Por: Ricardo Almeida Ribeiro da Silva,
Procurador do município do Rio de Janeiro. Professor da pós-graduação em Direito Tributário da Uerj/Ceped e do PJT/ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro). Mestre em Direito Público pela Uerj. Assessor jurídico da Abrasf. Advogado. Publicado em 3 partes pelo Conjur nos dias 12,13 e 14 de setembro.
Parte 1
1) Introdução
Três decisões recentes dos tribunais superiores têm provocado uma espécie de "crise de personalidade" no Imposto sobre Transmissões de Bens Imóveis (ITBI), gerando questionamentos capazes de abalar a sua trajetória histórico-constitucional e a sua higidez no ordenamento jurídico brasileiro vigente.
A primeira decisão dos tribunais a ser analisada nesta série de artigos é a mais recente e mais polêmica. Trata-se do acórdão proferido pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Recurso Especial nº 1.937.821 (Tema 1.113), com caráter repetitivo, interposto contra decisão colegiada do Tribunal de Justiça de São Paulo, decidindo um Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas.
Antes de passar ao caso concreto, vale acentuar que a análise de decisões judiciais num sistema (que se pretende) de precedentes exige que se percorra algumas etapas na pesquisa e compreensão da jurisprudência e dos julgados individualmente considerados.
Em primeiro lugar, deve-se aferir a situação processual do caso examinado antes de se enveredar pelo seu mérito. Essa etapa é importante porque esse iter analítico tem sido, cada vez mais, solapado por notícias abreviadas ou resumidas sobre a "jurisprudência dos tribunais" nas mídias tradicionais e sociais, que se equivocam sobre as matérias decididas pelos tribunais, ao ponto de serem quase "fake news" jurídicas.
Em segundo lugar, é preciso examinar e compreender alguns elementos que delimitam o campo de cognição do caso, tais como: o objeto da ação originária, os tipos de instrumentos recursais utilizados e o conteúdo dos respectivos julgamentos. Somente assim se poderá compreender o alcance e os limites das decisões recorridas.
2) Aspectos processuais
O caso em foco tem origem em ação judicial de repetição de indébito de ITBI proposta pela empresa Fortress Negócios Imobiliários contra o Município de São Paulo (MSP). Na petição inicial, a empresa requereu a devolução da diferença entre o valor do imposto calculado pela Secretaria Municipal de Fazenda paulistana e o que seria, segundo ela, devido com base no preço pago pela arrematação do imóvel em hasta pública judicial. Na mesma época, outras duas ações semelhantes de repetição de indébito de ITBI foram movidas pela empresa nos municípios paulistas de Bertioga e Itu.
A sentença julgou procedente a ação contra o município de São Paulo, determinando o recálculo do ITBI e adotando como valor venal do imóvel aquele fixado para fins de incidência de IPTU ou o valor da arrematação, "o que fosse maior" — no caso, o último, diante de uma base de cálculo bastante defasada de IPTU. O MSP apelou (13/12/2017) e a empresa, então, requereu a instauração de IRDR. Fez, contudo, uma delimitação ampla para o IRDR, sem mencionar casos semelhantes com necessidade de uniformização, apenas "casos futuros", indo muito além dos limites processuais estabelecidos pelo artigo 976 do CPC. Apesar disso, o pedido foi deferido.
Esse foi, então, recebido e processado pela Turma Especial de Direito Público do TJ-SP, que determinou a suspensão do curso processual da Apelação (23/04/2018), sem suspender nenhum recurso relativo ao tema. Até mesmo a apelação entre a Fortress e o município de São Paulo acabou julgada pela 14ª Câmara do TJ-SP (28/6/2018) — que não enfrentou a matéria tratada no IRDR, apenas a incidência ou não de juros no indébito pleiteado.
Contra esse Acórdão, foi interposto REsp pelo MSP (8/5/2019), que foi inadmitido na origem, mas acabou sendo conhecido após agravo de instrumento em REsp. Por falta de "pré-questionamento", o ARESP nº 1.493.616 foi rejeitado em decisão monocrática. A matéria, então, precluiu em 28/2/2020.
Neste ínterim, o 7º Grupo de Direito Público do TJ-SP julgou o IRDR (em 23/05/2019) e seus julgadores:
"FIXARAM A TESE JURÍDICA DA BASE DE CÁLCULO DO ITBI, DEVENDO SER CALCULADO SOBRE O VALOR DO NEGÓCIO JURÍDICO REALIZADO E, SE ADQUIRIDO EM HASTAS PÚBLICAS, SOBRE O VALOR DA ARREMATAÇÃO OU SOBRE O VALOR VENAL DO IMÓVEL PARA FINS DE IPTU, AQUELE QUE FOR MAIOR, AFASTANDO O VALOR DE REFERÊNCIA"
Ao final, do voto-vencedor, o desembargador Burza Neto assinalou que:
"Por essas razões, a base de cálculo do ITBI deve corresponder ao valor venal do bem imóvel transferido e, caso este valor seja inferior ao da negociação, deve prevalecer este último.
Ocorrendo isto, pelo meu voto, no julgamento do incidente, FIXO A TESE JURÍDICA DA BASE DE CÁLCULO DO ITBI, DEVENDO CORRESPONDER AO VALOR VENAL DO IMÓVEL OU AO VALOR DA TRANSAÇÃO, PREVALECENDO O QUE FOR MAIOR."
Um novo REsp foi interposto pelo MSP contra o acórdão do IRDR (8/8/2019), mas foi inadmitido na origem (4/9/2019). Todavia, após interposição de agravo pelo ente, foi conhecido e convolado pelo STJ em REsp (em 11/5/2021), sob o nº 1.937.821. Em 5/10/2021, esse recurso foi afetado ao regime dos recursos repetitivos. Em 24/2/2022, a 1ª Seção do STJ deu parcial provimento ao recurso do município de São Paulo, com as seguintes conclusões:
a) a base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação;
b) o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (artigo 148 do CTN);
c) o Município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com base em valor de referência estabelecido unilateralmente.
O MSP opôs Embargos de Declaração em 27/4/2022, alegando que o IRDR não resolveu as demandas repetitivas, pois sequer se referiu aos três casos da mesma empresa; que os demais casos apontados como repetitivos (Bertioga e Itu) foram julgados em sentido contrário ao do IRDR pelo TJSP; que não havia interesse processual na continuidade do REsp do MSP, contra o acórdão do IRDR; e que a parte do acórdão que desproveu o REsp promoveu uma reformatio in pejus na medida em que adotou o preço do negócio jurídico como base de cálculo do ITBI em detrimento do valor venal de mercado (próprio dos impostos sobre o patrimônio) sem sequer se referir ao critério adotado pelo IRDR – para que se aplicasse o valor maior. Os embargos foram rejeitados sob a alegação genérica de que não havia omissão, obscuridade ou contradição no acórdão do repetitivo.
Em 23/06/2022, o MSP interpôs Recurso Extraordinário ao STF alegando que o REsp seria descabido por força da disciplina constitucional (artigo 105, III, CRFB), na medida em que teria sido interposto contra IRDR decidido em abstrato, o que não seria possível segundo entendimento do próprio STJ (no RE nº 1.798.374). Além disso, diz ter havido agressão ao devido processo legal constitucional (artigo 5º, LIV, CRFB), na medida da reformatio in pejus que teria ocorrido contra o recorrente quando o acordão afastou o critério do IPTU e trouxe critérios abstratos que sequer estavam em discussão. Vale ressaltar que o Recurso Extraordinário ainda não foi julgado, não havendo, assim, trânsito em julgado da decisão do STJ.
2) Efeitos das decisões proferidas no caso
a) Limites Processuais do Acórdão do REsp 1.937.821.
Para além da falta do trânsito em julgado, cumpre observar que, por ser oriundo de um RE interposto contra Acórdão de IRDR de Tribunal Estadual, só pode ser considerada válida e eficaz se estiver vinculada a um caso concreto ("causa decidida"). Do contrário, não seria sequer cabível o seu processamento como apelo especialíssimo, como já assentou o próprio STJ em recente decisão da sua Corte Especial, ao julgar procedente o incidente de inconstitucionalidade suscitado no Recurso Especial 1.798.374 (18/5/2022).
Ainda, é necessário circunscrever a vinculatividade do Acórdão proferido no REsp nº 1.937.821 ao objeto do caso concreto julgado pelo TJ-SP. A repetição de indébito proposta pela Fortress se limita à discussão da base de cálculo do ITBI em arrematações de imóveis ofertados em hastas públicas judiciais. Nesse sentido, a doutrina abalizada de Antônio do Passo Cabral [1], nos comentários do artigo 987, e a de Cássio Scarpinella Bueno [2] assim também entendem na medida em que trazem que apenas um caso concreto a ser julgado (e não um incidente formado a partir de um punhado) seria capaz de legitimar o cabimento daqueles recursos na perspectiva constitucional (artigos 102, III e 105, III, CRFB).
Com efeito, ainda que o IRDR e o voto do ministro Gurgel de Faria tenham se arvorado em digressões abstratas sobre a base de cálculo e modalidades de lançamento cabíveis na gestão fiscal do ITBI pelos municípios brasileiros, não se pode extrair destes Acórdãos um caráter de norma geral, transcendente dos limites do caso concreto e da res in iudicio deducta. Do contrário, seria uma ultrapassagem dos limites do artigo 976, CPC, e, sobretudo, da competência recursal do STJ, delimitada pelo artigo 105, III, CRFB, conforme confirmado pela Corte Especial do STJ e pelo STF (RE 581. 947). Isso poderia sustentar a inconstitucionalidade suscitada pelo MSP.
Nesse sentido, frisa-se: O entendimento fixado pelo STJ no REsp 1.937.821 só pode ser interpretado como aplicável aos casos de aferição da base de cálculo do ITBI relativos a arrematações de imóveis em hastas públicas e não a todas as hipóteses de alienação sujeitas ao ITBI. Somente essa matéria vinha sendo decidida pelo STJ nesse sentido. Não havia jurisprudência sua que sustentasse editar um tema de Repetitivo para a discussão de base de cálculo de ITBI em outras hipóteses de alienação de imóveis, sobretudo em negócios jurídicos particulares!
O preço pago na arrematação em hasta pública (salvo se "preço vil") já era o valor adotado nas legislações de vários municípios brasileiros [3]. Optavam pela praticidade fiscal na definição do elemento quantitativo do fato gerador abstrato do imposto. Pela publicidade e formalidade dos atos, essa modalidade de alienação imobiliária (em sede judicial) dá segurança jurídica suficiente para que as autoridades fiscais tenham, nesse valor, um indicador objetivo, confiável, do valor venal do imóvel para fins de incidência do ITBI, já que insujeito à livre disposição das partes negociantes.
b) A decisão de mérito e seus fundamentos (RE 1.937.821): matérias não integrantes da "causa decidida"só podem ser entendidas como obiter dicta
O imperativo processual da "causa decidida" limita o pedido do REsp e o campo de cognição do STJ no caso. Por força do princípio da non reformatio in pejus, a conclusão do julgado só poderia determinar a adoção dos valores fixados pela Prefeitura ou a manutenção do critério alternativo: o valor venal declarado (assumido como indício do valor de mercado efetivo e atual) ou a base de cálculo do IPTU — o que fosse o maior. Neste sentido, a 1ª Seção do STJ jamais poderia derivar os debates para outras hipóteses que não foram objeto do caso concreto e muito menos julgar o caso em desfavor do único recorrente.
A abordagem geral sobre base de cálculo e modalidades de lançamento só pode ser entendida como obiter dicta. Isto é, como manifestações circunstanciais sobre outras hipóteses de incidência do ITBI, diversas das alienações de imóveis decorrentes de arrematações em hastas públicas, em relação às quais o Acórdão não possui teor vinculativo algum. Isso afrontaria os limites constitucionais que balizam a sua competência recursal, a divisão de Poderes e o federalismo fiscal.
c) Limites processuais do acórdão: aplicação restrita ao Poder Judiciário, conveniência ou não, de sua adoção pelas administrações públicas municipais
Por fim, é relevante a discussão sobre a vinculatividade da decisão às administrações públicas municipais. Os municípios que possuírem leis prevendo a incidência do ITBI sobre o valor venal do imóvel (calculado pela prefeitura) estão obrigados a acatar a decisão do STJ? Pode-se adiantar que não.
A decisão do REsp Repetitivo não tem alcance e grau de vinculatividade do Poder Executivo ou das administrações públicas no Brasil. Entretanto, há diversos preceitos processuais insertos no Código de Processo Civil brasileiro determinando a vinculação automática de todos os graus do Poder Judiciário à matéria decidida em recursos repetitivos, inclusive devendo ser deferida tutela da evidência (artigo 311, inciso III do CPC).
No entanto, as municipalidades não estão obrigadas a alterarem a sua legislação. Deve-se ponderar, contudo, em em juízo de conveniência e oportunidade, quanto ao seguimento ou não da decisão do STJ, inclusive em vista de eventual busca pela superação total (overruling) ou parcial (overriding) do precedente por decisão futura do próprio STJ e, especialmente, do STF.
3) Conclusão
A análise do acórdão permite concluir:
1) O Acórdão proferido no REsp nº 1.937.821 não transitou em julgado, sendo objeto de Recurso Extraordinário interposto pelo município de São Paulo, cujo pedido de anulação se baseia, principalmente, em dois fundamentos:
a. O RESP em foco violou a hipótese de cabimento prevista no inciso III, do artigo 105 da Constituição, não podendo versar sobre tema genérico, abstraindo-se da causa decidida, nos termos do que foi recém assentado pela Corte Especial do STJ no julgamento do incidente de inconstitucionalidade nº 1.798.374;
b. O referido RESP não poderia realizar um julgamento extra petita e muito menos promover uma reformatio in pejus, uma vez que o único recorrente era o próprio município de São Paulo, e o julgamento do IRDR ateve-se a critério totalmente distinto e limitado às arrematações;
2) Ainda que houvesse transitado em julgado, o Acórdão proferido em Recurso Especial repetitivo não tem efeitos vinculantes para as administrações públicas tributárias, nem mesmo para a do município de São Paulo – havendo, todavia, o risco de maior velocidade de futuras decisões em litígios judiciais, acolhendo automaticamente os critérios adotados neste acórdão — caso transitado em julgado - ainda que os seus efeitos sejam compreendidos de forma bem mais restrita da que está sendo difundida nas mídias especializadas, restringindo-o aos casos de arrematações em hastas públicas.
3) Diante das limitações processuais impostas pelo critério da "causa decidida", nos termos do inciso III do artigo 105 da Constituição de 1988, o Acórdão do RESP 1.937.821 só pode ser entendido como válido e eficaz para as discussões acerca da base de cálculo do ITBI para arrematações em hastas públicas, inclusive porque o entendimento pretérito do STJ e de diversas legislações municipais já apontavam o montante do lance vencedor do praceamento do imóvel como valor seguro para fins de fixação da base de cálculo, considerando-o um procedimento formal realizado em sede judicial, capaz de fornecer um valor objetivo e seguro, não disponível à livre negociação e às subjetividades das partes, ainda possa ser criticado por ser uma espécie de "venda forçada".
[1] Cf. In: CABRAL, Antônio do Passo; CRAMER, Ronaldo (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 1.452-1.453.
[2] Cf. Manual de Direito Processual Civil. 8 ed., 2002, São Paulo: SaraivaJur.
[3] Cite-se, como exemplo, as seguintes legislações municipais: Porto Alegre (Lei Complementar Municipal n. 197/89); Florianópolis (Lei Complementar nº 007/1997, com a redação dada pela LC 683/2019); Belo Horizonte (Decreto n. 17.026/2018 (regulamenta a Lei nº 5.492/88); Curitiba (Lei Complementar nº 108/2017); Porto Velho (Lei Complementar nº 878/2021).
Parte 2
1) Introdução
Como analisado na parte 1 deste artigo, o voto do ministro Gurgel de Faria, empreendeu digressões para além da "causa decidida", por vezes contraditórias, sobre aspectos genéricos da hipótese de incidência, em especial sobre (1) a base de cálculo do ITBI e (2) as modalidades de lançamentos cabíveis, desenvolvendo um discurso de cariz normativo. Passa-se a analisar nesta parte 2, a questão da base de cálculo do ITBI.
2) Aspectos e efeitos do julgamento do mérito
2.A) Dúvidas persistentes sobre os argumentos e conclusões do julgado, diante de contradições e imprecisões acerca da base de cálculo
Para além de serem meras obiter dicta, as digressões do julgado acerca da base de cálculo e das modalidades de lançamento do ITBI para hipóteses alheias à alienação de imóveis em hastas públicas se apresentam como bastante confusas e contraditórias, gerando dúvidas sobre quais critérios foram efetivamente alvitrados pelo relator. Ou seja, mesmo os que pretendem qualificar a fundamentação ventilada no voto como a ratio decidendi do acórdão têm como incerta a base de cálculo definida pelo decisum.
O voto mistura precedentes que entendem que a base de cálculo do ITBI é o valor venal hipotético do imóvel (obtido em "condições normais de mercado"), dando a entender ser o "preço efetivamente pago na transação imobiliária". Do texto do voto do ministro Gurgel de Faria, é possível apreender três linhas de raciocínio que trilham caminhos distintos, ensejando algumas contradições e indefinições no julgado em análise.
Primeiro, o ministro lê o artigo 38, CTN, favoravelmente ao uso do valor venal hipotético como critério de definição da base de cálculo (Imposto sobre o Patrimônio). Diz ele:
"[...], a expressão “valor venal” contida no art. 38 do CTN deve ser entendida como o valor considerado em condições normais de mercado para as transmissões imobiliárias. (...) presume-se que o valor de mercado daquele específico imóvel corresponde ao valor da transação informado na declaração do contribuinte, com base no princípio da boa-fé, sendo que, reitera-se, essa presunção pode vir a ser afastada pelo fisco em regular processo administrativo, desde que observado o procedimento disposto no art. 148 do CTN".
Ressalva, porém, que isso não quer dizer que o preço de venda reflita, necessariamente, o valor de mercado, havendo hipóteses em que serão nitidamente incompatíveis, não permitindo a sua adoção como critério para esse fim.
Já em outro trecho, posiciona-se favorável à adoção do preço do negócio jurídico como o critério (Imposto sobre Consumo do Imóvel). Coloca ele:
"Nessa modalidade de lançamento (declaratória), em face do princípio da boa-fé objetiva, presume-se que o valor da transação declarado pelo contribuinte está condizente com o valor venal de mercado daquele específico imóvel, presunção que somente pode ser afastada pelo fisco se esse valor se mostrar, de pronto, incompatível com a realidade, a justificar a instauração do procedimento próprio para o arbitramento da base de cálculo, em que assegurado ao contribuinte o contraditório necessário para apresentação das peculiaridades que justificariam o quantum informado."
Há, também, ocasiões em que aplica um "critério indefinido" (compatibilidade dos dois anteriores). Diz ele que, embora haja critérios objetivos para a definição do valor médio de mercado de um imóvel (metragem, localização etc.), a "avaliação de mercado específica de cada imóvel transacionado pode sofrer oscilações para cima ou para baixo desse valor médio, a depender, por exemplo, da existência de outras circunstâncias igualmente relevantes e legítimas para a determinação do real valor da coisa" — como benfeitorias e interesses pessoais do comprador e do vendedor, ajustando o preço.
Se, por um lado, reitera-se a expressão valor venal "em condições normais de mercado", a ressalva de que a administração tributária pode "discordar do valor declarado" induz que o preço pago no negócio jurídico é que seria a base de cálculo, pois "o Fisco poderia apenas provar se houve (ou não) pagamentos por fora" não declarados, ou redutores do preço pago, por força de em alguma onerosidade retributiva de ordem subjetiva, oculta ou paralela, tais como, amizade de longa data, benefício para uma pessoa da família do comprador, entre outras.
Como se verá abaixo, a definição da base de cálculo não apenas altera a base de incidência do ITBI, mas a sua própria natureza jurídica.
II.B) Harmonização das conclusões e dos fundamentos do acórdão com a jurisprudência do STJ.
O STJ nunca afirmou que a base de cálculo do ITBI é o valor do negócio jurídico, isto é: o "preço pago na escritura" ou "preço da transação", mas já admitiu que o preço constante do título aquisitivo pode ser um elemento indiciário legítimo do valor venal do imóvel; Porém, o STJ nunca qualificou o "preço pago" como a base de cálculo categorial do ITBI, sendo apenas um indicador que pode sugerir a mudança da base de cálculo para maior (no pré-cálculo da guia de recolhimento) ou no acolhimento de um pedido de revisão do valor venal adotado como critério para o cálculo e recolhimento antecipados. Assim se entende a partir do largo histórico de jurisprudência (Confira-se: REsp 1.725.761 SP 2018/0037742-9, AgRg no AREsp 839173 SP 2016/0001072-4, AgInt no AREsp 1.191.604 SP 2017/0272930-7, todos do STJ)
II.C) Harmonização do entendimento com o sistema tributário nacional atual e histórico e com a jusrisprudência do STF
O ITBI se define legal e historicamente como um IMPOSTO SOBRE PATRIMÔNIO, cuja base de cálculo deve ser o valor do bem em sua expressão econômica e não o preço pago no negócio jurídico — já que esse último nem sempre revela a grandeza econômica do bem adquirido em razão de questões temporais ou subjetivas que afetam a onerosidade da transação imobiliária, como a venda forçada (em leilão, hasta ou praça pública), aspectos subjetivos (amizade entre as partes, por exemplo) que resultam em preço inferior ao valor de mercado do imóvel.
A definição da base de cálculo vinculada ao valor venal do imóvel no mercado se confirma também pela disciplina do STN. O CTN assim expressa em seu artigo 35, caput.
Vale lembrar que o CTN fora editado na grande Reforma Tributária promovida pela EC. Nº 18/65, que inseriu o "Imposto de Transmissão de Imóveis e Cessão de Direitos Aquisitivos" no grupo dos Impostos sobre Patrimônio e Renda.
Assim, a expressão "valor venal" contida no artigo 38 do CTN ("A base de cálculo é o valor dos bens ou direitos transmitidos") só pode ser entendida como o valor em condições normais de mercado para as transmissões imobiliárias, isto é, o valor econômico-patrimonial.
O ITBI é desdobrado da tributação de heranças e sucessão patrimonial, especialmente dos "bens de raiz". O primeiro "descolado" do imposto sobre heranças e legados foi o "imposto sobre doações" (gift tax). Todavia, a ocorrência de vendas onerosas entre vivos entre parentes simuladas e utilizadas como camuflagem para antecipar a sucessão originou o imposto de transmissão onerosa inter vivos (patrimonial).
Na Antiguidade, já existia tributação de heranças, criada para custear "objetivos nobres", mas cuja real finalidade era a de fortalecer o poder do imperador [1], do rei e, depois, do Estado, contra a ampliação das dinastias familiares. Na França medieval, instituiu-se o "relief" (ou rachat), imposto de transmissão de feudo para um herdeiro em razão da morte do seu proprietário (um senhor feudal). Era alternativa à cobrança da taille, da qual as "terras nobres" do baronato tradicional estavam isentas [2].
Em Portugal, foi similar. As sisas tinham três fontes de cobrança — comércio, bens de raiz e "encabeçamentos", sendo notável em relação aos imóveis. Portugal negava privilégios para os nobres em matéria de tributação pelas sisas (inclusive nas transmissões dos "bens de raiz"), apesar de ser muito condescendente com o "Estado Eclesiástico" e de garantir privilégios em favor de certas famílias abastadas ou poderosas. António Manuel Hespanha, em seu artigo "Finanças Portuguesas nos Séculos XVI e XVII", põe que a distinção entre nobres e não nobres nunca foi muito aparente para fins de tributação real, inexistindo privilégios em alfândegas, sisas ou décimas, apenas em tributos que não entravam no cálculo das finanças da coroa [3].
Chega no Brasil instituído no Alvará de 3/6/1809 sob o nome de "imposto da sisa", tal como a décima sobre heranças e legados (Alvará de 17/6/1809). Foi posteriormente reformado e previsto como "imposto sobre transmissão de propriedade", no artigo 9º, III da Constituição de 1891, passando-o à competência dos Estados. Englobava tanto as transmissões causa mortis, como as doações e transmissões onerosas entre vivos, sempre com caráter de imposto patrimonial.
Na Constituição de 1934, dividiu-se a sua incidência nas figuras do "imposto de transmissão de propriedade causa mortis" (artigo 8º, I, b) e do "imposto sobre a transmissão de propriedade imobiliária inter vivos" (artigo 8º, I, c) – o que foi mantido pela Constituição de 1937 (artigo 23, I, b e c) e pela Constituição de 1946 (artigo 19, II e III). Com a EC nº 5/61 o imposto de transmissão de bens inter vivos foi transferido para a competência dos municípios (artigo 29, III), mantendo o imposto de transmissão causa mortis e doações na competência dos Estados, com pequenas alterações na sua redação (artigo 19, I, e § 1º e 2º). A competência dos municípios acabaria revertida pela EC. Nº 18/65, sendo reintegrada à dos Estados, com o acréscimo das Cessões de Direitos (artigo 9º, caput, e §§ 1º a 4º) — subterfúgio utilizado para transferir o domínio de bens de raiz, sem o pagar o imposto. Esse último regime foi mantido pela Constituição de 1967 (artigo 24, I, e §2º), pelo Ato Complementar 40, de 1968 e pela EC nº 1/69. Finalmente, a CRFB/88 recepciona o regime, transferindo, novamente, para os municípios e Distrito Federal, a competência para instituição e cobrança do ITBI (transmissões onerosas, inter vivos) no inciso II do artigo 156, II. Os Estados permaneceram com o poder de instituir e cobrar o imposto de transmissão causa mortis e doações (artigo 155, I).
Esse histórico tributário das transmissões de bens emana seu caráter patrimonial, abrangendo as hipóteses de transmissão de bens imóveis inter vivos, gratuita ou onerosa, por transferência de direitos aquisitivos ou causa mortis. Põe a doutrina de Ricardo Lobo Torres, in verbis:
"O que autoriza que tais impostos [ITR, IPTU, ITBI, ITCMD e IR] sejam agrupados dentro do mesmo subsistema é a matéria econômica comum sobre que assentam: a renda auferida, imobilizada ou transmitida. De feito, todos eles incidem sobre base muito semelhante, estremando-se em função da periodicidade ou das características formais do ato jurídico: não há nenhuma dúvida, por exemplo, que as doações e legados constituem incremento da renda. Por isso Tipke engloba, em sua proposta de sistema tributário ideal, os impostos sobre o patrimônio e o capital debaixo da denominação de imposto de renda (Einkommensteuer), ao qual se contrapõem os impostos sobre a renda consumida (Einkommensverwendung)" [4].
A distinção é mais visível noutros sistemas tributários, nos quais as alienações de imóveis são submetidas a duas incidências tributárias diferentes: por imposto patrimonial sobre transmissão/aquisição do bem de raiz (v.g. real estate transmission tax — rett) e por imposto sobre o consumo do imóvel (IVA). Veja-se o exemplo dos seguintes países:
Portanto, sendo a base de cálculo a expressão quantitativa do signo presuntivo de riqueza que define a natureza do imposto, conclui-se que ela se vincula ao valor venal do bem, cuja expressão econômica deve ser aferida em condições ordinárias de mercado. A capacidade contributiva se estadia exatamente nesta dimensão econômica patrimonial do imóvel. Aí está, inclusive, o motivo pelo qual o adquirente é o contribuinte ontológico do imposto de transmissão de bens imóveis, e não o alienante. Portanto, o que interessa é a grandeza econômica do imóvel adquirido, ainda que o preço de ocasião seja diverso por conjunturas peculiares àquele negócio jurídico.
O imposto patrimonial se distingue de um imposto sobre o consumo ou "circulação" do bem, que tributa o preço do negócio jurídico, cujo valor, como já colocado, nem sempre revela sua grandeza mercadológica.
Sérgio Vasques, em análise da Sexta Diretiva da Comunidade Europeia sobre o que é o PREÇO do bem ou do serviço para fins de tributação do seu consumo, diz: "E é neste sentido que se fixa o valor tributável para efeitos de IVA como tudo o que constitua ‘a contraprestação que o fornecedor ou o prestador tenha recebido ou deva receber" [5]. Não é por outro motivo que a ABNT normaliza o tema (ABNT NBR 14653-1:2019, item 0.5, parte geral da avaliação de bens), na linha de outras definições de "valor de mercado" (Market value), como a da International Valuation Standars Council (IVS) (2022) e do do European Group of Valuers' Associations (TEGOVA) [6].
Diante desse quadro, não se poderia concluir que o REsp n. 1.973.821 inova e define o valor pago como a base de cálculo categórica do ITBI. Isso ofenderia o seu caráter patrimonial, a disciplina do Código Tributário Nacional, o histórico constitucional da tributação patrimonial do Brasil e, no limite, a própria jurisprudência prévia assentada pelo próprio STJ.
3) Conclusão
O acórdão é incerto sobre a definição da base de cálculo do ITBI. Não é claro se adota o "valor venal auferido (hipoteticamente) em condições normais de mercado", ou se o "preço pago na celebração do título".
A adoção do segundo critério não encontra precedente na jurisprudência do STJ para alienações de imóveis diversas das arrematações em hastas públicas e contraria a disciplina constitucional atual e histórica do imposto de transmissão, bem como a normativa expressa do CTN (capítulo III do Livro II e art. 38), que enquadra o ITBI como imposto sobre patrimônio e renda, e nunca como um imposto sobre o consumo.
Afinal, incidir o ITBI sobre preço do negócio jurídico o transformaria em imposto sobre o consumo, previsto em diversos sistemas tributários internacionais que submetem a transação ao IVA e a aquisição da propriedade ao imposto de transmissão ("RETT"). A primeira visa a gravar a manifestação de riqueza "renda consumida". A segunda, "renda imobilizada".
Contudo, o STN os enquadra no campo da tributação sobre o patrimônio, de modo que não se pode adotar o "preço da venda" do título aquisitivo como a riqueza tributável, mas sim o valor venal do imóvel objetivamente calculado em condições normais de mercado, como a única base de cálculo desta espécie impositiva.
Continua parte 3
[1] VICESIMA. [S. l.], 31 jul. 2014. Disponível em: https://bit.ly/3Q0z8gr. Acesso em: 4 ago. 2022. Vide também CLARK, Patrick E. Taxation and the Formation of the Late Roman Social Contract. 2017. Tese de Doutorado (História) - University of California Berkeley, [S. l.], 2017. Disponível em: https://bit.ly/3AUYF69. Acesso em: 4 ago. 2022.
[2] Cf. David Parker. "Absolutism, Feudalism and Property Rights in the France of Louis XIV. Past & Present", [s.l.], n. 179, p. 60–96, 2003. Disponível em: https://bit.ly/3R1LYML. Acesso em: 4 ago. 2022.
[3] Hespanha, A. M. (2013). As Finanças Portuguesas nos Séculos XVII e XVIII. Cadernos Do Programa De Pós-Graduação Em Direito – PPGDir./UFRGS, 8(2). https://doi.org/10.22456/2317-8558.44292.
[4] V. Tratado de Direito Tributário Brasileiro, Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 239-240.
[5] "Imposto sobre o Valor Acrescentado". Coimbra: Ed. Almedina, 2016, p. 176.
[6] Cf. European Valuer, https://tegova.org./sta. Visitado em 15 de agosto de 2022
Parte 3
1) Introdução
Nesta última parte, será analisado o tema das modalidades de lançamento tributário do ITBI. Também nesta matéria, o voto-condutor do ministro Gurgel de Faria é disperso e genérico sobre as modalidades de lançamento cabíveis, extrapolando a discussão do caso concreto, que se restringe ao litígio sobre a base de cálculo do ITBI em arrematações de imóveis em hastas públicas, envolvendo apenas a disputa sobre a utilização, ou não, do "valor venal da planta genérica do IPTU ou do valor pago em juízo pelo arrematante, o que fosse maior".
2) Contradições e equívocos do acórdão do RESP 1.937.821. Lançamento por declaração ou por homologação? Definição de arbitramento
Similar ao que se verifica na parte do voto que trata da base de cálculo do ITBI, o ministro Gurgel de Faria extrapola o objeto da causa decidida em relação às "modalidades de lançamento" e traz argumentos contraditórios e descolados da realidade normativa fiscal da maioria dos municípios.
Ele parte da premissa de que o município de São Paulo realizara um "lançamento por declaração", uma vez que, diante da informação prestada pelo adquirente, não poderia realizar um lançamento de ofício, baseado em avaliação única pré-fixada. Segundo o voto, só poderia realizar um "lançamento por arbitramento". Afirma-se, ainda, que o lançamento por arbitramento (previsto no artigo 148 do CTN) exige um contraditório prévio, constituindo-se numa espécie de "ato bilateral" ou de "procedimento dialético" obrigatório.
Confira-se:
"Lançamento por Declaração ou Homologação
Após cuidadosa reflexão, cheguei à conclusão de que o ITBI, em razão de seu fato gerador, somente comporta duas das modalidades de lançamento originário: por declaração ou por homologação, a depender da legislação municipal de cada ente tributante, sendo inviável ao fisco proceder, de antemão, ao seu lançamento de ofício.
Se a norma local exigir prévio exame das DECLARAÇÕES DO CONTRIBUINTE pela Administração para a constituição do crédito tributário, estaremos diante de um lançamento por declaração.
Nessa modalidade de lançamento, em face do princípio da boa-fé objetiva, presume-se que o valor da transação declarado pelo contribuinte está condizente com o valor venal de mercado daquele específico imóvel, presunção que somente pode ser afastada pelo fisco se esse valor se mostrar, de pronto, incompatível com a realidade, a justificar a instauração do procedimento próprio para o arbitramento da base de cálculo, em que assegurado ao contribuinte o contraditório necessário para apresentação das peculiaridades que justificariam o quantum informado.
(...)
Entretanto, se a legislação municipal disciplinar que caberá ao contribuinte apurar o valor do imposto e efetuar o seu pagamento antecipado sem prévio exame do ente tributante, estaremos diante de um LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO. (...)
Tanto o lançamento por declaração quanto o (lançamento) por homologação estão justificados pelas inúmeras circunstâncias já referidas que podem interferir no específico valor de mercado de cada imóvel transacionado, circunstâncias cujo conhecimento integral somente os negociantes têm ou deveriam ter para melhor avaliar o real valor do bem quando da realização do negócio.
(...)
No caso, diversamente do afirmado pelo município recorrente, a sua tributação do ITBI não se dá por homologação, visto que não há pagamento antecipado do imposto sem prévio exame do fisco, mas, ao contrário disso, a Administração impõe ao contribuinte o valor do crédito a ser recolhido.
(...)
Esse denominado valor venal de referência, ou equivalente, quando muito, poderá justificar a ação fiscal para apurar a veracidade da declaração prestada, mas, em hipótese alguma, pode servir para antecipar tal juízo [...]"
Entretanto, ao contrário do que presumiu o voto, a imensa maioria dos municípios não realiza lançamento por declaração.
O fornecimento de guia para o pagamento do ITBI decorre de solicitação formulada pelo interessado nos sistemas das secretarias de fazenda ou de finanças. A guia expedida não é lançamento tributário, já que não é definitiva, não permite a exigibilidade do imposto em caso de não-pagamento na data ou no prazo apontando no documento, tampouco enseja penalidades, inscrição em dívida ativa, cobrança extrajudicial ou judicial (execução fiscal). A guia de ITBI expedida traz apenas um pré-calculo do imposto, não definitivo, e discutível mediante pedido administrativo de reavaliação do imóvel, sendo desnecessário que o requerente seja parte na transação imobiliária futura — inclusive porque a imensa maioria das solicitações de guias antecede a própria constituição do título aquisitivo.
Este é o procedimento adotado no município de São Paulo, no qual, em 2021, foram expedidas mais de 200 mil guias de ITBI, tendo sido protocolados apenas 80 requerimentos de reavaliação dos imóveis para alterar guias destinadas ao recolhimento antecipado do imposto.
No caso, a Fortress pediu a guia com o pré-cálculo do ITBI e pagou voluntariamente o valor nela indicado. Caso não pagasse, não ficaria sujeita ao lançamento tributário, mas apenas à eventual fiscalização, diante da arrematação de imóvel em hasta pública.
A maioria dos municípios não prevê e não realiza lançamentos por declaração ou lançamentos de ofício baseados em valores pré-fixados. A guia com valor indicado para pagamento voluntário contempla apenas um pré-cálculo do imposto, cujo pagamento é exigido antecipadamente à celebração do título aquisitivo ou, se este já tiver sido constituído, antes do registro no RGI.
Diante dessas características e das normas de regência, estes atos e procedimentos fiscais só podem ser enquadrados como lançamentos por homologação. Os demais atos realizados pelos interessados são de colaboração.
A vinculação da guia ao valor entendido como correto pelo Município, a partir de suas avaliações periódicas, de outras aquisições informadas voluntariamente pelos contribuintes ou de pesquisas sistemáticas, inclusive com uso de I.A. e acesso a bancos de dados públicos ou publicizados — v.g. o convênio do município de São Paulo com o "Zap Imóveis", cruzando dados deste com os de outros bancos de dados —, tem por objetivo evitar a necessidade de fiscalizações a posteriori, vista a facilidade de se manipular o recolhimento (a menor) do imposto, pela informação unilateral do preço da escritura.
Vale lembrar que o subfaturamento de bens imóveis na celebração de escrituras públicas é corriqueiro no país, objetivando ocultar recursos por meio de possível valorização futura do imóvel adquirido. Deixar às partes a definição da base de cálculo para o recolhimento antecipado do imposto desnatura o seu caráter patrimonial e representa um grande incentivo à sonegação tributária e à criminalidade financeira no país.
Portanto, os procedimentos fiscais que exigem a informação do valor por parte do interessado, a expedição de guia pela prefeitura com o pré-cálculo do imposto (que poderá ser contestado mediante pedido de revisão de avaliação), e a exigência do recolhimento antecipado só podem ser enquadrados na modalidade de lançamento prevista no artigo 150, CTN. Trata-se de hipótese de incidência em que é dever do contribuinte antecipar o pagamento do ITBI antes da lavratura do título aquisitivo ou, quando este ocorrer sem o recolhimento prévio, antes do seu registro junto ao RGI.
Outro ponto importante é a compreensão do que se deve entender como "lançamento por arbitramento". A interpretação dada pelo Acórdão sobre o ato e procedimentos realizados à luz do artigo 148, CTN, é inusitada ao definir o arbitramento como uma espécie de ato ou procedimento bilateral, contrariando toda a doutrina. Destaca-se alguns desses trechos do voto:
"RESP 1.937.821
Lançamento por Arbitramento
Constata-se, dessa forma, que, dadas as características próprias do fato gerador desse imposto, a sua base de cálculo deverá partir da declaração prestada pelo contribuinte, ressalvada a prerrogativa da administração tributária de revisá-la, antes ou depois do pagamento, a depender da modalidade do lançamento, desde que instaurado o procedimento administrativo próprio
(...)
no ITBI, a base de cálculo deve considerar o valor de mercado do imóvel individualmente considerado, que, como visto, resulta de uma gama maior de fatores, motivo pelo qual o lançamento desse imposto se dá, originalmente e via de regra, por declaração do contribuinte, ressalvado o direito da fiscalização tributária de revisar o quantum declarado, por meio de regular instauração de processo administrativo.
(...)
(...) não dispondo de todos os elementos fáticos necessários ao juízo de certeza quanto ao valor do imóvel transmitido, não há como a Administração dispensar a participação do contribuinte no procedimento regular de constituição do crédito para estabelecer, antecipada e unilateralmente, a base de cálculo.
Além disso, a adoção desse valor de referência como primeiro parâmetro para a fixação da base de cálculo do ITBI, com a inversão do ônus da prova ao contribuinte para demonstrar o contrário, subverte o procedimento instituído no art. 148 do CTN, pois, a toda evidência, resulta em arbitramento da base de cálculo sem prévio juízo quanto à fidedignidade da declaração do sujeito passivo. Esse denominado valor venal de referência, [...], acaba por subtrair a garantia do contraditório assegurada ao contribuinte, cujo exercício pressupõe a prévia instauração de regular processo administrativo."
Está mal identificada a modalidade de lançamento adotada pelo município de São Paulo, que não realiza lançamento por declaração do ITBI, mas sim por homologação.
Em caso de lavratura de escritura mediante pagamento a menor do ITBI ou sem o seu respectivo pagamento, configurar-se-á a hipótese em que a autoridade fiscal não homologará o recolhimento, podendo lançar de ofício o valor total ou da diferença.
Este lançamento de ofício é uma hipótese de lançamento por arbitramento, sem exigência de participação obrigatória do contribuinte a posteriori. O ato ou omissão do contribuinte quanto ao recolhimento do ITBI, inclusive quanto ao valor da respectiva base de cálculo, já existe, nestes casos, antes da atuação fiscal. Isso não quer dizer que a administração fiscal não precise informar e fundamentar o lançamento tributário (por arbitramento), demonstrando qual é o montante do imposto devido e fundamentando porque o valor do imposto foi pago a menor ou inadimplido.
Ainda que o lançamento do ITBI decorresse de declaração, tal arbitramento não exigiria a participação do contribuinte, já que é ato unilateral e irreversível, decorrente do exercício de poder-dever da administração tributária. Aliás, não extrai do art. 148 do CTN sentido diverso.
A contestação e avaliação contraditória não integram o procedimento de lançamento, apenas o processo administrativo tributário, por meio do qual o contribuinte ou responsável pode exercer a sua ampla defesa.
O direito constitucional de impugnar o lançamento tributário não transforma o lançamento num ato bilateral ou num procedimento dialético obrigatório que, só após ouvido o contribuinte, conclui-se. Como prevê o artigo 142 do CTN, o Contribuinte não participa nem realiza lançamento, pois é atividade vinculada, exclusiva e definitiva, de competência da autoridade fiscal. Atos de colaboração dos sujeitos passivos têm apenas caráter informativo ou de pagamento antecipado, não impedindo ou condicionando a constituição do crédito tributário e a sua exigibilidade, como sedimentado pela doutrina. Paulo de Barros Carvalho já assinalou que a suscetibilidade a impugnações seria predicado de todos os atos administrativos, o que não lhes dá caráter provisório.
Bernardo Ribeiro de Moares ressalta a competência exclusiva do sujeito ativo para constatar a ocorrência do fato gerador e adiciona que:
"Quando o contribuinte determina a existência da obrigação e o seu montante, tal procedimento não pode ser comparado às atividades do órgão estatal. O sujeito passivo está apenas aplicando espontaneamente a norma legal [...]. A declaração tributária, feita pelo sujeito passivo, também, não é lançamento. O ato do particular em calcular o montante do imposto para efeitos de retenção como fonte pagadora também não é lançamento. Quando a lei atribui ao próprio sujeito passivo o encargo de antecipar o pagamento do tributo, sob ressalva de ulterior homologação, não temos ainda o lançamento (falta a homologação do Poder Público) e nem a liquidação do crédito tributário (o pagamento do tributo teve assento em um ato realizado pelo particular). Somente a autoridade administrativa é que pode realizar o lançamento, procedimento administrativo unilateral; b) o lançamento é um procedimento vinculado. (...) c) o lançamento é um ato obrigatório, de realização obrigatória" [1].
3) Conclusão
O REsp 1.937.821 se equivoca nos fatos e se contradiz acerca das modalidades de lançamento cabíveis e realizadas para o ITBI no âmbito do município de São Paulo e de diversas municipalidades brasileiras.
É equivocado entender que a guia de pagamento (antecipado) solicitada pelo interessado configura uma espécie de "lançamento por declaração". Ela encerra apenas um pré-cálculo do imposto, permitindo o recolhimento prévio ou concomitantemente do ITBI à realização do ato ou negócio jurídico que configure fato gerador ou obrigação de pagá-lo. Caso o interessado não concorde com o valor da base de cálculo ou do imposto nela apontado, poderá requerer sua revisão em procedimento administrativo de recálculo. Destarte, a guia expedida originalmente ou revisada não configura um lançamento tributário, sobretudo porque o não-pagamento do valor nela apontado não faz surgir a exigibilidade do imposto, nem sujeita o contribuinte a penalidades, à inscrição em dívida ativa e/ou à executoriedade judicial. O eventual prazo apontado na guia tem relação apenas com o tempo de validade da avaliação. Não se trata de vencimento de obrigação de pagar ou de dívida. Portanto, a "modalidade de lançamento" só pode ser enquadrada como "por homologação".
Sobre o "lançamento por arbitramento", vale dizer que, quando a municipalidade está diante de um fato gerador realizado sem o devido recolhimento do ITBI ou com informação de base de cálculo diversa da que entende correta, deverá realizar lançamento por arbitramento, pois não acreditou nos valores, informações ou documentos produzidos pelo contribuinte perante terceiros ou junto à própria administração tributária.
Mesmo nos casos de lançamento por homologação, a "não-homologação" resulta num lançamento por arbitramento, como nos casos mais conhecidos de desconsideração da escrita fiscal ou de livros comerciais (Diário ou Razão) na fiscalização dos impostos sobre consumo, tais como o IPI, ICMS e ISSQN.
Porém, o lançamento por arbitramento não depende de ato do contribuinte para sua conclusão, à luz do artigo 142 do CTN. O ato de lançamento é unilateral, definitivo, irrevisível e exclusivo da autoridade tributária. Como a doutrina acentua em uníssono: contribuinte não realiza lançamento tributário. Pode e deve praticar, apenas, atos de colaboração com o Fisco. Realizado o lançamento tributário, o contribuinte tem o direito de impugnar administrativa e judicialmente o lançamento, o que não significa que o arbitramento resulta de um "ato bilateral" ou de um procedimento dialético prévio, com a indispensável ou necessária participação do contribuinte.
[1] Moraes, Bernardo Ribeiro de. In: Caderno nº 1 de pesquisas tributárias. CEEU/Resenha Tributária, 1976. p. 32-4.
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