arquitetura diversa.

Por exemplo, é o mesmo princípio da prevalência do interesse público sobre o privado o fundamento para sustentar diversas restrições às liberdades individuais impostas ao cidadão em prol da segurança coletiva. Os sagrados direitos de ir e vir e de livre iniciativa, corolários do princípio da liberdade nos planos individual e econômico, tutelados com prioridade em tempos de paz, precisam ser ressignificados em função da proteção da saúde de todos, inclusive daqueles que acreditam ter o direito individual de escolher os riscos aos quais podem se submeter, sem perceber que o direito da vida de cada cidadão, além de indisponível, é tão importante e inalienável que deve ser defendido até mesmo quando seu titular o negligencia.

Também o princípio da legalidade, tanto em sua variante pública, legalidade estrita, quanto em sua vertente privada, legalidade liberdade, continua sendo pilar essencial da estrutura do Direito, mas pede uma leitura apropriada aos tempos de guerra.

Se, ordinariamente, como dita o modelo da síntese didática, o Poder Público somente pode fazer o que a lei autoriza, a velocidade requerida pelas medidas e o tempo natural do processo legislativo estão gerando, em todas as esferas, a proliferação de normas de menor hierarquia normativa e legitimidade formal (medidas provisórias, decretos, resoluções, portarias. requisições administrativas, etc.) com base nas quais estão sendo estruturadas as ações da Administração. De igual forma, a legalidade liberdade, que assegura ao particular fazer tudo o que não for proibido por lei, também está sendo limitada por normas com os mesmos déficits de hierarquia e legitimidade formal.

Deve-se entender que, por estas circunstâncias, o “estado de guerra” suprime, reprime ou coloca em segundo plano o direito, ou altera o princípio da legalidade? Não.

É exatamente o inverso. O Direito, em síntese apertada, é o mais importante e eficaz instrumento de cooperação social desenvolvido na evolução do ser humano e de suas sociedades. Como toda construção humana, é dirigido diretamente por sua finalidade: exatamente assegurar os parâmetros de tal cooperação.

É, portanto, para cumprir o papel para o qual foi criado que o Direito exige da comunidade, inclusive e especialmente de seus intérpretes, a capacidade de se adaptar às necessidades de seu tempo, de suas circunstâncias impedindo, por exemplo, que o direito de ir e vir de um ou uns seja utilizado contra o direito à saúde, incluindo o direito à própria vida, dos demais.

Também as intervenções do Estado nas liberdades individuais e coletivas vem sendo objeto de dúvidas, questionamentos e até da imputação de responsabilidade civil. Discute-se da legitimidade às consequências patrimoniais.

Balizadas opiniões, por exemplo, excepcionam o fato do príncipe pela impossibilidade de conduta adversa, mas torna-se necessário avançar mais ainda, pois os caminhos não podem prescindir de uma leitura diferente das relações jurídicas. É oportuno lembrar que a teoria da imprevisão tem sua origem na doutrina francesa em fatos da guerra, capazes de tornar excessivamente oneroso o cumprimento de obrigações anteriormente assumidas, partindo para a criação de um contraponto ao princípio então reinante do pacta sunt servanda.

À época foi uma evolução, uma adaptação para “sobreviver” do Direito. Como percebeu a neurocientista Rita Levi-Montalcini, as leis, para nossa espécie, são pura evolução darwiniana. Assim, da rígida prevalência da autonomia da vontade, tão cara às ideias antropocentristas, liberais e individualistas, para a submissão do contrato (a lei entre as partes) a limites externos à intenção das partes foi necessário repensar a base filosófica do direito.

O prestígio da vontade individual como fonte de obrigações, contraponto aos vínculos de servidão próprios do modelo a ser suplantado, medieval, baseados em relações estamentais entre as castas sociais (mais que classes, já que estanques) advinha de uma ideologia que propunha a superação do governo dos mandatários temporais e religiosos de Deus, pelo governo dos próprios homens pelas normas gerais (leis) e individuais (contratos) surgidas do reconhecimento do poder de criar normas para si mesmo como preconizado por Kant. A intangibilidade dos contratos, todavia, revelou-se inadequada à nova realidade trazida pelas transformações da guerra e o Direito precisou evoluir e desenvolver a teoria da imprevisão para manter a utilidade prática do contrato na sociedade.

A teoria do fato do príncipe como fator para o surgimento da obrigação de indenizar ou equilibrar o contrato, evitando que a supremacia do interesse coletivo onerasse desproporcionalmente alguns, atende à mesma necessidade de adaptação do direito à cooperação necessária ao momento histórico.

Se inimaginável a responsabilização do monarca absolutista que chegou a se apresentar como o centro e o objetivo da própria comunidade, na sociedade entre homens livres e iguais governados por suas próprias leis, passa a ser uma necessidade do novo arranjo que os ônus do exercício das prerrogativas do Estado em prol do bem comum não onerem indivíduos específicos.

Tanto na teoria da imprevisão como no fato do príncipe concorrem forças maiores, seja das circunstâncias além da vontade das partes, seja de maiores poderes e prerrogativas concentrados pelo próprio ordenamento nas mãos do Estado, mas, em ambos os casos, não foi possível prescindir de uma correção, um ajuste, uma adaptação, para manter a capacidade do Direito desempenhar seu papel social.

Assim, nos dias de hoje, não importam tanto as razões pelas quais o Estado, em todas as suas esferas, em prol do bem comum, adotou as medidas que entendeu necessárias, mesmo quando não suficientes, para combater o avanço da doença, é preciso encontrar caminhos para ajustar a regulação das situações jurídicas mantendo ao máximo o nível da cooperação desejável ou, ao menos, possível. Em termos práticos, se todas as medidas adotadas pela Administração Pública para proteger a população dos riscos de contágio forem compreendidas como fatos geradores de direito à indenização ancorada na responsabilidade objetiva do Estado ou para reequilíbrios dos contratos administrativos, a finalidade do ordenamento e do próprio Direito deixará de ser atendida, será atingido o inverso do seu objetivo.

Para evitar isso é preciso superar, com um pensamento jurídico estruturado em princípios, os padrões ordinários de análise dos institutos, inclusive e especialmente, de direito administrativo.

Se, em condições normais, não seria dado a um Decreto Federal, Estadual ou Municipal, por exemplo, cercear direitos de mobilidade ou de desenvolver atividades econômicas, sem violar o princípio da legalidade em suas dimensões pública e privada, em tempos extremos, é preciso analisar esta situação com base em uma nova leitura dos institutos. Com efeito, sob as lentes da normalidade, por exemplo, as medidas adotadas por Municípios para restringir trânsito de pessoas ou atividades estão sendo taxadas de inconstitucionalidade, especialmente por afrontar liberdades individuais, mas estas lentes não são úteis neste momento.

Neste caso é preciso compreender que o valor social tutelado pelo Direito na responsabilização civil do Estado pelos atos que pratica e oneram os particulares é o de que as prerrogativas conferidas ao Poder Público para agir em nome do interesse coletivo não devem criar danos exclusivamente para um indivíduo ou grupo, sendo esta a mesma ideia por detrás da remuneração justa paga na desapropriação ou da reparação integral do dano individual. No caso atual, porém, questão maior relacionada à saúde e à vida de toda a comunidade (interesse coletivo) impõem restrições à toda a sociedade (não particularmente a um ou outro), uma vez que as limitações erga omnes não podem ser entendidas como danos particulares. Todos se submetem ao interesse de todos, daí não ser adequado cogitar da indenização pela coletividade (cofres do Estado) dos prejuízos sofridos por toda a coletividade para atender a toda a coletividade. Em uma analogia forçada, mas ilustrativa, o instituto civil da confusão daria causa à extinção da obrigação recíproca da sociedade indenizar a si mesma.

Com ou sem auxílio dos institutos do Direito Civil, porém, é preciso, nesta situação extrema, buscar construções jurídicas capazes de manter o Direito como um eficaz instrumento de estímulo à cooperação na sociedade humana.

Neste momento, as interpretações que construam impedimentos, obstáculos ou tragam consequências gravosas para que as ações que precisam e devem ser realizadas pelo Poder Público, subvertem o propósito, a razão de existir, do Direito, prestam-lhe um desserviço imenso, uma vez que quando o Direito não for capaz de resolver, de apontar os caminhos, a opção que resta é o retrocesso à barbárie, ao estado de natureza no qual as chances de bons resultados são infinitamente menores.

Sim, embora não estejamos em Guerra, no sentido do Direito Internacional Público, trata-se de uma situação extrema que afeta diretamente a jurisdição e a competência de cada ente federado e a consciência cidadã de cada indivíduo.

Na Bahia, de onde falo, já se enfrentou casos inclusive de conflito de atribuições entre esferas e respectivos entes. Caberia à ANVISA criar barreiras sanitárias nos aeroportos, não o fez e impediu a Secretaria de Saúde Estadual de o fazer.

O Estado da Bahia teve o direito de suprir a omissão reconhecido judicialmente em primeiro grau (em decisão posteriormente reformada no segundo). A visão do Juízo de Primeiro Grau, todavia, pareceu mais sintonizada com a necessidade já referida de olhar por ângulos diferentes e interpretar o Direito no sentido da efetividade de suas normas pela garantia dos valores que tutela.

Neste sentido, o Min. Marco Aurélio, na ADI 6341, reconheceu a competência concorrente das três esferas para normatizar o combate à pandemia em seus territórios. Eis uma decisão que parece compreender a necessidade de alterar os parâmetros de regulagem do sistema para manter útil e vivo o Direito.

No âmbito municipal a crítica tem se concentrado nas medidas restritivas à circulação das pessoas e ao desenvolvimento de atividades econômicas que, na visão dos opositores, afrontaria o primado da liberdade, que, desde Roma, é o primeiro direito da República, como o lema da Revolução Francesa relembra, mas ela pressupõe a vida, não apenas a de cada um, mas a de toda a comunidade, premissa do próprio Direito (pacto cuja premissa é o valor da vida em sociedade superar a existência de cada um por si).

Desde a fundação da res publica se concebe a necessidade de restringir o particular em favor do coletivo. No caso específico, o direito de um ou outro circular não pode implicar em risco de vida aos demais. Isto seria a antítese do Direito.

Nem tampouco a questão da competência local seria obstáculo à legitimidade para a disciplina do tema, como assinala a decisão do Min. Marco Aurélio, pois é evidente que os interesses locais das comunidades devem ser melhor compreendidos por ela própria – por meio de seus dirigentes democraticamente eleitos.

O maior risco da pandemia é a superlotação dos leitos de UTI e a consequente morte daqueles que agravam sua condição clínica e não encontrarem espaço disponível para tratamento, hipótese na qual o desfecho fatal é praticamente inevitável. A Distribuição de leitos de tratamento intensivo não é uniforme no país, nem por região, nem entre as redes privada e pública (que será mais demandada). Há diversas localidades, regiões e microregiões sem nenhum leito de UTI. Estas localidades, muitas vezes invisíveis na Capital do Estado, e, mais ainda, em Brasília possuem o direito de se proteger de uma doença que será fatal para qualquer de seus habitantes que tenha sua condição de saúde agravada.

Durante a gripe espanhola (originada nos EUA) que matou milhões ao redor do mundo, Gunnison, no Estado do Colorado, foi a única cidade que não teve mortes numa região muito impactada. Este sucesso adveio de ter tomado suas próprias e sérias medidas de quarentena.

Cada Município deve conhecer o perfil etário de sua população, as condições de seu sistema de saúde, entre outros fatores, como distância de centro médico de referência, meios de transportar doentes, etc. e avaliar os riscos das medidas que deve adotar em prol de seus cidadãos. Por outro lado, os próprios cidadãos também possuem, junto ao poder local, maiores e melhores condições, seja para influir nas decisões, seja para adotar medidas contra eventuais excessos. Assim funciona a democracia no Estado Democrático de Direito.

O que não se pode, neste cenário, é retirar a autonomia dos governos locais (os mais perto de suas comunidades) para adotar medidas que entendam necessárias para proteger seus próprios cidadãos de uma situação que, quase sempre, supera sua capacidade de resposta satisfatória.

Haverá necessidade de serem feitos ajustes e de haver entendimento entre as autoridades constituídas para aperfeiçoar os métodos, mas é uma tarefa destas autoridades para tanto eleitas, não sendo apropriado aos juristas neste momento, com base em um padrão de julgamento anacrônico e ineficaz, encastelar-se na defesa de uma concepção de direitos e garantias individuais que, no plano prático, se traduz na antítese dos valores que deveria tutelar, ou, em outras palavras, transformar o direito de ir e vir no direito de se transformar em vetor de disseminação da doença, interpretar o direito à liberdade de ação sem o necessário limite da tutela dos direitos dos demais indivíduos, da coletividade e do próprio cidadão.

É importante perceber que a situação envolve um conflito entre a legalidade estrita e as regras de competência institucional que sustentam a própria razão de ser do Estado. A didática forma de descrever e diferenciar a legalidade estrita do Estado da legalidade liberdade do cidadão, esta última traduzida como a possibilidade de fazer tudo o que não for por lei vedado e a primeira por agir apenas nos estritos limites da autorização de lei anterior transmite uma ideia falsa ou incompleta, pois o limite da atuação do Estado se dá pelas regras de competência, não pela prévia definição da conduta pela lei.

Sim, atualmente se quer um Estado limitado pela lei para proteger a sociedade do arbítrio e do abuso de poder, mas esta forma de funcionar do Estado por meio da qual se pretende atender aos complementos “Democrático” e “de Direito” não é um fim em si mesma, é um meio para o melhor ou mais desejável desempenho de seu papel, determinado por sua competência.

A finalidade do Estado – atender ao interesse e ao bem comum – é sua efetiva razão de existir. Na prática isso significa que a falta do trilho seguro da normatização prévia para determinar o percurso da ação estatal não exime o Poder Público do cumprimento da missão primordial, devendo, nestes casos, valer-se dos poderes discricionários que recebe para, atendendo aos princípios que norteiam sua ação, como bem adverte Celso Antonio Bandeira de Mello, alcançar seus objetivos.

A falta de norma prescritiva da ação estatal não é uma escusa para sua inação quando o assunto é de sua alçada, mas para sua ação comprometida com as finalidades de sua existência e a ancorada nas normas fundamentais que o inspiram.

No caso concreto, por exemplo, não pode haver dúvida que esta pandemia de efeitos sem precedentes é uma questão de saúde pública, que seu enfretamento é missão de todos, especialmente do Poder Público, que, portanto, não pode se omitir de agir sob a frágil alegação de que inexistem prévias leis que conduzam seu agir. Dito de outra forma, o Estado não pode se eximir de agir por não ter o seguro caminho trilhado por uma lei que determine como irá atuar, pois, com maior ou menor liberdade de ação, o que determina o agir do Poder Público é a presença inequívoca de interesses coletivos demandando tutela.

Assim, não se pode taxar de inconstitucionalidade, com bases nos parâmetros da normalidade, as medidas de um ente federado que coloca a vida e a liberdade de toda a comunidade acima da liberdade individual de cada um seguir suas convicções ou interesses (sendo esta a primeira concessão da vida em sociedade: o interesse individual cederá ao do grupo). A liberdade de um não pode ser exercida contra todos, porque a liberdade é um bem que se adquire apenas coletivamente, nem mesmo contra si próprio, pois a saúde e a vida são bens tão preciosos e caros à sociedade que precisam ser tutelados pelo Direito mesmo quando seus titulares intencionam à elas renunciar.

Analisando pelo prisma que ora se propõe, todos os poderes constituídos, em todas as esferas, possuem o DEVER de agir segundo o interesse coletivo, Presidente, Governadores ou Prefeitos, Assembleias ou Câmaras, servidores, policiais, bombeiros, garis, médicos, cada um no âmbito de sua jurisdição e competência, para que, sempre e, em cada caso, predomine o interesse da coletividade.

Se houver dúvida sobre a ocorrência de um exagero pontual, ademais, não basta apenas refazer a análise sob a ótica da excepcionalidade do momento e da forma que ela afeta a escala de valores juridicamente tutelados ou mesmo a própria forma de os tutelar, é preciso ainda, para caracterizar o abuso ou excesso que se seja capaz de apontar uma solução melhor antes de pretender retirar de cada autoridade constituída as prerrogativas inerentes aos seus deveres de ofício.

Com efeito, não basta levantar questões sobre uma medida, especialmente quando adotada no exercício de poder discricionário se não se for, concomitantemente, possível indicar uma forma de alcançar o mesmo objetivo ou obter o mesmo resultado na tutela de direitos e interesses por uma via alternativa.

Pode-se, por exemplo, decidir substituir o distanciamento social por uma vacinação eficaz (quando for desenvolvida) ou reduzir sua intensidade quando houver um tratamento eficiente para os casos mais graves impedindo os óbitos, mas não é possível retirar validade e sustentação jurídica desta medida sem que exista alternativa minimamente viável. Isto porque poderes são deveres no Estado Democrático de Direito, e, por esta razão, são acompanhados dos meios necessários e suficientes para sua concretização.

Neste sentido, repita-se, por mais desagradável que pareça uma ou outra medida, somente será passível de qualquer crítica, notadamente jurídica, diante de outra solução igual ou melhor. Sem nenhuma alternativa igual ou mais adequada, nenhum ato ou decisão administrativa deve ser objeto de recurso ou invalidação quanto ao mérito.

A Administração Pública precisará se reinventar com a mesma velocidade que os desafios impostos por esta guerra, desdobrando-se para combater um inimigo silencioso e invisível, e, sendo a necessidade mãe da invenção, é hora de ser criativa.

Além das medidas de contenção da circulação e de ampliação da estrutura de saúde que irá tratar os casos mais graves, o Estado precisará lidar com várias outras consequências da emergência de saúde pública sobre, por exemplo, negócios jurídicos administrativos de trato continuado, obras públicas, servidores e serviços públicos, pois a própria Administração sofre impactos diretos da pandemia em seu funcionamento e em suas relações internas e externas.

Quais obras serão contratadas, quais continuarão, quais serão suspensas? Como regular as relações contratuais com os Administrados? Como e em que medida manter a arrecadação? Quais serviços públicos suspender ou reduzir, quais manter? Que servidores afastar, conceder férias ou manter trabalhando? Como evitar que este grande evento de força maior seja fonte da ampliação de gastos públicos por força da suspensão ou cancelamento de contratos, prorrogação de prazos, etc.? Combater o vírus não é a única frente de batalha e a já complexa administração da coisa pública tornou-se uma empresa ainda mais difícil.

Será preciso analisar a estrutura das parcerias público privadas, avaliar os contratos de concessão simples com o propósito especial de descobrir se as bases econômica e financeira dos pactos são capazes de suportar, com mínimo equilíbrio, as transformações exigidas pelas turbulências desta fase ou, como, em caso contrário, encontrar um caminho eficiente de preservar os valores, princípios e objetos essenciais envolvidos.

Com efeito, em muitas situações a solução padrão da normalidade, pelo reequilíbrio econômico e financeiro do contrato pode se transformar em um beco sem saída, seja pela impossibilidade real de equilibrar econômica e financeiramente uma relação em circunstâncias tão diversas das originais, seja pelo risco dos ajustes necessários tornarem impossível a manutenção do vínculo ou insuportavelmente onerosa para qualquer das partes, principalmente para o Estado.

A concessão mediante outorga de uma área pública para exploração particular com restaurantes, bares, teatros, parques, etc., cuja receita será abruptamente impactada durante todo o distanciamento social pode ser equacionada pela exoneração da outorga no período (com perda de receitas) ou até mais adequadamente, pela suspensão do contrato para prosseguimento após a pandemia, provavelmente medida mais adequada e proporcional para os dois lados.

Há serviços públicos, porém, que, mesmo afetados, não podem parar, como fornecimento de água e saneamento, iluminação pública, SAMU, vigilância sanitária, transportes públicos, coleta e destinação de resíduos, etc.

Em alguns casos, notadamente quando entregues à exploração pela iniciativa privada, a solução do reequilíbrio durante ou depois da pandemia não será possível ou adequada, seja pela inviabilidade financeira, seja pela excessiva onerosidade para alguma das partes, em especial, para o Estado que, precisando ser efetivo e forte neste momento, dele não pode sair muito mais combalido do que entrou. Soluções criativas devem surgir, uma das quais a suspensão de concessões simples no período da pandemia, para posterior continuação pelo prazo restante quando de sua superação, com a contratação sob demanda dos serviços necessários durante a emergência. Ao invés de tentar navegar com um navio petroleiro contratado em um estreito canal, melhor contar por um período com uma embarcação adequada para o objetivo pretendido ou possível.

Esta solução evita o gasto de energia e tempo em cálculos complexos, irrealizáveis ou imprecisos para tentar um equilíbrio impossível ou excessivamente oneroso, provavelmente extremamente custoso ao erário, inócuo para equacionar o problema e potencialmente capaz de causar solução de continuidade nos contratos, com perdas para ambos os lados. Melhor investir na relação equilibrada a longo prazo que comprometê-la na tentativa de uma modificação não operacional. O objeto temporário excepcional pede um pacto específico.

Muitas são as oportunidades para o Direito, especialmente o Administrativo, demonstrar seu valor e sua utilidade no papel essencial de regulação das relações interpessoais para fomentar a complexa cooperação característica da raça humana, mantendo a mais eficaz vantagem evolutiva da espécie, para tanto precisando demonstrar sua capacidade de adaptação a novos e desafiadores tempos e circunstâncias, permitindo que a pandemia da COVID-19 encerre histórica e definitivamente o século XX e inicie uma nova era no século XXI, marcando, sob o signo da renovação pascoal, um novo renascimento, promovido pela restauração da razão (temperada com emoção), comprometido com a sustentabilidade, inspirado pela releitura atualizada da liberdade coletiva, da igualdade material e da fraternidade solidária.

Se aprendermos as lições, será um extraordinário tempo de se viver a aventura humana... JUNTOS NOVAMENTE.

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