Voz do Associado seg, 22 de fevereiro de 2021
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Por: Edcarlos Alves Lima, Advogado-Chefe do Departamento de Consultoria Jurídica em Licitações, Contratos e Ajustes Congêneres, da Advocacia Geral do Município de Cotia (AGM). Especialista em Direito Tributário pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e em Gestão Pública pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Autor de artigos jurídicos na área de licitações e contratos e palestrante.


O termo final da Lei nº 13.979/2020, com suas posteriores alterações, ocorreu em 31 de dezembro de 2020, data em que cessou o reconhecimento, pelo Congresso Nacional, através do Decreto Legislativo nº 06, da situação de calamidade pública.

Não houve a prorrogação da situação de calamidade ou, até mesmo, a aprovação de nova lei ou a edição de Medida Provisória para possibilitar a continuidade de aplicação do diploma normativo em voga.

No penúltimo dia do ano de 2020, em despacho exarado no bojo da ADI nº 6.625, o Ministro Ricardo Lewandowski, em apreciação ao requerimento feito naqueles autos, deferiu medida cautelar para o fim de conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 8º da Lei nº 13.979/2020, de modo a excluir de seu âmbito de aplicação as medidas extraordinárias previstas entre os arts. 3º a 3º-J, inclusive seus incisos e parágrafos. 

Assim sendo, por força da decisão acima explicitada, apenas os dispositivos dantes declinados, que tratam de medidas sanitárias para o enfrentamento da crise, mantêm-se ainda vigentes, não estando abrangidas, portanto, as disposições do art. 4º e seguintes, que tratam da hipótese de contratação direta, por dispensa de licitação, para o enfrentamento da Covid-19.

Por outro lado, como se sabe, os efeitos da pandemia de Covid-19, ensejadora da decretação de emergência em saúde pública de importância internacional, ainda são avassaladores, tendo o Brasil registrado, até 1º de fevereiro de 2021, a existência de 9.229.322 casos confirmados e de 225.099 óbitos causados pela doença em questão, que está presente em 100% dos Municípios brasileiros.

Nesse cenário, possui o gestor a difícil tarefa de compatibilizar o atendimento ao interesse público, notadamente relacionado ao combate dos efeitos causados pela pandemia de Covid-19, com a burocracia necessária para se formalizar eventuais contratações públicas, já que o regime excepcional trazido pela Lei nº 13.979/2020 já não mais subsiste no cenário jurídico.

Conforme já tivemos a oportunidade de expor, o regime excepcional trazido pela supramencionada lei fez com que as contratações diretas – ou por meio da utilização do pregão com prazos reduzidos – ganhassem celeridade com vistas a permitir o rápido enfrentamento da situação de calamidade instaurada não só em nosso País, como também no mundo inteiro.

Isto porque, houve a simplificação de procedimentos (postergação da etapa de gerenciamento de riscos, possibilidade de utilização de termo de referência e projetos básicos simplificados), bem como a dispensa de determinadas burocracias (por exemplo, a presunção de circunstâncias caracterizadoras da emergência, necessidade de pronto atendimento, existência de risco e de limitação às parcelas necessárias ao atendimento da situação de emergência), fazendo com que as contratações fossem feitas de forma ágil e tempestiva.

Não se descartam os possíveis abusos cometidos por gestores públicos, brasil a fora, com contratações desmedidas, desarrazoadas e injustificadas sob a motivação de combate à Covid-19. Esta, todavia, não parece ter sido a regra geral, razão pela qual queremos crer que o instrumento legal em apreço foi utilizado para que vidas pudessem ser poupadas, com políticas públicas sanitárias e, até mesmo, assistenciais.

A indagação que se coloca, doravante, é a seguinte: através de que meio poderá o gestor implementar medidas para continuar o enfrentamento da Covid-19, já que a doença, ao menos por hora, continua sendo um risco elevado e contagiando as pessoas em território nacional?

Antes de nos debruçarmos em torno da temática, é necessário esclarecer que os contratos vigentes, isto é, que tenham sido formalizados, prorrogados e/ou renovados antes de 31 de dezembro de 2020, devem ter o seu termo final respeitado. É essa a dicção que pode ser extraída do art. 4º -H, que abaixo transcrevemos:

Art. 4º-H.  Os contratos regidos por esta Lei terão prazo de duração de até 6 (seis) meses e poderão ser prorrogados por períodos sucessivos, enquanto vigorar o Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, respeitados os prazos pactuados.

Nesse sentido, em que pese o Decreto Legislativo nº 6 tenha perdido seus efeitos em 31 de dezembro de 2020, os prazos pactuados nos contratos ou nos aditivos em que a sua vigência foi renovada e/ou prorrogada devem ser cumpridos, ressalvada, por óbvio, a desnecessidade superveniente, devidamente justificada pela Administração Pública, em torno do objeto contratado.

Também por força do término da eficácia estabelecida pelo Decreto Legislativo nº 6, a Lei nº 14.065/2020 perdeu a sua vigência em 31 de dezembro de 2020 (vide art. 2º), razão pela qual, de agora em diante, deverão ser observados os limites ordinários para as hipóteses de dispensa de licitação fundamentadas nos incisos I e II do art. 24 da Lei nº 8.666/1993, assim como as regras para utilização do Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC, de que trata a Lei nº 12.462/2011.

No que toca ao pagamento antecipado, em que pese os dispositivos da Lei nº 14.065/2020 tenham perdido a sua aplicabilidade, é certo que, atendidas determinadas cautelas dentro de um cenário de excepcionalidade concreto, a jurisprudência das Cortes de Contas, notadamente do TCU, possibilita o emprego de tal instituto.

Pois bem. Não tendo mais o regime emergencial de contratações à sua disposição, poderá o gestor, desde que observadas as peculiaridades do caso concreto e atendidas as disposições legais, invocar a hipótese de contratação direta engendrada no art. 24, inciso IV, da Lei nº 8.666/1993, que assim dispõe:

Art. 24.  É dispensável a licitação: 

(...)

IV - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos;

 

Acerca do dispositivo supra transcrito, já afirmamos que:

(...)

O bem jurídico tutelado pela contratação direta por emergência ou calamidade pública é traduzido nas necessidades coletivas e metaindividuais, ou seja, pressupõe-se que a ausência da imediata contratação acarretaria lesão a bens públicos e, por conseguinte, às próprias finalidades perseguidas pela Administração Pública.

Assim, no caso de uma emergência ou calamidade, o tempo necessário para a deflagração e conclusão dos trâmites de um procedimento licitatório se revela um fator impeditivo à sua própria realização, posto que a sua demora é inconciliável com o interesse público caracterizado pelo objeto perseguido pela contratação.

Nesta toada, poderá o gestor público, atento às cautelas necessárias, sobretudo ao dever de planejamento prévio ao procedimento administrativo, dispensar a licitação para a contratação direta, desde que observados os seguintes requisitos: i) caracterização da situação de emergência, de calamidade pública ou de grave e iminente risco à segurança pública que justifique a dispensa; ii) delimitação do objeto da contratação, o qual deverá se restringir ao estritamente necessário ao afastamento do risco de dano; iii) prazo máximo de 180 dias para a execução do objeto, vedando-se, como regra geral, a prorrogação da vigência do contrato; iv) justificativas para a escolha da empresa a ser contratada; v) justificativas quanto ao preço a ser pago para a execução do objeto.

Ainda que, em tais situações de emergência, possa restar inviabilizada a regular etapa de planejamento prévio, o que envolve estudos preliminares que indiquem a “solução ótima” para a Administração Pública, não se pode olvidar da necessidade de serem os autos devidamente instruídos com todos os artefatos prévios à efetivação da contratação (estudos, projetos/termo de referência, planilhas quantitativo-orçamentárias, disponibilidade de dotação etc.), demonstrando o mínimo de cuidado e motivação para fundamentar a contratação direta.

Obviamente, a temática ora tratada ensejaria uma abordagem muito mais extensa e detalhada, não condizente com este pequeno arrazoado, razão pela qual, sem querermos ousar trazer conclusões, podemos arrematar, em considerações finais,  que o fato de a Lei nº 13.979/2020 ter perdido a sua vigência não retira do gestor público a possibilidade de, diante das peculiaridades do caso concreto e atento às exigências legais, notadamente as estipuladas na própria hipótese do art. 24, inciso IV, combinadas com o art. 26, parágrafo único, incisos I, II e III, da Lei nº 8.666/1993, efetivar uma contratação direta, por dispensa de licitação, a fim de atender ao interesse público inerente ao combate dos efeitos causados pela pandemia de Covid-19.

Não se descarta a hipótese de, no plano federal, ser aprovado novo regime para as contratações emergenciais que visem ao enfrentamento da Covid-19 (seja por meio de lei ordinária ou por medida provisória), de forma a afastar, ainda que parcialmente, os rigores da Lei nº 8.666/1993.

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