Voz do Associado qui, 21 de maio de 2020
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Por: Juliana de Souza, procuradora do Município de Sorocaba/SP

Em 06/02/2020 foi editada a Lei Geral da Quarentena, Lei nº 13.979/20, em processo de tramitação de urgência para regulamentar medidas a serem adotadas para enfrentar o COVID-19, doença que causou o maior impacto mundial dos últimos anos. Em menos de três meses da sua entrada em vigor a Lei sofreu diversas alterações pelas inúmeras medidas provisórias editadas, acarretando enorme insegurança jurídica tanto para as autoridades quanto para população em geral.

Para Marçal Justen Filho, a instabilidade trazida com a lei e suas alterações e o protagonismo assumido pelo judiciário diante da crise, trouxe à tona a adoção de um “direito administrativo da emergência”, embora não se trate de terminologia nova, a situação se apresenta estreando várias medidas que afastam, suspendem ou até mesmo extinguem o direito administrativo atual (2020, p. 1). Mas quais são os limites desse chamado direito administrativo da emergência? A regra é continuar obedecendo ao sistema jurídico vigente ou arcar com as consequências do novo modelo?

É certo que a crise trouxe áleas muito distantes da vida cotidiana, dúvida não há que estamos diante uma crise sem precedentes que desencadeou o enfraquecimento da economia no país, endividamento do Estado, queda na arrecadação, dificuldade no cumprimento das obrigações assumidas antes da crise e dificuldade no avanço de novas contratações, mas tal fato, no entanto, não autoriza a suspensão do Estado Democrático de Direito. Todas as medidas adotadas devem ser fundamentadas não apenas em evidências técnicas e científicas, conforme preconiza o artigo 3º, § 1º, da Lei 13.979/20, mas também nos princípios e norma positivada na Constituição Federal.

A partir da orientação da Lei Geral da Quarentena, autoridades de todas as esferas de governo foram estimuladas a editar normas para regulamentar e viabilizar as políticas públicas emergenciais, combater a transmissão do vírus, além de evitar a estagnação da economia, e como medida inicial, diversos foram os decretos de calamidade pública divulgados no país inteiro pelos respectivos entes.

Não demorou muito para que as primeiras questões envolvendo a Lei nº 13.979/20 fossem parar na Suprema Corte para a garantia no Sistema Constitucional.

Em 08/04/2020, o Ministro Alexandre de Moraes, em ação proposta pelo Conselho Federal da OAB, concedeu medida cautelar para garantir o exercício da competência concorrente dos Governos Estadual e Distrital, bem como suplementar dos Municípios para adotarem medidas de distanciamento social, independentemente de superveniência de ato federal em sentido contrário. A decisão não determinou nada além do que já estava previsto nos artigos 23, II e IX, 24, XII, 30, II e 198 da CF, bem como na Lei Geral da Quarentena, mas ainda assim gerou polêmica na imprensa e opiniões diversas entre profissionais do direito, especialmente com relação a uma possível ofensa à separação dos poderes. (STF, 2020)

No mesmo dia, o Presidente do STF, Dias Toffoli, entendeu pela impossibilidade de limitação do direito de ir e vir determinada pelo chefe do Executivo, sem “respaldo em recomendação técnica e fundamentada da ANVISA”. E complementa: “Na presente situação de enfrentamento de uma pandemia, todos os esforços encetados pelos órgãos públicos devem ocorrer de forma coordenada, capitaneados pelo Ministério da Saúde, órgão federal máximo a cuidar do tema, sendo certo que decisões isoladas, como essa ora em análise, que atendem apenas a uma parcela da população, e de uma única localidade, parecem mais dotadas do potencial de ocasionar desorganização na administração pública como um todo, atuando até mesmo de forma contrária à pretendida”. (STF, 2020)

Dias após a decisão supra, seguindo na mesma linha da decisão anterior, o Ministro Dias Toffoli mais uma vez negou o pedido de limitação do direito de ir e vir. Desta vez, tratava-se de pedido de suspensão de tutela provisória, com cautelar, proposto pelo Município de Santo André, que visava a manutenção de Decreto Municipal que dispunha sobre a restrição à circulação de pessoas de mais de 60 anos de idade, na área de seu território. A fundamentação da decisão esclarece que “muito embora não se discuta, no caso, o poder que detém o chefe do executivo municipal para editar decretos regulamentares, no âmbito territorial de sua competência, no caso concreto ora em análise, para impor tal restrição à circulação de pessoas, deveria ele estar respaldado em recomendação técnica e fundamentada da ANVISA, o que não ocorre na espécie.” (STF, 2020)

E aqui chega-se ao ponto alto do presente artigo, será que o Decreto Municipal em questão que limitava o direito de ir e vir de pessoas maiores de 60 anos olhava para o “direito administrativo da emergência”, mas também atendia o direito administrativo atual? Obedecia aos princípios do artigo 37 da Constituição Federal, mas também respeitava os fundamentos da república federativa do Brasil, tal qual promover o bem de todos independentemente da idade (art. 3º, IV)? Será que uma decisão pode ser considerada válida ainda que limite a liberdade privada sem o mínimo de proporcionalidade?

John Rawls, filósofo do século XX que dedicou sua vida ao desenvolvimento de uma teoria de justiça que conciliasse os princípios morais da liberdade e igualdade, acreditava que a melhor maneira de conciliar os princípios e ter uma sociedade justa é distribuindo bens e direitos através de princípios justos, nesse ponto, propõe um novo contrato social, e o faz através do que ele denomina de posição originária. A posição originária sugere que, 

“devemos anular os efeitos das contingências específicas que colocam os homens em posições de disputa, tentando-os a explorar as circunstâncias naturais e sociais em seu próprio benefício. Com esse propósito, assumo que as partes se situam atrás de um véu de ignorância. Elas não sabem como as várias alternativas irão afetar o seu caso particular, e são obrigadas a avaliar os princípios unicamente com base nas considerações gerais”. (RAWS, 2000, p. 147)

Em linhas gerais, o gestor, na tomada de decisões, deve supor que não conhece certos tipos de fatos particulares, deve vestir o “véu de ignorância” a fim de libertar-se de todos os preconceitos, ignorar a posição que eventualmente ocupará na sociedade, nesse modelo não saberá qual será a sua posição social e econômica, não saberá seu sexo, raça, cor ou idade, se será saudável ou doente, não sabe nada sobre a sociedade e terá a possibilidade de desejar uma sociedade justa para todos, formulando regras universais.

O filósofo em questão, como muitos outros ao longo da história, foi alvo de críticas, em especial por Michael Walzer e Robert Nozick, que resistiam à ideia de Rawls por não acreditarem em um critério único de distribuição de justiça. Rawls, no entanto, defendia-se afirmando que jamais pretendeu um conceito metafísico de justiça, mas sim político. “A justiça terá sempre um conceito relativo, devendo prevalecer o entendimento da maioria daqueles que com ela convivem” (SILVA, 1998, p. 211).

Apesar das críticas, a teoria se mostra justificável e passível de aplicação, especialmente nos dias atuais, para espelhar o artifício da posição original por ele idealizada, como parâmetro para conduzir esse “novo capítulo de contrato social” que chega para mudar a história e realidade do país.

O “véu da ignorância” talvez seja a solução mais razoável para salvar esse modelo cheio de incertezas e inseguranças que estamos vivendo, em que não é possível garantir uma decisão insofismável perante a sociedade que está parte coagida pelo medo e outra parte desinformada, necessitando de um norte democrático que garanta um senso de justiça necessário.

A ideia de justiça através do véu da ignorância não se distancia da construção de uma sociedade livre justa e solidária, promoção do bem de todos, a fim de garantir os objetivos fundamentais da República, não se afasta ainda da preservação dos princípios constitucionais, nem das regras positivadas na constituição, e nesse momento de instabilidade ampara o gestor para que não afronte o sistema constitucional, já que diante dos ditames da LINDB, os atos administrativos praticados com base em valores abstratos, sem fundamentação expressa causarão consequências jurídicas e administração, em razão da má gestão, nos termos dos artigos 20 a 22 do referido diploma.

Nessa linha é possível concluir, em primeiro lugar, que estamos diante de uma situação atípica e uma lei temporária, mas continua mantido o estado democrático de direito. Em segundo lugar, mesmo diante de lei temporária e de uma crise sem precedentes no país, o que será levado em consideração após o restabelecimento da situação, os atos praticados durante a pandemia e a vigência da Lei 13.979/20, poderão sofrer consequências, devendo o gestor ter a cautela de justificar de modo expresso suas decisões. E, por fim, o gestor deve estar comprometido com os princípios, direitos e garantias fundamentais, editar regras que busquem minimizar a situação de insegurança jurídica e garantir a validade de seus atos através de atendimento da necessária proporcionalidade e adequação das decisões que a discricionariedade exige e tolera.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FILHO, Marçal Justen. Direito Administrativo da Emergência – Um Modelo Jurídico. Disponível em: <http://jbox.justen.com.br/s/Ngmno9amBAAAwAB#pdfviewer>. Acesso em: 18/04/2020

RAWLS, Jonh Rawls. Uma Teoria da Justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. Teoria da Justiça de John Rawls. Revista de informação legislativa, v. 35, n. 138, p. 193-212, abr./jun. 1998. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/377>. Acesso em: 21/04/2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 672 Distrito Federal. Relator: Min. Alexandre de Moraes. DJ: 08.04.2020. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF672liminar.pdf>. Acessado em: 20.04.2020

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Segurança nº 5.362 Piauí. Relator: Ministro Presidente Dias Toffoli. DJ: 07.04.2020. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaPresidenciaStf/anexo/SS5362.pdf>. Acessado em: 20.04.2020

BRASIL. STF. Suspensão de Tutela Provisória 175 São Paulo. Relator: Ministro Presidente Dias Toffoli. DJ: 15.05.2020. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaPresidenciaStf/anexo/STP175.pdf>. Acessado em: 20.04.2020

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