Voz do Associado seg, 12 de outubro de 2020
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Resumo: Este artigo trata da necessidade de obediência ao Princípio da Autonomia dos Entes Federativos por todas as normas editadas durante o período da pandemia do Coronavírus (COVID-19).

Palavras chave: Pandemia. Normas jurídicas. Princípio da Autonomia dos Entes Federativos. Necessidade de observância.

Sumário. Introdução. 1.Nova legislação criada durante a pandemia. 2.Lei Complementar Federal 173. 3. Princípio da Autonomia dos Entes Federativos. 4.Decreto 64.994, de 28 de maio de 2020. Conclusão.

É sabido que vivemos um tempo de exceção. E como todo tempo de mudança abrupta, força as áreas do saber humano a se adaptarem ao novo, relativizando muitos de seus conceitos.

A medicina, por exemplo, viu-se obrigada a quebrar protocolos para a criação de uma vacina, pulando etapas e tornando-as menos burocráticas. Passou também a permitir tratamentos experimentais em pacientes acometidos pela COVID-19 diante da inexistência de um medicamento eficaz ao combate da doença. Não foi diferente com o direito. 

Na tentativa de normatizar a situação da pandemia do Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19), em que nos encontramos desde os primeiros meses deste ano, conferindo agilidade e inovação, muitas normas jurídicas foram editadas.

Impossível seria listar toda a legislação criada no ordenamento brasileiro na tentativa de disciplinar as mais diversas relações no período. São centenas de leis, decretos, resoluções e até mesmo Emenda Constitucional, editadas por todos os entes federativos.

Ainda que necessárias e urgentes, tais normas devem obedecer aos preceitos constitucionais, e neste sentido, importante conferirmos atenção àquelas que, no afã de regular uma situação de exceção, superaram princípios norteadores de todo o ordenamento jurídico brasileiro.

Nesse sentido, merecem atenção a Lei Complementar Federal 173, de 27 de maio de 2020 e o Decreto do Estado de São Paulo de número 64.994, de 28 de maio de 2020.

A Lei Complementar Federal 173, de 27 de maio de 2020, estabelece o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19), e altera a Lei Complementar Federal 101, de 04 de maio de 2020.

O dispositivo que merece comentário é o artigo 8º desta Lei Complementar, que proibiu despesas, de forma expressa, dos entes federativos, até 31 de dezembro de 2021.

Ainda que o momento seja de cautela com gastos públicos, tendo em vista a necessidade de despesas não previstas no combate à pandemia, principalmente na área de saúde, bem como da diminuição da arrecadação tributária em razão da restrição das atividades econômicas como um todo, a expressa vedação legal à prática de atos de gestão pelas diversas administrações dos entes fere, sem dúvida, a autonomia federativa. 

A crítica que se faz a tais imposições não trata de defender o gasto público de forma imoderada. De forma alguma. Mas de deixar que os entes federativos exerçam, de forma responsável e correta, suas competências administrativas, legislativas e tributárias, e dessa forma adequem suas despesas, inclusive com pessoal, à sua nova realidade arrecadatória.

Tais vedações poderiam sim acontecer, mas desde que advindas de legislação emanada pelos próprios entes federativos, com base em sua realidade orçamentária fática e em exercício das competências que lhe são afetas. 

Necessário relembrar, neste momento, que os artigos 1º e 18 da Constituição Federal dispõe sobre o pacto federativo:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;       

V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.

Ainda, de forma a ressaltar a grandeza do princípio da autonomia dos entes federativos, o artigo 60, § 4º da Constituição Federal o classificou como cláusula pétrea:

Art. 60 (...)

  • 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I - a forma federativa de Estado;

(...)

Dessa forma, observa-se a garantia constitucional e imutável, no ordenamento jurídico existente, da autonomia dos entes federativos, tomados, cada um, como um universo único e autônomo de poderes e atribuições.

Assim, disciplina o Excelentíssimo Ministro do Supremo Tribunal Federal em sua obra doutrinária:

De forma Sumária, a caracterização do estado federal envolve a presença de três elementos : a) a repartição de competências, por via da qual cada entidade integrante da Federação recebe competências políticas exercitáveis por direito próprio, frequentemente classificadas em político-administrativas, legislativas e tributárias; b) autonomia de cada ente, descrita classicamente como o poder de autodeterminação exercido dentro de um círculo pré-traçado pela Constituição, que assegura a cada ente estatal poder de auto-organização, autogoverno e autoadministração; e c) a participação na formação da vontade do ente global, do poder nacional, o que tradicionalmente se dá pela composição paritária do senado federal, onde todos os Estados têm igual representação.[1]

Importante ressaltar que a constitucionalidade de tal dispositivo já se encontra questionada junto ao Supremo Tribunal Federal. As Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6447 e 6450 suscitaram a declaração de inconstitucionalidade dos artigos 7 º e 8º da Lei Complementar 173.

Além da inconstitucionalidade apontada, as ADIs citadas alegam também ofensa à iniciativa legal, ao princípio da separação dos Poderes, ao princípio da eficiência, à revisão geral anual dos servidores públicos e à garantia da irredutibilidade de vencimentos.

De forma mais local, mas na mesma esteira das normas criadas com o intuito de disciplinar as relações na pandemia, está o Plano São Paulo.

Instituído por meio de Decreto do Governo do Estado de São Paulo - Decreto 64.994, de 28 de maio de 2020 - o Plano São Paulo criou faixas a serem enquadrados os municípios paulistas nas quais as atividades econômicas poderão ser retomadas, levando-se em consideração o melhoramento dos números da doença nos municípios. A intenção é a criação de uma quarentena heterogênea, na qual serão observados os índices epidemiológicos de microrregiões do estado.

São 5 as faixas criadas, a mais crítica é a vermelha, na qual as atividades econômicas permitidas são somente as essenciais, e sucessivamente laranja, amarela, verde e azul, conforme a melhora na capacidade hospitalar e a diminuição da propagação da doença, que permitirão a retomada gradual das atividades econômicas.

Ao que parece, diante da existência de 645[2] municípios no Estado de São Paulo e, assim, do argumento de impossibilidade de análise meticulosa de dados de cada um deles pelo Governo do Estado, optou-se pela análise regionalizada de dados, considerando-se não o município individualmente, mas a região em que se encontra.

Para tanto, foram utilizadas as dezessete regiões das Direções Regionais de Saúde, criadas pelo Decreto estadual 51.433, de 28 de dezembro de 2006, subdividida a região da Grande São Paulo em cinco, disciplinadas pela Lei Complementar Estadual 1.139, de 16 de junho de 2011.

O único Município analisado pelo Plano São Paulo de forma individualizada é a capital, que ficou excluída do critério de regionalização. Nesse ínterim, hoje o plano São Paulo contabiliza vinte e duas regiões.[3]

Observa-se, aí, a decisão do Governo do Estado de São Paulo pela análise de dados de municípios fisicamente próximos de forma única, como se um só fossem. 

Assim, a partir da instituição do Plano São Paulo, os municípios paulistas viram-se atrelados a um sistema regional de contabilização de dados relativos a dois critérios: (i) de capacidade hospitalar e (ii) de propagação da doença para que possam progredir nas fases de flexibilização até alcançarem a fase 5 - azul, na qual poderão funcionar todas as atividades econômicas.

O tratamento igualitário dos municípios paulistas obedecendo critérios de localização geográfica, a princípio pode parecer uma boa forma de agrupar os números fornecidos pelas secretarias de saúde respectivas. No entanto, não se pode deixar de observar que cada um dos municípios agrupados possui realidade distinta e deve ter preservada sua autonomia.

Nesse sentido, e retomando o que foi apresentado quanto à autonomia dos entes federativos, a análise de dados dos municípios paulistas de forma agrupada como faz o Estado de São Paulo afronta, de forma nítida, o Princípio Federativo.

Para exemplificar quão injusto, além de inconstitucional, claro, pode ser para um Município ter sua autonomia desrespeitada, pode-se imaginar um grupo de quatro Municípios agrupados e tendo seus números individuais analisados como único. Dois destes Municípios gastaram boa parte de seus orçamentos na aquisição de serviços, insumos e bens para contenção da pandemia. Contrataram mão de obra médica qualificada, adquiriram respiradores e montaram hospitais com boa quantidade de leitos de UTI. Estes suportaram durante todo o período da pandemia - que se diga, ainda perdura - os enfermos de suas cidades que procuraram os sistemas locais de saúde. Os outros dois pouco fizeram. Não investiram na saúde municipal, não aumentaram os leitos de UTI, nem adquiriram respiradores e quando o número de doentes aumentou tiveram que recorrer a transferência para outros municípios. Ora, não precisa de muito esforço para concluir pela injustiça desta situação e da ofensa ao princípio da autonomia federativa. De nada vale que um Município com uma gestão zelosa se esforce em gastar grande parte de seu orçamento no combate ao vírus se o Município vizinho nada fez e seus dados serão somados.

Para a progressão entre as faixas do Plano São Paulo, como já foi dito, leva-se em conta: a capacidade hospitalar e a propagação da doença não tomadas pelos Municípios individualmente, mas em conjunto com outros municípios da região a que pertence (com exceção da capital, como já explanado).

A regionalização, como disciplinou o Plano São Paulo já foi questionada nos tribunais. O Município de Marília, em sede de Mandado de Segurança (MS 2127817-18.2020.8.26.0000), questionou sua classificação na fase laranja do Plano São Paulo e pleiteou seu reenquadramento na fase verde, comparando-se com o Município de São Paulo, já que seus índices próprios eram significativamente melhores no mesmo período de apuração. A liminar parcialmente concedida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo abrandou as medidas de isolamento no Município de Marília. Contudo, os efeitos desta decisão foram suspensos pela decisão liminar na medida cautelar em pedido de suspensão de segurança, ajuizado pelo Ministério Público local, na qual, o Excelentíssimo Ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux, refutou a decisão do Tribunal de Justiça sob o seguinte argumento:    

Não se ignora que a inédita gravidade dessa situação impôs drásticas alterações na rotina de todos, atingindo a normalidade do funcionamento de diversas atividades econômicas e do próprio Estado, em suas diversas áreas de atuação. Todavia, exatamente em função da gravidade da situação, exige-se a tomada de medidas coordenadas, não se podendo privilegiar apenas uma ou outra política local em detrimento de todo o planejamento regional, estabelecido por autoridades administrativas competentes. Inegável, destarte, que a decisão atacada representa grave risco de violação à ordem público-administrativa, no âmbito do Estado de São Paulo, bem como à saúde pública, dada a real possibilidade que venha a desestruturar as medidas por ele adotadas como forma de fazer frente a essa epidemia, em seu território. [4]

Assim, o tratamento dos municípios paulistas de forma agrupada, como faz o Plano São Paulo, já foi referendado pela nossa máxima corte, ainda que para tanto a decisão supracitada reconheça serem atingidos princípios basilares do direito:

Entretanto, em juízo preliminar ainda não exauriente, entendo, neste primeiro momento, que a ausência de isonomia, nos termos assentados pela decisão impugnada, não é capaz, por si só, de justificar a concessão de privilégio à política local do Município de Marília em detrimento do planejamento regional, editado por autoridade competente e a partir de dados técnicos e científicos. 

Neste sentido, nítido é o desrespeito ao princípio da autonomia dos entes federativos. Não se refere à possibilidade de coordenação de esforços contra a pandemia de forma regionalizada como é, inclusive, de obrigação do Estado, mas da tomada de dados dos municípios de forma conjunta, sem observância de suas individualidades.

Diante de todo o exposto, e, em que pese a recente decisão do Supremo Tribunal Federal, observa-se que a Lei Complementar Federal 173, de 27 de maio de 2020 e o Decreto do Estado de São Paulo de número 64.994, de 28 de maio de 2020 claramente afrontaram os princípios constitucionais.

Desse modo, certo que estamos vivendo em um período ímpar, no qual as normas jurídicas devem ser inéditas e buscar disciplinar, da melhor forma, as relações jurídicas neste lapso temporal. Contudo, sob a égide do nosso Estado Democrático de Direito, os princípios constitucionais não podem ser violados com o argumento da necessidade de atuação rápida. Estes devem, a qualquer tempo e sob qualquer circunstância, serem respeitados.

[1] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os Conceitos Fundamentais e a Construção do Novo Modelo. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 173.

[2] Fonte: https://www.al.sp.gov.br/documentacao/municipios-paulistas/

[3] https://www.saopaulo.sp.gov.br/planosp/

[4] Liminar deferida em medida cautelar na SUSPENSÃO DE SEGURANÇA 5.403 SÃO PAULO, publicada

em 26 de junho de 2020.

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