Voz do Associado ter, 05 de outubro de 2021
Compartilhe:

Por: Giuliano Campos Pereira

Procurador do Município de Luís Correia/PI. Advogado. Graduado em Direito (UESPI). Pós graduado em Direito Penal e Processual Penal (INTA-FID). Pós-graduado em Direito Civil e  Processual Civil (UNINASSAU). Pós-graduado em Direito Constitucional e Administrativo  (ESA/PI). Membro da Comissão da Advocacia Pública da OAB/PI.  

A proposta de Emenda à Constituição nº 32/2020, que trata da reforma  administrativa, em sua exposição de motivos, texto de intenções de sua respectiva autoria,  no caso o Presidente da República, tem como tema inicial uma suposta percepção social  de que o “Estado custa muito, mas entrega pouco”, com base em indicadores diversos; 

embora haja posicionamentos técnicos que, devidamente, questionam a respectiva  fundamentação e a adequação desta com a realidade1.  

Atualmente, neste sentido destaca-se estudo temático sobre a mencionada reforma promovido pelo Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado  (FONACATE), associação esta, formada por entidades que representam as atividades  essenciais do Estado, a fim de melhorar a qualidade do serviço público, por intermédio  da valorização dos seus respectivos servidores. 

A Constituição Federal dedicou aos Municípios, consagrando a forma federalista  de estado, a posição de ente político com autonomia legislativa, administrativa e  financeira, que se instrumentaliza por meio da definição de rol de competências, que estabelece critérios de legitimação dos atos do poder estatal, centrado nas atividades típicas de poder, em matéria normativa ou administrativa. 

Em seus artigos 21 e 23 enumera a competência não legislativa ou material, posto que a regulação de ações entre os entes políticos apresenta hipóteses onde esta é exclusiva  da União, marcada pela indelegabilidade do seu exercício, ou comum a todos os entes,  por meio da cooperação destes. 

Já nos artigos 22 e 24 estabeleceu a competência legislativa ou normativa, critério  de elaboração de leis, no primeiro esta é privativa da União, permitindo aos Estados  regular questões pontuais, por meio de lei complementar; no segundo trata-se de  competência concorrente entre União, com normas gerais, e Estados e Distrito Federal,  com normas suplementares ou mesmo gerais, caso aquela seja omissa, com possibilidade  de suspensão de eficácia destas por sobrevir norma geral da União.

Especificamente aos Municípios há ainda, tanto a opção de legislar sobre interesse  local, que é aquele não distinto dos demais entes, mas peculiar a sua própria existência;  bem como a de suplementar a legislação federal e estadual, seguindo as suas  particularidades políticas, previsões do art. 30, incisos I e II. 

É a partir deste cenário que ganha relevo o papel dos munícipios brasileiros de  agente local das políticas públicas, “visando coordenar os meios à disposição do Estado  e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e  politicamente determinados”2; seja pela aplicação mínima anual em ações e serviços  públicos de saúde, ou pela atuação prioritária no ensino fundamental e na educação  infantil e até mesmo pela organização dos seus respectivos sistemas de cultura. 

Deste modo, a partir dos dados do Caderno nº 43, revela-se importante avanço em  números, sendo que “entre 1986 e 2017, os vínculos públicos passaram de 1,7 milhões  para 6,5 milhões nos municípios; de 2,4 milhões para 3,7 milhões nos estados e de pouco  menos de 1 milhão para apenas 1,2 milhão no nível federal, considerando servidores civis  e militares”; por fim conclui: 

Em síntese, cf. gráfico 3 abaixo, pode-se dizer que o fato de parte  

expressiva do emprego público localizar-se no nível municipal, atrelado  

majoritariamente ao atendimento populacional direto em áreas da  

atuação estatal tais como serviços de segurança pública (guardas  

municipais), saúde, assistência social e ensino fundamental, não deveria  

causar nem estranhamento nem reações contrárias. 

Logo, é fundamental estabelecer debate profundo, transparente e democrático acerca de assunto tão delicado como o presente, uma vez que a pesquisa quantitativa  mostra-se simplista e acaba por esconder que tais números, antes de qualquer coisa,  representam a vontade da nossa atual ordem constitucional, que tem como um de seus  objetivos fundamentais a promoção, indiferente, do bem de todos os brasileiros. 

Este bem-estar passa, fundamentalmente, pela prestação adequada do serviço  público, que além de produzir um resultado material imediato, também torna sólida a  percepção do fundamento constitucional da cidadania, vínculo abstrato de inclusão do  indivíduo na vida institucional do Estado, sendo este ainda mais íntimo com o ente  municipal, já que ele constitui a esfera de poder mais próxima da população. 

De uma maneira geral, além dos questionamentos acerca do regime jurídico dos  servidores públicos, surge idêntica preocupação social, versando a mesma sobre o risco 

em potencial de tornar a prestação do serviço público cada vez mais deficiente, sendo que  a “dispersão institucional de responsabilidade implica menor atribuição de culpa pelos  cidadãos aos governos e seus fracassos (HOOD, 2014, p. 116)4”. 

Efeito igualmente sofrido pela Advocacia Pública municipal, função essencial à  Justiça e expressão do Poder Público, presenta este ativa ou passivamente, em juízo ou  fora deste, personificada por seus respectivos procuradores, que fazem repercutir os  interesses da Administração Pública, bem como zelam pela memória jurídica desta, 

constituída de aspectos processuais próprios. 

Posto que, o 1º Diagnóstico da Advocacia Pública Municipal5, recentemente  elaborado pela Associação Nacional dos Procuradores Municipais (ANPM), mostra que  apenas a terça parte dos municípios do Brasil têm pelo menos um procurador concursado,  demonstrando o quanto o serviço público no âmbito local ainda deve ser implementado,  para uma maior interiorização no país do exercício dos direitos fundamentais. 

Uma vez que a disponibilização de um serviço público específico à população é  um critério fundamental de verificação do mínimo existencial, “conjunto irredutível de  condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria existência  do indivíduo”6, que se relaciona com as prestações estatais de direitos sociais ou de  segunda dimensão (saúde, educação, segurança, etc.), revelando assim, o caráter essencial  destas para a efetividade do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. 

Porém, a atual concepção das funções do Estado, que busca reduzir o papel dos  servidores públicos, com olhos voltados somente para a contenção do gasto público,  esquece das duas principais características dos direitos sociais, conduta positiva na sua  concretização e proibição de retrocesso das garantias anteriormente concedidas. 

Os direitos não são pretensões absolutas, mas relativas. A atenção ao  

custo é apenas mais um caminho, paralelo a outros trilhados de modo  

mais habitual, rumo a uma compreensão melhor da natureza qualificada  

de todos os direitos, os constitucionais inclusive7. 

Entretanto, a referida proposta, quanto à eficiência do serviço público, não a  enfrenta de modo racional, pois se preferiu precarizar a segurança do cargo – que é não  apenas do agente público, mas também do Estado e da sociedade – representada pelo  atributo da estabilidade, diminuindo a sua extensão tão somente a um pequeno grupo de  servidores, posteriormente definidos em lei8.

Conduta esta que torna-se desproporcional, quando se analisa que os instrumentos  fundamentais de controle permanente da atividade do servidor público, criados na  reforma administrativa empreendida pela Emenda Constitucional nº 19/1998, ou não  foram objeto de complementação infralegal, como o procedimento de avaliação periódica  de desempenho, para perda de cargo público estável (art. 41, § 1º, III, CF)9, ou não foram  devidamente implantados, como a obrigatória avaliação especial de desempenho por  comissão instituída, para aquisição de estabilidade (art. 41, § 4º, CF)10. 

Contudo, o fato de o servidor público tornar-se estável não se trata de odioso  benefício, mas sim de prerrogativa funcional, já que esta se fundamenta em conferir meios  de atuação legítima ao servidor e, consequentemente, ao serviço público, baseados na  especificidade do exercício do cargo, sem desprezar o sistema, igualmente necessário, de  controle dos atos administrativos. 

Em função disso, é que o regime jurídico-administrativo tradicionalmente é  organizado pela comunhão de direitos e deveres, com destaque aos agentes públicos, que  com uma única conduta podem ser responsabilizados criminalmente (crimes contra a  Administração Pública), na seara cível (responsabilidade civil do Estado), no âmbito  administrativo (responder processo administrativo disciplinar), bem como pela prática de  atos de improbidade administrativa, além de outras repercussões jurídicas.  

Como o exemplo recente da Lei Complementar nº 173/2020, julgada  constitucional pelo STF, principal ato normativo decorrente do atual estágio pandêmico,  trata do Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus (Covid-19), trouxe  alterações à norma de Responsabilidade Fiscal (Lei nº 101/2000) e estabeleceu medidas  de auxílio financeiro da União para com os demais entes políticos, desde que  condicionados à proibição destes, até 31 (trinta e um) de dezembro de 2021, de concederem qualquer forma de reajuste salarial aos seus servidores, criação de cargos  públicos, alteração na estrutura funcional e contratação de pessoal, entre outras restrições. 

Desta maneira, é preciso termos consciência de que as reformas são necessárias  para correção da atuação do Estado, principalmente em complexos sistemas públicos, tal  como o previdenciário, o tributário e neste caso o administrativo, porém deve-se saber  qual a reforma adequada para tanto; imagino aquela que reconhece e contém os desníveis  funcionais, pois ser contra a corrupção, a baixa produtividade e a falta de atualização não  significa autorização para o total descrédito do serviço público, que sofre com os efeitos  destas, por conta da sua importância, em especial no atual momento de saúde pública. 

NOTAS: 

1 – Consoante Boletim Legislativo nº 92 da Consultoria do Senado Federal: Reforma  Administrativa: Aspectos Jurídico-Constitucionais da PEC nº 32, de 2020. Disponível em:  https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/589898/Boletim_legislativo_922021.pdf?s equence=1&isAllowed=y. Acesso em: 28 jun. 2021.  

2 – BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. In: Políticas públicas:  reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006, p 39. 

3 – Caderno da Reforma Administrativa nº 4: A verdade sobre os números do emprego público e  o diferencial de remunerações frente ao setor privado no Brasil. Disponível em:  https://fonacate.org.br/wp-content/uploads/2020/07/Cadernos-Reforma-Administrativa-N.4.pdf.  Acesso em: 01 jul. 2021.  

4 – SANTOS, Rodrigo Valgas. Direito Administrativo do Medo: Risco e Fuga da  Responsabilização dos Agentes Públicos. 1 ed. São Paulo: Thomson Reuters; 2020, p. 184. 

5 – MENDONÇA, Clarice Corrêa de; VIEIRA, Raphael Diógenes Serafim; PORTO, Nathália  França Figuerêdo. 1º Diagnóstico da Advocacia Pública Municipal no Brasil. 1 ed. Belo  Horizonte: Fórum, 2018. 

6 – BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF nº 45 MC/DF. Relator: Ministro Celso de Mello.  Brasília, 29 de abril de 2004. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo345.htm. Acesso em: 03 jul.  2021. 

7 – HOLMES, Stephen. SUSTEIN, Cass R. O Custo dos Direitos: Por que a liberdade depende  dos impostos. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2019, p.  78. 

8 – Conforme proposta do § 1º do art. 39-A, no sentido de que os critérios para definição de cargos  típicos de Estado serão estabelecidos em lei complementar federal.  

9 – Art. 41. [...] 

  • 1º O servidor público estável só perderá o cargo: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

[...] 

III - mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei  complementar, assegurada ampla defesa. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de  1998) 

10 – Art. 41. [...] 

§ 4º Como condição para a aquisição da estabilidade, é obrigatória a avaliação especial de  desempenho por comissão instituída para essa finalidade. (Incluído pela Emenda Constitucional  nº 19, de 1998)

Compartilhe: