Voz do Associado qua, 29 de maio de 2024
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Por: Alberto Balazeiro é ministro do TST (Tribunal Superior do Trabalho), doutorando em Direito (IDP), mestre em Direito (UCB, 2017), coordenador do Comitê Gestor Nacional do Programa Trabalho Seguro e observador na 111ª Conferência Internacional do Trabalho;

Bernardo Bastos é procurador do município de Rio Largo (AL), advogado, engenheiro civil, mestre em engenharia pela PUC-Rio. Ex-procurador do município de São Paulo. Diretor de comunicação da ANPM (Associação Nacional dos Procuradores Municipais).

Raquel Leite da Silva Santana é assessora de ministro do TST (Tribunal Superior do Trabalho). Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB (Universidade de Brasília). Publicado pelo Conjur no dia 28 de maio de 2024.

As novas ferramentas de inteligência artificial são um efetivo avanço tecnológico com comprovada influência na produtividade em praticamente todas as áreas. Estamos imersos em um ambiente tecnológico com uso intensivo de IA: desde as mais simples buscas no Google até o desenvolvimento de novas drogas pela indústria farmacêutica, passando pela produção científica auxiliada por modelos de linguagem natural (NLP).

Afinal, conforme nos sugere o cientista da computação e um dos fundadores da disciplina de inteligência artificial, Nils Nilsson, uma das metas da IA no longo prazo é justamente desenvolver máquinas que possam não só fazer inúmeras atividades, mas realizá-las ainda melhor do que nós, humanos [1].

A previsão é de que entre 40% e 60% dos empregos em todo o mundo sejam influenciados pela IA segundo a diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva.

Com inovação tecnológica em evidência, intensifica-se o debate sobre a sua influência nas relações de trabalho. Não raros são os autores otimistas que preveem uma melhoria nas condições de trabalho proporcionada pela adoção de novas tecnologias. Essa promessa levanta questões importantes. Não se nega que ferramentas tecnológicas contribuem para consideráveis ganhos de produtividade.

O aumento da produtividade afeta positivamente a produção e reduz o tempo dedicado à atividade produtiva. Desta forma, os profissionais envolvidos na execução da tarefa poderão experimentar, em um primeiro momento, uma redução do tempo dedicado ao trabalho. O novo tempo livre gerado poderia ser dedicado a atividades de enriquecimento pessoal, lazer ou ócio.

Contudo, essa tendência inicial pode ser revertida ou consolidada. Os ganhos de produtividade acabam afetando toda a dinâmica social. O benefício social das novas técnicas, notadamente no âmbito das condições de trabalho, depende mais da estrutura social, notadamente de questões políticas, sociológicas e jurídicas, do que propriamente da natureza ou intensidade das inovações.

Recente estudo de pesquisadores do laboratório de ciências da computação e inteligência artificial do MIT sugere que a substituição de ofícios pela IA não seja tão rápida quando se pensa. Modelagens de substituição completa de atividades humanas por sistemas de visão computacional, por exemplo, mostraram-se economicamente proibitivas. Apenas cerca de 23% dos salários pagos por tarefas que envolvem visão são economicamente viáveis para automação por IA [2].

A substituição do ser humano pela máquina, de ponta a ponta das atividades produtivas, pode não acontecer tão brevemente, seja por questões técnicas e/ou econômicas, seja diante das preocupações apresentadas por relevantes atores sociais, no que se refere à necessidade de proteção dos direitos fundamentais nesse processo de massiva inserção da IA em diversos setores, em especial no mundo do trabalho.

Leis

Nesse sentido, a European Union Agency for Fundamental Rights, já tem advertido que “em consonância com os requisitos mínimos de clareza jurídica (enquanto princípio de base do Estado de direito condição prévia para a garantia dos direitos fundamentais), o legislador deve proceder com o devido cuidado ao definir o âmbito de aplicação de qualquer lei em matéria de IA.” [3]

Por essa razão que tem se falado cada vez mais em substituição de tarefas ao invés da completa substituição de empregos. Sendo evidente que a primeira, ainda que não tão dramática, acaba por influenciar as condições de trabalho.

Como dito, do ponto de vista individual, o aumento significativo da produtividade de determinado serviço através de novas ferramentas tecnológicas tende a diminuir o tempo dedicado ao trabalho. Isso em um primeiro momento. Imediatamente depois, com uma maior produtividade, haverá um aumento da oferta desse serviço.

Em áreas com demanda limitada esse aumento de oferta contribuirá com a redução do valor desses serviços no mercado. Em um cenário de equilíbrio econômico, o valor decrescente do serviço poderia forçar os profissionais a retomarem a jornadas de trabalho mais longas, simplesmente para manterem o nível de renda anterior.

Em outras palavras, a tecnologia pode induzir a uma breve primavera de melhoria de condições de trabalho até que passe a ser difundida e que todos a apliquem de maneira que a competição pode anular os ganhos iniciais obtidos.

Ademais, uma vez que o aumento da produtividade for generalizado, e todos os profissionais o adotem, o mercado pode não ser capaz de absorver toda a oferta de serviços, resultando em uma concorrência mais acirrada pelo mercado de trabalho.

Desta forma, além da perda do tempo livre observada no primeiro ciclo, o profissional poderá perder sua própria colocação no mercado.

Questão complexa

Claro que a questão é complexa. Um mecanismo isolado ilustra uma faceta do processo, mas é impossível prever todas as mudanças sociais. A economia e o mercado de trabalho são interligados e é impossível analisar cada ofício isoladamente. Como todas as profissões serão impactadas, haverá uma miríade de substituições de tarefas pela IA, bem como o surgimento de novas necessidades e oportunidades.

Este potencial cenário evidencia que as inovações tecnológicas, embora tendam a aumentar a produção, não garantem automaticamente benefícios sociais equitativos. É imprescindível, portanto, a implementação de políticas públicas atentas que promovam simultaneamente o desenvolvimento tecnológico e a mitigação de possíveis efeitos adversos, como a precarização das condições de vida.

Ainda, do ponto de vista da abstração jurídica, a manutenção de direitos está associada à ideia de equidade que, por sua vez, está ligada ao conjunto sistêmico valorativo dos tratados internacionais de direitos humanos e do catálogo de direitos fundamentais — estes, dentro do princípio maior da dignidade da pessoa humana, conforme apontam Rodrigo Goldschmidt e Oscar Krost [4].

Não obstante, não deixa de ser curioso que se advogue com tanta ênfase no sentido de que o aumento de produtividade conduz necessariamente à melhoria nas condições de trabalho. A história é farta de exemplos no sentido contrário. A começar pela Revolução Industrial onde o advento das máquinas que realizavam o trabalho de várias pessoas não resultou em uma redução da carga de trabalho, mas sim no agravamento das condições laborais. Esse exemplo histórico serve como um lembrete crítico de que a tecnologia, por si só, não diminui necessariamente a carga de trabalho.

Outro exemplo recente são os dramáticos depoimentos de entregadores de comida vinculados a plataformas digitais, quando nos questionam “Você sabe a tortura que é carregar comida nas costas e sentir fome?” [5]

Portanto, aqueles que defendem que a longo prazo as novas tecnologias tendem a dar mais frutos positivos que negativos devem estar atentos que o saldo favorável, quando casualmente observado, se deve mais a adoção de normas de proteção do que à tecnologia em si.

As maravilhas da engenharia mecânica tiveram uma aplicação evidente na Indústria e no transporte no século 18, mas as consequências na regulação do trabalho se mostraram um processo social complexo e iterativo que teve mais contribuições do liberalismo econômico, do anarco-sindicalismo, do direito e de princípios religiosos, do que propriamente das ciências exatas. O fenômeno social que sucede as inovações da técnica é tão mais complexo quanto imprevisível.

A chamada revolução digital em curso tem mostrado diversas transformações na produção e na sociedade sem sinais claros de uma melhoria geral nas condições de trabalho. Apesar de ser certo o aumento na produtividade, não há garantia de que essa melhoria implique em um incremento direto na renda de forma pervasiva, tampouco em melhoria generalizada nas condições de trabalho.

O aumento da produtividade aumenta a produção e a renda, mas nem sempre esses benefícios são distribuídos de forma justa entre todos. Enquanto alguns ganham mais, a competição no mercado de trabalho pode limitar o tempo livre dos trabalhadores, precarizar as relações de trabalho e dificultar o acesso das parcelas mais vulneráveis dos trabalhadores a esses novos ganhos. Isso pode agravar as desigualdades socioeconômicas, destacando a necessidade de políticas que promovam não só a eficiência, mas também a equidade.

Não é por acaso que a discussão em torno de uma política de renda básica universal tem sido cada vez mais associada aos avanços tecnológicos, não apenas por defensores de redes de proteção social, mas também por figuras proeminentes do capitalismo. Essa tendência indica um reconhecimento crescente de que as transformações tecnológicas exigem respostas políticas e sociais adaptativas.

Ao contrário da noção de ‘welfarismo’, que tenta vincular as políticas de proteção social à sua suposta capacidade de desencorajar o trabalho, o aumento da desigualdade e da concentração de renda têm consequências negativas bem documentadas para a sociedade. Assim, a discussão sobre a regulamentação do impacto da tecnologia no mercado de trabalho não é apenas relevante, mas necessária.

Considerando a revolução digital iniciada em 1958 com a invenção do circuito integrado por Jack Kilby e Robert Noyce, e a subsequente validação da lei de Moore, é evidente que estamos testemunhando uma transformação tecnológica relevante. O desenvolvimento de softwares avançados e a aplicação de inteligência artificial em diversos setores indicam que não estamos diante de uma nova fase de significativo desenvolvimento tecnológico.

É prudente, em um contexto de mudanças, formular cenários futuros para se entender as consequências dessas inovações no mercado de trabalho. No entanto, a garantia de benefícios sociais equitativos dependerá de como políticas e leis serão estruturadas e implementadas, enfrentando os desafios emergentes impostos pela tecnologia na sociedade contemporânea.

Em suma, enquanto a revolução digital, impulsionada pela inovação em IA e outras tecnologias, traz um potencial significativo para transformar o trabalho e a produtividade, seu impacto na sociedade é duplo. As mudanças trazidas por estas inovações tecnológicas não são apenas técnicas, mas profundamente sociais, afetando a forma como vivemos, trabalhamos e interagimos.

Para garantir que o avanço técnico resulte em benefícios sociais é preciso, portanto, que as políticas públicas evoluam em paralelo com os avanços tecnológicos, garantindo que os benefícios sejam amplamente compartilhados e que os desafios sejam efetivamente enfrentados.

Para que haja ampla aceitação das novas políticas é fundamental que a sociedade participe ativamente na moldagem deste futuro. O diálogo entre tecnólogos, formuladores de políticas, cientistas sociais e o público em geral é essencial para garantir que as inovações tecnológicas sirvam ao bem comum e promovam uma sociedade mais justa e equitativa.

Assim será possível garantir que os avanços tecnológicos resultem na melhoria das condições de trabalho e a qualidade de vida, minimizando as desigualdades e assegurando que ninguém seja marginalizado no processo de transformação social estimulado pela tecnologia.

Enquanto celebramos os feitos impressionantes dos físicos e engenheiros na miniaturização dos circuitos integrados e reconhecemos o papel transformador da tecnologia, devemos também nos empenhar em uma análise cuidadosa e uma resposta ponderada às implicações sociais dessas inovações. A revolução digital oferece um caminho repleto de oportunidades, mas também desafios que exigem uma abordagem atenda e inclusiva para maximizar seus benefícios para toda a sociedade.

__________________________

[1] NILSSON, Nils J. Inteligencia artificial: una nueva síntesis. Madrid: McGraw Hill, 2001.

[2] Svanberg, M. S., Li, W., Fleming, M., Goehring, B. C., & Thompson, N. C. (2024). Beyond AI exposure: Which tasks are cost-effective to automate with computer vision? Disponível em https://futuretech-site.s3.us-east-2.amazonaws.com/2024-01-18+Beyond_AI_Exposure.pdf.

[3] European Union Agency for Fundamental Rights, #BigData: Discrimination in datasupported decision making, Luxemburgo: Publications Office, 2018.

[4] Krost, Oscar; Goldschmidt, Rodrigo. Inteligência artificial (i.a.) e o Direito do trabalho: possibilidades

Para um manejo ético e socialmente ResponsáveL. Rev. TST, São Paulo, vol. 87, no 2, abr/jun 2021.

[5] Disponível em: https://sca.profmat-sbm.org.br/profmat_tcc.php?id1=5998&id2=171054675

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