Voz do Associado seg, 13 de fevereiro de 2023
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Por: Luiz Henrique Antunes Alochio,

Procurador do Município de Victória/ES. Doutor em Direito (Uerj)

O Direito Municipal, disciplina essencial para o trabalho nas Procuradorias Municipais, é ausente das Diretrizes Curriculares para o ensino jurídico brasileiro. A inclusão da disciplina é fundamental já que o Brasil é o “maior país municipalista” do Mundo, com uma federação tripartite: inclui as municipalidades ao lado da União, dos Estados e do Distrito Federal. Ocasionalmente a disciplina surge em faculdades isoladas, ou,  existe referência aos Municípios de forma esparsa e sem que se aprofunde a realidade jurídica a partir da noção de interesse local. O texto, além de avaliar a necessidade urgente de inclusão do Direito Municipal nas Diretrizes Curriculares dos cursos jurídicos brasileiros, propugna que as Procuradorias Gerais incluam o Direito Municipal nos concursos para Procurador Municipal.

  1. Introdução

Em 2021, durante a gestão da Associação Nacional de Procuradores Municipais capitaneada pelo Presidente Gustavo Machado Tavares, remeti uma sugestão que fora encampada. Em síntese:

“Ofício ao Ministério da Educação para a inclusão da disciplina Direito Municipal no rol de disciplinas obrigatórias das Faculdades de Direito, e outras sugestões congêneres.”

As “outras sugestões congêneres” ali referidas diziam respeito à inclusão do Direito Municipal nos concursos para procurador municipal.

O tema relativo às Diretrizes Curriculares está sob a deliberação do Ministério da Educação. Por isso, escrevo esse texto na tentativa de exortar a todos os Colegas Procuradores e Procuradoras Municipais, que tenham alguma forma de relação com o MEC ou com integrantes das Bancadas Federais de seus Estados, para que — se assim concordarem — apoiem a sugestão acima.

  1. DIREITO MUNICIPAL OU “URBANO” OU “DA CIDADE?

Em complemento à brevíssima introdução cabe ressaltar que nos últimos 40 anos até mesmo a nomenclatura “Direito Municipal” vem perdendo lugar. Há novidadeiras expressões como “Direito Urbano”, “Direito da Cidade” e situações do gênero. A gênese dessas nomenclaturas visou compreender o fenômeno do agigantamento das áreas urbanas mais povoadas e, especialmente, as chamadas metrópoles. Limitam-se aos perímetros urbanos ou metropolitanos.

Todavia quaisquer dessas novas demandas não são capazes de substituir o Direito Municipal. São um conteúdo e não o continente.

Chegam alguns autores à defesa do ressurgimento das Cidades-Estado,[1] ou, para sermos mais precisos, que se repense o status federativo das grandes Metrópoles. Neste caso, igualmente, não se substitui o Direito Municipal, sendo a este exigido que a configuração jurídica das “metrópoles” seja avaliada com atenção peculiar. Um desafio do qual não pode fugir a Doutrina Municipalista.

  1. Diretrizes Curriculares e sua função

A Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação edita as diretrizes curriculares que orientam os cursos jurídicos no Brasil. No ano de 2018, mais precisamente em 17 de dezembro, fora editada a Resolução 005/2018[2] institui as diretrizes curriculares nacionais do Curso de Graduação em Direito.

O Curso de Graduação em Direito, assim, deve cumprir a meta contida no art. 3º da Res. 05/2018:

 

Art. 3º O curso de graduação em Direito deverá assegurar, no perfil do graduando, sólida formação geral, humanística, capacidade de análise, domínio de conceitos e da terminologia jurídica, capacidade de argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, além do domínio das formas consensuais de composição de conflitos, aliado a uma postura reflexiva e de visão crítica que fomente a capacidade e a aptidão para a aprendizagem, autônoma e dinâmica, indispensável ao exercício do Direito, à prestação da justiça e ao desenvolvimento da cidadania.

           

O art. 5º, em seu Inciso II refere a finalidade da formação técnico-jurídica destacando que envolve

II - Formação técnico-jurídica, que abrange, além do enfoque dogmático, o conhecimento e a aplicação, observadas as peculiaridades dos diversos ramos do Direito, de qualquer natureza, estudados sistematicamente e contextualizados segundo a sua evolução e aplicação às mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais do Brasil [...];

Dentre as realidades políticas, culturais e sociais mais brasileiras, encontram-se os Municípios e o nosso modelo de Federação Tripartite:[3]

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

 

Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.

Portanto, nada mais lógico que se estude, em nosso país, a realidade Municipal de forma igualmente específica. Por conta dos mais de 5500 Municípios não existe qualquer outra estrutura pública que “empregue” mais advogados que as Procuradorias Municipais. E, como já consta de dados do Conselho Nacional de Justiça, são os Municípios os maiores consumidores da Jurisdição Estadual em primeira instância.

iii. Direito Municipal:

ausência desDe a formação jurídica

aos Concursos Públicos.

A despeito de o Brasil ter o Município como membro de sua Federação, dotado de autonomia, hipótese que não se encontra em outros países, o estudo do chamado Direito Municipal, a partir das décadas de 1990/2000 passou a ser relegado a um segundo plano.

Mesmo nos concursos para Procuradores Municipais há uma severa apatia na inclusão da disciplina direito municipal de forma específica nos Editais. Essa falta acaba sendo “justificada” pela alusão à hipotética transversalidade ou  interdisciplinaridade. O que de fato não ocorre.

Por estas breves considerações, compreendemos que:

  • O direito municipal tem uma relevante relação jurídica, social, política e econômica com o Brasil;
  • É inegável a necessidade de seu estudo sistematizado e pormenorizado — evitarei o emprego da expressão “autônomo” — e não como mera parcela de outras disciplinas.
  1. “direito da governança local”

Em período de pesquisa no Estado da Flórida deparei-me em várias Faculdades de Direito americanas com a seguinte disciplina “Local Government Law” ou “State and Local Government law”.[4], [5] Sem contar que uma das Comissões — Sections — mais fortes da Florida Bar Association é exatamente a de City, County and Local Government Law.[6]

Notemos que os Estados Unidos não é uma Federação na qual o Município seja “partícipe”. Mas os Governos locais, mesmo sem a posição Constitucional dos Municípios brasileiros, parecem ter mais força em muitas áreas. Por exemplo: detém os serviços de saneamento.

Outro exemplo, e muito mais próximo do que estamos aqui defendendo, seria o que se pode ver no México, com a cátedra de Derecho Municipal na UNAM – Universidad Nacional Autónoma do México,[7] cujo programa é de uma qualidade excepcional.

  1. DIREITO MUNICIPAL NOS “CONCURSOS MUNICIPAIS”

Existem vícios que acometem nossa carreira e acabam passando despercebidos. Um deles é a preparação dos editais de concurso para o cargo de Procurador Municipal. A carreira não pode pensada para “depois” do ingresso, mas, desde o processo de seleção via concurso.

Raramente a disciplina Direito Municipal consta em tais editais. E — por já ter fiscalizado ou ajudado a fiscalizar concursos em favor da OAB há quase duas décadas — pelo que conheço, não há sequer a “justificativa” da “transversalidade”. As provas não têm essa preocupação inter ou transdisciplinar. Mas não cabe descer a esse detalhe.

Basta verificar que as noções específicas de Direito Municipal, como tal consideradas, não são objeto de preocupação na confecção de editais e provas de concursos em nossa carreira.

Note-se o caso do concurso para Procurador Municipal de São Paulo (2014)[8] que no máximo previa situações como leis e decretos municipais, ou referência à “autonomia municipal”. Nada muito diferente da PGM RIO.[9]

No Município onde atuo desde 2002 — Vitória/ES — a situação foi diferente uma única vez. Em meu concurso (2002) não tivemos Direito Municipal. Mas no último concurso (2007)[10] o programa previu especificamente o Direito Municipal. Porém, novo edital havia sido publicado em 2020[11], e posteriormente cancelado, também não mencionou o Direito Municipal.

Ressalvas também sejam feitas à PGM Porto Alegre, cujo edital explicitamente elenca o Direito Municipal.[12]

A referência aos Municípios que não adotam o Direito Municipal não possui qualquer tom de crítica. Serve exclusivamente para indicar que — por vezes — uma situação parece ser tão óbvia — a necessidade de conhecimento específico sobre o Direito Municipal — que acaba acarretando a sua não inclusão nos Editais.

Os concursos municipais podem acabar selecionando pessoas excelentes, mas talhadas para cargos que não lidam, por exemplo, com a defesa do “interesse local”.

Nunca é demasiado recordar: o perfil do futuro profissional também deve ser objeto de preocupação ao momento do recrutamento, já que o Inciso II do art. 37 exige — e poucos atentam — que o concurso tenha correlação direta com a “natureza e a complexidade do cargo”:

Art. 37. [...]

II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;  

Logicamente haverá sempre o argumento: “o Direito Municipal está sendo objeto de avaliação transversalmente ou interdisciplinarmente”. Como já referi acima, fiscalizo — pessoalmente ou ajudo a fiscalizar — concursos para a Ordem dos Advogados nas procuradorias municipais. Nunca vi a tal “transversalidade”. Até por uma razão: a seleção é majoritariamente baseada em questões “objetivas”. E, nas questões “discursivas” não há espaço para tanto, e não tem ocorrido como regra.

Faça-se o mais fácil. A inserção do Direito Municipal nos editais, de forma específica, como bloco de matérias próprio.

Só uma última ponderação: de nada adianta inserir o Direito Municipal no Edital, se, nas provas, não haver um número proporcional de questões sobre a matéria. Além de constar no rol de disciplinas, é fundamental que conste proporcionalmente à sua relevância nos cadernos de provas: tanto as objetivas quanto as discursivas.

 

vI. Conclusões

Por todas as razões acima, que sintetizam a crença na necessidade de inclusão do Direito Municipal nas Diretrizes Curriculares que orientam os cursos jurídicos no Brasil, concluo:

  1. No sentido da essencialidade da inclusão do DIREITO MUNICIPAL nas Diretrizes Curriculares que orientam os cursos jurídicos no Brasil.
  2. Que seria ainda mais urgente as PROCURADORIAS GERAIS MUNICIPAIS incluírem em seus Editais de Concurso e nas Provas destes certames, a matéria DIREITO MUNICIPAL de forma específica.

[1] Com as escusas do pouco espaço, cabe a remissão à melhor obra sobre o tema de um genial professor da Universidade Federal Fluminense e Constitucionalista de escol: FERREIRA, Gustavo Sampaio Telles. Federalismo Constitucional e Reforma Federativa: Poder Local e Cidade-Estado. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumenjuris, 2012. v. 1. 370p . E, mais recentemente a obra do Professor Ran Hirshl. City, State: Constitutionalism and the Megacity. New York:  Oxford University Press,  2020, 272 pp.

[2] http://portal.mec.gov.br/docman/dezembro-2018-pdf/104111-rces005-18/file

[3] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

[4] https://law.fsu.edu/academics/course-descriptions

[5] https://www.law.ufl.edu/courses/state-and-local-government-law

[6][6] https://www.floridabar.org/about/cert/cert-applications-and-requirements/cert-cc/

[7] https://suayed.acatlan.unam.mx/planestrabajosua/derecho/programas_derecho-2012/optativas/op_Derecho_Municipal.pdf

[8] https://documento.vunesp.com.br/documento/stream/MjYzNQ%3d%3d

[9] https://fs.ibfc.org.br/arquivos/66a9e097251fa74fd37e1819f91c5332.pdf

[10]http://www.cespe.unb.br/concursos/_antigos/2007/PMVPROCURADOR2007/arquivos/ED_4_2007_PMV_PROCURADOR_ABT_FINAL_10_3_07.PDF

[11]https://www.ibade.org.br/Cms_Data/Contents/SistemaConcursoIBADE/Media/PMVESPROCURADOR2020/edital/Edital-Concurso-PGM-11.pdf

[12] https://concursos-publicacoes.s3.amazonaws.com/680/publico/edital_abertura/edital_abertura_680637f7ffae3b64.pdf?id=63d3dff39dd10

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