Por: Raphael Diógenes Serafim Vieira,
Procurador do município de Niterói. Mestrando em Direito Administrativo pela PUC-SP. LLM. FGV Estado e Regulação. Publicado pelo Conjur no dia 29 de junho de 2023. Leia aqui o artigo no portal.
Debate interessante sobre a relação entre o "órgão de assessoramento jurídico" e a "Advocacia Pública" foi trazido pelo advogado Guilherme Carvalho na coluna de Licitações e Contratos do último dia 9.
A importância da discussão está em prevenir, a partir do diálogo jurídico proposto, a interpretação e a aplicação equivocada do novo Estatuto de Licitações e Contratos Administrativos, antes mesmo da sua plena entrada em vigor.
O artigo defendeu que a assessoria jurídica no processo de contratação pública pode ser feita por advogados privados contratados pela gestão temporária da Administração Pública. Para justificar tal posição, o advogado preconiza que não consta no artigo 6º da Lei nº 14.133/2021 a definição de "órgão de assessoramento jurídico", mas somente a de "órgão".
Todavia, ao constatar que o vocábulo "órgão" foi positivado pela Lei como "unidade de atuação integrante da estrutura da Administração Pública" (artigo 6º, I), Carvalho ressalva que o conceito seria inadequado para satisfazer às necessidades "holísticas" da Administração Pública. Nesse ponto reside a sua proposta de interpretação: ampliar o sentido de "órgão" (significado intensional), para que passe a denotar os agentes públicos que não sejam investidos de cargo no quadro (significado extensional).
Diverge-se da ilustre posição. Antes de prosseguir, postula-se a seguinte premissa: o ato de prestar assessoria jurídica é privativo de advogado, público ou privado, ex vi do artigo 1º, II, da Lei 8.906/94. Diante dessa premissa, o debate não controverte sobre a titularidade dessa prerrogativa ser privativa de advogado. Há unanimidade sobre esse ponto.
A questão debatida cinge-se à interpretação do sentido e alcance da locução "órgão de assessoramento jurídico". Carvalho, de um lado, propôs a ampliação do significado de "órgão da Administração" para contemplar os advogados privados, enquanto, por outro lado, defende-se nessa resenha que houve a preservação ortodoxa do significado desse termo, o que significa excluir da sua denotação os particulares em colaboração com o Poder Público, como os advogados privados.
O Direito Positivo e a doutrina convergem a respeito do que se entende por "órgão". Celso Antônio explica que "os órgãos nada mais significam que círculos de atribuições, os feixes individuais de poderes funcionais repartidos no interior da personalidade estatal e expressados através dos agentes neles providos" [1]. Órgãos são, portanto, círculos internos de atribuições do Estado, os quais, por sua vez, se expressam no mundo fenomênico por meio de agentes devidamente habilitados [2]. Nesse exato sentido foi acolhido o conceito jurídico-positivo estipulativo de órgão na Lei nº 14.133/2021 (artigo 6º, I), como "unidade de atuação integrante da estrutura da Administração Pública".
Nessa ótica, quando a Lei exige a atuação do órgão, subtende-se que os agentes públicos responsáveis por manifestar o seu querer e agir administrativo integram necessariamente a estrutura orgânica do aparato estatal.
Dada essa premissa, conclui-se, naturalmente, que os particulares em colaboração com o Poder Público não estão abrigados dentro da moldura semântica de órgão. Celso Antônio Bandeira de Mello explica que esses particulares realizam função pública, sem, com isso, revestir-se da figura de agente da estrutura interna do Estado [3].
Trata-se de categoria de agentes públicos formada por "sujeitos que, sem perderem a sua qualidade de particulares — portanto, de pessoas alheias à intimidade do aparelho estatal [...] —, exercem função pública, ainda que às vezes apenas em caráter episódico" [4].
A extensão desses institutos jurídicos para a interpretação específica do "órgão de assessoria jurídica" implica a mesma conclusão (ubi eadem ratio, ibi idem jus) [5]: apenas os advogados que integrem o órgão técnico especializado, que corresponde a uma unidade administrativa interna da Pessoa Jurídica, possuem a respectiva habilitação jurídica para funcionar como pareceristas nos processos de contratação (advogados públicos). A conclusão significa, pelo argumento a contrario [6], que os advogados privados não estão incluídos no conceito de "órgão de assessoramento jurídico" do Poder Público, pois prestam serviços jurídicos para a Administração Pública sem, com isso, pertencerem à sua estrutura administrativa (terceiro-contratado) [7].
O Poder Público pode contratar advogado privado para prestar-lhe determinado serviço jurídico e, nessa hipótese, reconhecê-lo como agente público [8] mesmo que não integre órgão da Administração? Sim, é perfeitamente possível distingui-lo como agente público que desempenha função pública sem, com essa qualificação jurídica, ter de revestir-se a figura de agente da estrutura interna do Estado. Nesse caso, ao conciliar a propriedade de exercer função pública com a de não integrar órgão público amolda-se à classificação preconizada de "particular em colaboração com o poder público" [9].
Portanto, quando a Lei nº 14.133/2021 exige a manifestação jurídica dos profissionais que integram o órgão de assessoramento jurídico refere-se, necessariamente, aos advogados que integram o órgão Advocacia Pública (advogados públicos), por se tratar do órgão jurídico da Pessoa Jurídica de Direito Público, provido por agentes do quadro.
E são várias as passagens na Lei nº. 14.133/2021 que se referem ao órgão de assessoria jurídica. A participação do "órgão de assessoramento jurídico" da Administração no processo licitatório mediante controle prévio de legalidade e análise jurídica da contratação são previstos nos seguintes dispositivos: artigo 8º, §3º; artigo 19, IV; artigo 53, caput, §1º, §4º e §5º; artigo 117, §3º; artigo 168, parágrafo único; artigo 168, II, e artigo 169, II, todos da Lei nº 14.133/2021.
Finalmente, a Lei enfatiza que o órgão de assessoramento jurídico coincide com o de Advocacia Pública ao fixar, no artigo 10, que a Advocacia Pública promoverá a representação judicial de autoridade administrativa processada por "ato praticado com estrita observância de orientação", constante no parecer jurídico elaborado, segundo o §1º do artigo 53 desta Lei, pelo órgão de assessoramento jurídico da Administração. Há, portanto, uma relação de coincidência e identidade entre os dois órgãos [10].
Caminhando para a conclusão, infere-se das considerações expostas que o conceito de órgão de assessoramento jurídico enunciado nos dispositivos citados não acolhe a denotação de advogados privados contratados para o exercício de função pública delegada. A justificativa é simples: ainda que esses profissionais possam ser classificados transitoriamente como agentes públicos, bem como prestar assessoria jurídica excepcional para a Administração Pública, a Lei nº 14.133/2021 não lhes conferiu competência específica para funcionarem na assessoria jurídica das contratações públicas prevista pela Lei nº 14.133/2021. A pedra de toque para essa conclusão é a definição de "órgão", conforme estipulada na Lei e convencionada na doutrina.
Perante o exposto, conclui-se que o Estatuto de Licitações e Contratos compreende o órgão de Advocacia Pública como equivalente de órgão de assessoramento jurídico da Administração Pública, e vice-versa, de acordo com a interpretação sistemática da Lei nº 14.133/2021, bem como da definição estipulava e da convencionada na doutrina acerca das categorias jurídicas delineadas.
[1] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Apontamentos sobre a teoria dos órgãos públicos. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 69.
[2] Trata-se de conceito baseado na lição do professor Celso Antônio Bandeira de Mello, que conceitua os órgãos como "unidades abstratas que sintetizam os vários círculos de atribuições do Estado. Estes devem ser manifestados pelos agentes investidos dos correspondentes poderes funcionais, a fim de exprimir na qualidade de titulares deles, a vontade estatal". (Idem, ibidem, p. 69).
[3] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit, p. 258.
[4] Idem, ibidem, p. 257.
[5] Segundo Carlos Maximiliano: "Ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio: 'Onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito'. Os casos idênticos regem-se por disposições idênticas" (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 223).
[6] O argumento a contrario sensu é explicado por Riccardo Guastini na seguinte passagem: "extraem-se do texto expresso duas normas, uma em decorrência do sentido expresso — se F1, então C — e outra em decorrência do sentido implícito, contrário ao expresso — se F2, então não-C". (GUASTINI, Riccardo. Estudios sobre la interpretación jurídica. México: Porrúa, 2006, p. 30).
[7] Os advogados de escritórios de advocacia prestam serviços jurídicos ao Estado na qualidade de terceiro-contratado, de acordo com os conceitos estipulativos da Lei nº. 14.133/2021, que distingue "órgão" de "contratado". De um lado, define o contratante como "pessoa jurídica integrante da Administração Pública responsável pela contratação" (artigo 6º, VII) e, de outro lado, o contratado, como a "pessoa física ou jurídica, ou consórcio de pessoas jurídicas, signatária de contrato com a Administração" (artigo 6º, VIII). Reservou-se para o "órgão" a significante que revela a sua natureza intestina à Administração: "unidade de atuação integrante da estrutura da Administração Pública" (artigo 6º, I). Assim, o conceito de órgão pressupõe agentes intestinos na unidade de atuação da Administração por meio dos quais se imputa a sua vontade, motivo pelo qual, diante da natureza externa do próprio contrato, não abrange o advogado de escritório de advocacia contratado pela Administração.
[8] A expressão "agente público" constitui a designação mais ampla e compreensiva para designar o conjunto de pessoas físicas que prestam serviços para o Estado. Basta que duas propriedades sejam perfectibilizadas: 1) requisito subjetivo: investidura; e 2) requisito objetivo: exercício da função pública (Cf. BANDEIRA DE MELLO, Op. Cit., 2015, p. 251).
[9] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit, p. 258.
[10] Trata-se do princípio da identidade na lógica formal, representado por "A = A".
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