Por: Alessandro Farias Leite, suplente da Diretoria de Relações Institucionais da ANPM e procurador do município de Campina Grande/PB.
Uma das grandes inovações da CRFB/88 na seara do Direito Público diz respeito a efetivação de fato, dos Municípios como ente federativo, dotados de autonomia política, administrativa e financeira (CRFB/88 arts. 1° e 18). Com efeito, o modelo federativo brasileiro inova ao prever um federalismo com três esferas autônomas de poder.
As competências previstas na Constituição Federal (arts.21 a 24 da CRFB/88), na realidade, impõem uma série de deveres e responsabilidades a cada um dos entes federados.
No caso dos Municípios, o que tem ocorrido na prática é uma ampliação indiscriminada destas competências, as quais não têm sido acompanhadas pela ampliação no repasse dos recursos financeiros. A razão deste fenômeno pode ser resumida na máxima de que “a vida acontece nas cidades”. Em verdade, observa-se que a União e os Estados constituem-se em grandes abstrações para o cidadão, que vive, trabalha e consome serviços públicos nas cidades. É ela que é cobrada para oferecer ao “pagador de tributos “ bons serviços públicos e a boa qualidade de vida.
Neste ponto, já observamos um dos grandes paradoxos existentes nos municípios brasileiros e, consequentemente, nas competências dirigidas a cada um deles. Há casos em que são maiores que alguns Estados, como é o caso de Altamira e Sergipe1. Temos, ainda, outros com população maior que a maioria dos Estados, como é o caso do município de São Paulo.
Com relação às guardas municipais, foram originalmente constituídas com a finalidade de salvaguardar o patrimônio público municipal, consoante previsão contida no art.144 §8° CRFB/ 88. Na prática, têm desenvolvido outras atividades, lembrando que, na clássica divisão constitucional de competências, a segurança pública ostensiva é dever do estado membro, tal fenômeno se impõe pela cobrança constante do cidadão em busca do almejado bem estar.
Da mesma forma, nos assuntos afetos à educação. Originalmente, caberia aos Municípios ofertar o ensino infantil e fundamental (art.30, VI CRFB/88). Ademais, a par da disposição constitucional, não é o que ocorre efetivamente. Não é raro a municipalidade oferecer outros níveis de escolaridade quando o estado não o faz, ou subsidiando o transporte a fim de que seus munícipes sejam deslocados para outras localidades. No contexto da pandemia, eles têm se desdobrado, inclusive para continuar oferecendo a indispensável merenda, e ainda assumido novos encargos, como a distribuição de notebooks e tablets para o acompanhamento das aulas on line.
Na área de saúde, a situação não apenas se repete, como se complica. Em tese, caberia aos Municípios oferecer prioritariamente a chamada atenção básica (Art. 30, VII, CF, arts. 16 a 18, Lei 8080/90 e art.10 portaria 2436/2017 MS). Contudo, mais uma vez a realidade se impõe ao Direito, sendo comum que assumam outros níveis de assistência à saúde, com hospitais e equipamentos de média e alta complexidade, em especial diante da chamada judicialização da saúde. Esta realidade fica ainda mais evidente em tempos de pandemia, com novas atribuições que incluem a inauguração de hospitais de campanha, a captação de hotéis para os profissionais de saúde que estão na linha de frente no combate à covid-19, a logística de óbitos e funerais com o aluguel de máquinas e a abertura de covas comunitárias2, além de outras infindáveis situações .
Ressai bastante evidente, a partir dos exemplos outrora referidos, o cenário de asfixiamento em que os Municípios estão inseridos ao longo do tempo, com intensificação extrema durante o período pandêmico, ocasionando, como consequência, o estrangulamento das finanças públicas municipais.
Neste cenário caótico apresentado até agora, torna-se assunto de primeira grandeza analisar, ainda que superficialmente, tendo em vista a intenção e o espaço disponível para o presente, as questões ligadas à Reforma Tributária em tramitação no Congresso Nacional.
Ab initio, conforme demonstrado, mais importante do que uma Reforma Tributária em si, seria uma Reforma do Pacto Federativo, a fim de readequar as competências constitucionalmente previstas e faticamente distorcidas. Tomando por base apenas os gastos em saúde, mais de 35% dos gastos no país são realizados pelos Municípios, apesar de contarem apenas com 22,5% da receita pública disponível total (conforme Relatório de Acompanhamento Fiscal de Julho de 2018, produzido pela Instituição Fiscal Independente – do Senado Federal3).
Em tempos de informações superficiais, muitas vezes falsas, disseminadas em larga escala com um simples “clicar”, virou senso comum a impressão de que a reforma tributária é indispensável para o desenvolvimento do país e fortalecimento do setor produtivo. Fenômeno semelhante parece ter ocorrido recentemente com as reformas trabalhista e previdenciária aprovadas a pouco. Associe-se a este cenário a informação que a última reforma tributária no país ocorreu no ano de 19654.
A referida Reforma está consubstanciada nas pec´s n° 45/2019, oriunda da Câmara dos Deputados e n° 110/2019, com origem no Senado Federal. Longe de tratarem da matéria de forma pormenorizada, as pec´s praticamente se resumem a unificar tributos, sob a tola justificativa de simplificação do sistema com a consequente redução da carga tributária.
Em uma análise rápida, vemos que tal desiderato não passa de um engodo aos incautos.
A Reforma cria o chamado Imposto sobre Bens e Serviços em substituição ao IPI, PIS e COFINS da União, ICMS, dos Estados e ISS dos Municípios.
Neste ponto já temos alguns impasses. A reforma é eminentemente concentradora.
Ao reconfigurar por completo o sistema tributário brasileiro, será indispensável a adequação de todos os atores que nele trabalham, ocasionando novos investimentos de tempo e dinheiro, sendo este último escasso, notadamente agora.
Dos tributos citados acima, o de competência dos Municípios é o que menos impacta negativamente na concorrência5, ou seja, o ISS não é o problema.
Da mesma forma, um relatório do Banco Mundial verificou que no Brasil são gastos mais de mil e quinhentas horas para calcular os tributos a serem pagos, sendo a parcela maior deste tempo para o ICMS, o que nos leva a conclusão de que, novamente, o problema não está no ISS 6.
Sendo assim, modificar o regramento do ISS é literalmente atacar o menor dos problemas existentes, some-se a isto o fato de que retirá-lo dos Municípios é afrontar diretamente o pacto federativo, na medida em que eles perderão receitas próprias e viverão de repasses. Avalie-se este cenário em pleno vigor nos dias de pandemia, quando as competências deles têm sido constantemente hipertrofiadas, conforme demonstrado acima e reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal 7.
A perda acumulada de receita pelos Municípios nos próximos quinze anos, caso a reforma seja aprovada nos moldes atualmente propostos, seriam da ordem de duzentos e seis bilhões 8.
Atenta ao caso ora em comento, a Associação Nacional de Procuradores Municipais está desenvolvendo um projeto para divulgar os aspectos fundamentais das pec´s aos associados.
Por fim, a pandemia tem servido para nos confrontar e demonstrar a necessidade imperiosa da presença do Estado e seus servidores na vida do cidadão. Desde a decretação do estado de emergência sanitária, já se passaram cento e vinte dias. O número de mortes já ultrapassou mais de oitenta mil pessoas, sem considerarmos o alto número de subnotificações 9 e a grande falta de testes 10.
É tempo de fortalecer as instituições, elas são o fundamento do estado democrático de direito e este é o porto seguro para efetivação de valores fundamentais previstos na Constituição Cidadã, e certamente isto não será feito retirando os recursos do ente federativo que tem como desiderato maior abrigar e cuidar de cada cidadão brasileiro.
A vida acontece nas cidades.
3. http://www.abrasf.org.br/noticias_detalhes.php?cod_noticia=2269&cod_secao=2
4. https://impostometro.com.br/Noticias/Interna?idNoticia=215
7. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=441447
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