Voz do Associado ter, 24 de janeiro de 2023
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Por: Vinícius Cunha Magalhães,

Mestrando em Direito Constitucional pelo IDP/Brasília, Procurador do Município de Belo Horizonte e advogado

A sociedade assiste atônita, desde a tarde do dia 08 de janeiro de 2023, à grave tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito perpetrada por um grupo terrorista de extrema-direita através da prática, em diversos pontos do território nacional, de atos de violência, destruição, sabotagem e obstrução.

Representativa deste execrável episódio foi a invasão das sedes dos três Poderes da República em Brasília, na qual foram registrados, em tempo real, atentados à integridade física de policiais e jornalistas que lá trabalhavam, para além de prejuízos inestimáveis a bens integrantes do patrimônio histórico-cultural que se encontravam guardados e expostos nos prédios públicos depredados.

Uma das medidas adotadas para fazer frente ao movimento golpista foi a edição, pelo Presidente da República, do Decreto nº 11.337/2023, o qual determina intervenção federal no Distrito Federal, até 31 de janeiro de 2023, limitada à área de segurança pública, conforme o disposto no art. 117-A da Lei Orgânica do Distrito Federal, com o objetivo de pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública, sendo que as atribuições que não tiverem relação direta ou indireta com a segurança pública permanecerão sob a titularidade do Governador (art. 1º, caput e §§ 1º e 2º e art. 3º, §4º, do Decreto).

A intervenção federal é um mecanismo estabilizador previsto pelo constituinte como medida excepcional de levantamento completo ou setorial, por prazo determinado, da autonomia de um ente federado para a preservação do equilíbrio federativo, das finanças públicas estaduais ou municipais e da própria ordem constitucional. Trata-se de instituto já tradicional em nosso Direito, adotado desde a primeira Constituição republicana, em 1891, como corolário do princípio federativo, e se mantendo em todas as Constituições posteriores, estando atualmente previsto nos arts. 34 a 36 da CF.

Ponto ainda pouco explorado na literatura jurídica brasileira consiste no estabelecimento da relação entre a intervenção federal e a chamada fidelidade federal, lealdade federativa (Bundestreue) ou princípio da conduta federativa amistosa (Grundsatz des bundesfreundlichen Verhaltens) (item II). Com efeito, no contexto alemão, é corrente a compreensão de que os institutos da execução federal (Bundeszwang) e da intervenção federal (Bundesintervention) - em certa medida análogos, mas não idênticos à intervenção federal do direito brasileiro -, consistem em corolários ou especificações do princípio mais geral da lealdade federativa.

O objetivo destas breves anotações será, portanto, o de aproveitar a contingência do conturbado e lamentável momento político atual para elucidar algumas conexões sistemáticas entre os dois institutos, a partir de aportes do direito constitucional alemão, com o intuito de contribuir para o desenvolvimento da dogmática do Estado Federal estabelecido pela Constituição vigente (item III)[2].

II

A lealdade federativa é o princípio constitucional implícito ou não escrito que impõe aos entes federados o dever de proceder com lealdade nas suas relações recíprocas, buscando o entendimento mútuo na execução de suas tarefas e orientando-se pela coordenação e cooperação[3].

Sua função é vincular os entes federados aos interesses dos demais e ao interesse comum de todos quando do exercício de seus direitos e deveres, com o intuito de proteger e fortalecer o pacto federativo. Sua aplicação deve combater o uso excessivamente egoísta das competências constitucionais e os tensionamentos excessivos que tendam à dissolução da ordem federal global.

A fidelidade federal serve como um mecanismo de correção ou de alívio das tensões inerentes ao Estado Federal, em complementação aos institutos expressamente previstos na ordem constitucional escrita. Embora implícita, consubstancia o espírito informador das relações interfederativas, dando lugar a uma espécie de ética institucional objetivada, de caráter jurídico e não só político ou moral[4].

Trata-se, portanto, de instrumento que completa o quadro das formas de garantia da unidade e coordenação dos poderes públicos no Estado Federal, preenchendo, com um mandamento geral recíproco de lealdade, os “espaços vazios” no relacionamento entre as distintas esferas de governo, ou seja, aquelas situações concretas não atingidas de forma clara por regramento constitucional ou infraconstitucional[5].

Do ponto de vista da sua abrangência, o princípio da conduta federativa amistosa obriga não só os Estados perante a União como, da mesma forma, a União em face dos Estados. Obriga também, naturalmente, os Estados nas suas relações entre si. É, portanto, um princípio bilateral, que incide de forma isonômica, em conformidade com a ausência de hierarquia assentada do texto da Lei Fundamental e na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal[6].

Além do mais, costuma-se afirmar que o princípio da lealdade federativa teria um caráter de subsidiariedade na resolução de conflitos, de modo que, se um conflito interfederativo puder ser resolvido pela aplicação de uma norma constitucional explícita suficiente para a resolução do caso, o uso da lealdade federativa seria desnecessário, a menos que, excepcionalmente, possa ser utilizado para corrigir o resultado da aplicação literal do texto constitucional[7].

Considera-se que a lealdade federativa é dotada de acessoriedade, pressupondo sempre uma relação jurídica previamente estabelecida entre as partes envolvidas, não sendo capaz de ser fonte de relação jurídica autônoma, ou, ainda, de obrigações principais autônomas para os entes federados[8].

Ademais, aponta-se que tal princípio serviria como critério de interpretação[9] dos inúmeros dispositivos que, no direito positivo, explicitam aspectos ou elementos da ideia de lealdade federativa. Dessa maneira, as normas constitucionais, a legislação infraconstitucional e as cláusulas das avenças firmadas entre os entes federados, quando constituírem manifestações da lealdade federativa, devem ser interpretadas à luz deste princípio.

As violações ao princípio da lealdade federativa não implicam que seja analisado qualquer elemento subjetivo de deslealdade ou culpa dos agentes incumbidos da representação oficial dos entes federados, ou seja, a apuração de violação à lealdade federativa parte de uma análise objetiva, que independe da aferição de culpa lato sensu[10].

Por fim, da lealdade federativa podem ser extraídas tanto obrigações adicionais específicas, de caráter positivo ou negativo, que vão daquelas estatuídas por normas expressas, quanto restrições concretas ao exercício das competências legislativas e materiais distribuídas na Constituição.

III

Como dito, o fundamento da intervenção, quando relacionada à preservação da ordem federativa, repousa no princípio geral não escrito da fidelidade federal[11]. Cumpre sejam analisadas, assim, ainda que brevemente, as repercussões da lealdade federativa tanto para o ente interventor quanto para aquele que sofre a intervenção.

A repercussão mais imediata sobre o ente interventor consiste em autorizar a utilização da intervenção apenas como ultima ratio, no intuito de preservar, na medida do possível, a autonomia política dos entes federados[12]. Além do mais, a lealdade federativa impõe que a medida interventiva se submeta a um juízo de proporcionalidade, tanto em relação à verificação dos pressupostos de sua decretação quanto no que tange às medidas concretamente determinadas.

Nesse sentido é que o Decreto Federal nº 11.337/23, para além de limitar no tempo a duração da intervenção e especificar as medidas que podem ser tomadas durante o período, optou por cingir a sua abrangência apenas à área da segurança pública, com a nomeação de um Interventor especificamente para aquela pasta, preservando a pessoa e funções do Chefe do Executivo local com relação às suas demais competências.

Trata-se da repetição de uma forma mitigada de intervenção federal, adotada primeiramente em 2018 no Estado do Rio de Janeiro (Decreto Federal nº 9.288/2018), a qual privilegia uma ingerência pontual e cirúrgica da União em área setorizada do Estado-Membro, sem o afastamento do respectivo Governador[13]. Muito embora o texto constitucional não obrigue a nomeação de Interventor[14] em toda e qualquer hipótese, é certo que, na práxis constitucional pretérita a 1988, a intervenção ocorria com o afastamento do Chefe do Executivo durante seu prazo de vigência, reconduzindo-se ao cargo o mandatário eleito quando do término da medida.

Se poderia ser justificável, no plano teórico, uma intervenção federal “setorizada”, à luz de uma interpretação do art. 34 da CF que privilegia a lealdade federativa, é de se indagar se, no caso sob análise, a gravidade dos fatos, ações e, principalmente, omissões que deram azo à medida interventiva não demandariam o afastamento do Governador de seu cargo durante o prazo da intervenção[15]. E isto até mesmo porque, como dito, a violação à lealdade federativa é analisada de um ponto de vista objetivo, independente da aferição de dolo ou culpa do agente ou de sua eventual posterior responsabilização política, administrativa ou penal.

Sob outro ângulo, a lealdade federativa serve como fundamento maior dos deveres que o Estado possui perante a federação e que, uma vez inadimplidos, dão azo à medida excepcional adotada pela União. No direito alemão, alguns entendem que o simples inadimplemento do dever genérico de lealdade federativa seria suficiente a priori para a decretação de uma medida interventiva[16]. Entre nós, dada a redação taxativa dos arts. 34 e 35, o melhor caminho parece ser o de privilegiar a função interpretativa do instituto em relação a cada um dos incisos que expressamente autorizam a intervenção.

Assim, o inciso I do art. 23 da CF estabelece a competência comum dos entes federados de zelar pelas instituições democráticas[17] e conservar o patrimônio público. Se, num primeiro momento, estas competências se referem ao patrimônio e às instituições do próprio ente federado, é certo que, com base no mandamento de lealdade federativa, o dever jurídico insculpido do art. 23, I, da CF deve ser interpretado no sentido de que os entes também têm o dever de preservar o patrimônio e as instituições dos demais entes federados, mormente no caso dos ataques às sedes dos três Poderes, localizadas em Brasília. Como o art. 23, I, da CF já estabelece um dever positivo para o Distrito Federal, cumpre-se o critério da acessoriedade acima descrito, de sorte que a lealdade federativa opera aqui como fonte de obrigações acessórias, mais especificamente, obrigações de ajuda e apoio à União[18].

A inação do Distrito Federal em prestar ajuda e apoio à União no caso da insurreição golpista pode ser qualificada, inequivocamente, como uma violação à lealdade federativa e, na medida em que acirra a situação de grave comprometimento da ordem pública, justifica, constitucionalmente, a intervenção federal (art. 34, III, da CF).  E isto porque, uma vez verificada a tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, bem como a destruição do patrimônio público, deveria ter o ente federado prestado, de imediato e a contento, todo o auxílio necessário à União, especialmente o de natureza policial, a fim de preservar-se a ordem democrática, as sedes dos Poderes constituídos e o patrimônio histórico-cultural conspurcado.

[1] Mestrando em Direito Constitucional pelo IDP/Brasília, Procurador do Município de Belo Horizonte e advogado.

[2] O princípio da lealdade federativa, sua fundamentação no direito brasileiro, seus critérios de aplicação no exercício da jurisdição constitucional e seus limites são objeto de dissertação de mestrado que estamos atualmente elaborando no âmbito do IDP/Brasília, sob orientação do Prof. Ilton Norberto Robl Filho. As anotações contidas no item II foram extraídas de alguns tópicos do primeiro capítulo desta dissertação.

[3] Nesse sentido: voto do Min. Gilmar Mendes na ADI 6.341/DF MC Ref, Rel. p/ acórdão Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, j. em 15/04/2020; ADI nº 5.166/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, j. em 04/11/2020; ADPF 848 MC-Ref, Rel. Min Rosa Weber, Tribunal pleno, j. em 28/06/2021.

[4] ROVIRA, Enoch Alberti. Federalismo y cooperación en la Republica Federal Alemana. Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1986, p. 247.

[5] ROVIRA, ob. cit., p. 250.

[6] BVerfGE, 12, 205.

[7] DEGENHART, Christoph. Staatrecht I - Staatsorganisationsrecht, 2021, p. 199.

[8] DEGENHART, ob. cit., p. 201. O caráter acessório da lealdade federativa é contestado em BAUER, Hartmut. Die Bundestreue. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1992, p. 333.

[9] BAUER, Hartmut. Artikel 20 [Verfassungsprinzipien; Widerstandsrecht]. Em: DREIER, Horst (Org). Grundgesetz – Kommentar. Artikel 20-82. 3ª Ed. Tübingen: Mohr Siebeck, 2015, p. 180

[10] BAUER, ob. cit., p. 178-181

[11] Como bem observa Hermann-Wilfried Bayer, uma das antinomias do Estado Federal consiste justamente no fato de a União poder se valer de mecanismos coercitivos contra os Estados para forçar a observância da lealdade federativa, ao passo que aos Estados compete apenas o recurso ao procedimento jurisdicional junto ao Tribunal Constitucional Federal. BAYER, Hermann-Wilfried. Die Bundestreue. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1961, p. 99.

[12] Certamente, a lealdade federativa também atua para reduzir o âmbito de discricionariedade do Presidente no caso de ser a intervenção solicitada por outro ente (art. 34, IV c/c art. 36, I, da CF).

[13] LEWANDOWSKI. Enrique Ricardo. Pressupostos materiais e formais da intervenção federal no Brasil. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 169.

[14] É cioso dizer que, apesar da equivocada redação do art. 2º, parágrafo único, do Decreto Federal nº 9.288/2018, o cargo de Interventor tem natureza civil, ainda que seja eventualmente ocupado por um militar. E isto porque não existe intervenção militar no Brasil, destinando-se o instituto à manutenção da ordem constitucional, do pacto federativo e das finanças públicas. Nesse sentido: LEWANDOWSKI, ob. cit., p. 161.

[15] O afastamento provisório do Governador do DF veio a ser determinado, com base em fundamentação jurídica diversa, pelo STF, pelo prazo mais alargado de noventa dias, no âmbito do Inquérito 4.879/DF.

[16] BAYER, ob. cit., p. 97-99, o que é, no entanto, discutível.

[17] A defesa das instituições democráticas não é competência exclusiva de qualquer órgão estatal. Em especial, não é monopólio corporativista do Ministério Público (art. 128 da CF), o que se conclui a partir de simples leitura do texto constitucional (e.g. arts. 23, I e 134 da CF).

[18] BAUER, Hartmut. Die Bundestreue, p. 343-346. Os deveres de ajuda e apoio impõem prestações positivas que obrigam os entes federados em caso de outro ente se encontrar necessitado. Não possuem caráter ilimitado e somente são exigíveis quando realmente necessário e, além disso, quando razoável, ou seja, quando sua prestação não for capaz de tumultuar as finanças do ente prestador.

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