Voz do Associado seg, 27 de junho de 2022
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Por: Rodrigo Santos Neves,

Procurador do Município de Linhares/ES, Doutorando em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV, Mestre em Direito Empresarial pela Universidade Candido Mendes – RJ, Professor Adjunto de Direito Público da Faceli, Membro associado efetivo da Academia Brasileira de Direito Civil, Membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB-ES, Advogado Militante no ES.

SUMÁRIO: 1. Colocação do tema – 2. As decisões do STF na ADI 6341: 2.1. A decisão na medida cautelar da ADI 6341; 2.2. O referendo do Plenário do STF à liminar na medida cautelar da ADI 6341 – 3. O federalismo e a federação brasileira – 4. Coordenação administrativa no sistema jurídico espanhol – 5. A coordenação intergovernamental em saúde pública: uma alternativa no combate à Pandemia da Covid-19 – 6. Considerações finais – 7. Referências. 

RESUMO: Este trabalho investigará a compatibilidade do federalismo brasileiro com o instituto da coordenação administrativa, a partir de um estudo de caso, qual seja, a decisão do Supremo Tribunal Federal na Medida Cautelar na ADI 6341. Foi utilizado o método dedutivo, a partir de uma pesquisa bibliográfica sobre o federalismo, coordenação administrativa e a decisão do STF. Após o estudo, concluiu-se que a decisão do STF foi constitucionalmente inadequada, pois tratou a questão de forma simplista e inviabilizou a ação integrada do Sistema Único de Saúde para combater a pandemia.

PALAVRAS-CHAVE: Covid-19; Coronavírus; Competências; Federalismo; Autonomia Municipal.

ABSTRACT: This work will investigate the compatibility of Brazilian federalism with the institute of administrative coordination, based on a case study, that is, the decision of the Supreme Federal Court in the Precautionary Measure in ADI 6341. The deductive method was used, based on a bibliographic search on federalism, administrative coordination and the STF decision. After the study, it was concluded that the STF decision was constitutionally inadequate, as it treated the issue in a simplistic way and made the integrated action of the Unified Health System to combat the pandemic unfeasible.

KEYWORDS: Covid-19; Coronavirus; Jurisdiction Power; Federalism; Municipal Autonomy.

  1. Colocação do tema

O surgimento de nova doença que se espalha por diferentes continentes é motivo de preocupação para todos. A pandemia provocada por uma cepa Coronavírus, denominada Covid-19, colocou governos de todo o mundo em alerta. 

O mundo globalizado se retraiu, fronteiras se fecharam, medidas restritivas foram estabelecidas para tentar conter a disseminação da doença. O resultado disso foi a retração da economia, ruas vazias, portas de empresas fechadas, pessoas em quarentena, hospitais lotados.

O problema que se coloca é saber no arranjo federativo nacional a competência para o estabelecimento de medidas sanitárias de enfrentamento de uma pandemia pertence a quem?

A questão é relevante porque foi promulgada a Lei Federal n. 13.979/2020, que estabelecer medidas para o enfrentamento da pandemia da Covid-19, e a matéria foi submetida à jurisdição constitucional, para questionar a legitimidade da União em estabelecer as diretrizes sobre o assunto e a imposição de medidas restritivas, em detrimento de outros entes da federação.

A hipótese que se propõe é que a decisão do STF na Medida Cautelar da ADI  6341 foi equivocada, diante da necessidade de implementação de políticas unificadas para combater a pandemia, bem como a falta de um critério hermenêutico capaz de demonstrar que decisão em sentido contrário seria mais adequada.

Este trabalho investigará a compatibilidade do federalismo brasileiro com o instituto da coordenação administrativa, a partir de um estudo de caso, qual seja, a decisão do Supremo Tribunal Federal na Medida Cautelar na ADI 6341.

    1. As decisões do STF na ADI 6341
  •  A decisão na medida cautelar da ADI 6341

Por iniciativa do Presidente da República, foi encaminhado no dia 04/02/2020 um projeto de lei ordinária à Câmara dos Deputados (PL 23/2020), que tramitou em regime de urgência, sendo aprovado no mesmo dia e encaminhado ao Senado Federal no dia seguinte, sendo aprovado no mesmo dia 05/02/2020, e sendo sancionada em 06/02/2020, a Lei Federal n. 13. 979, de 06 de fevereiro de 2020.

A referida lei “Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”.  Trata-se de lei temporária, com vigência enquanto durar a pandemia do COVID-19.

Foi ajuizada Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6341) no Supremo Tribunal Federal pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), para questionar a constitucionalidade dos seguintes dispositivos da referida lei: artigo 3º, caput, incisos I, II e VI, e parágrafos 8º, 9º, 10 e 11, da Lei federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, sob diversos fundamentos.

O texto da lei fora alterado (20/03/2020) pela Medida Provisória n. 926/2020, convertida na Lei n. 14.035/2020, de modo a fazer ajustes necessários a adequações constitucionais. A decisão liminar, de lavra do Ministro Marco Aurélio, reconheceu não haver transgressão a preceito constitucional, pela redação dada ao art. 3º, da Lei sob análise, pela Medida Provisória 926/2020, tendo em vista que no art. 23, II, da Constituição se estabelece a competência comum entre os entes da federação, em matéria de saúde pública. Assim assentou o Ministro: “assentando-se, no campo, há de ser reconhecido, simplesmente formal, que a disciplina decorrente da Medida Provisória nº 926/2020, no que imprimiu nova redação ao artigo 3º da Lei federal nº 9.868/1999, não afasta a tomada de providências normativas e administrativas pelos Estados, Distrito Federal e Municípios”.

Portanto, esta decisão tornou explícita a interpretação de que cada ente da federação deverá tomar providências sobre o enfrentamento à Pandemia da Covid-19. 

  •  O referendo do Plenário do STF à liminar na medida cautelar da ADI 6341

Esta decisão liminar concedida pelo Ministro Relator, Marco Aurélio, foi referendada pelo Plenário do STF, em 15 de abril de 2020. Segundo o Plenário, não pode a União impedir que os demais entes federativos prestem serviços de saúde, tendo em vista a competência comum de todos os entes nesta matéria (art. 23, I, CR/88).

Por ter entendido a Corte que se trata de competência comum, todos os entes federativos têm competência para atuar diretamente no combate à Pandemia, dando ao art. 3º, caput, da Lei 13.979/2020, quando diz: “as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas” interpretação conforme à Constituição, para reconhecer que todos os entes federativos (União, estados, Distrito Federal e Municípios) podem adotar as medidas estabelecidas nesta lei e mesmo legislar sobre o referido tema.

Reconheceu-se que a hierarquização prevista no art. 198, da CR/88 sobre o Sistema Único de Saúde (SUS) não se refere aos entes federativos, mas à organização e comando único no SUS dentro de cada ente da federação.

Outro argumento utilizado pela Corte foi a garantia da saúde pelos diversos entes federativos, na manutenção dos serviços essenciais à população. Além da proteção à liberdade das pessoas. O acórdão reafirmou que a Pandemia não outorgou uma discricionariedade ampla e irrestrita, nem livre de controle ao Poder Público, mas o Estado democrático de Direito exige uma racionalidade coletiva, com a coordenação de ações de forma eficiente.

Alegou-se, também, que as regras da Lei 13.979/2020 decorrem da competência da união em legislar sobre vigilância epidemiológica, nos termos da lei do SUS (Lei 8.080/90), mas isso não reduz a competência material dos demais entes da federação prestação de serviços de saúde. 

  1. O federalismo e a federação brasileira

O Estado brasileiro, foi constituído como uma federação desde o Decreto n. 1, de 15.11.1989, juntamente com a proclamação da República, o que foi confirmado na Constituição Republicana de 1891. Desta forma, o seu território e o poder são distribuídos entre os entes federativos, que são unidades autônomas umas das outras, tanto quanto à sua organização, quanto à sua administração e legislação. 

A federação surgiu no mundo em 1787, quando os Estados americanos transformaram a sua confederação em uma federação. O termo federação vem do latim foedus, que significa aliança, acordo.  Muitas alianças já foram forjadas entre nações, mas o que torna a federação diferente de todas as outras? É evidente que cada Estado tem sua feição própria, diante de sua realidade social, econômica, cultural, pois se reconhece que o Estado é uma individualidade concreto-histórica. Apesar disso, podem-se enumerar algumas semelhanças que ocorrem em um Estado Federal.

Uma característica é que a união de estados membros forma um único Estado, mais forte do que aqueles separadamente. Isso representa uma maior segurança para os cidadãos, tanto no âmbito externo, quanto no âmbito interno. Se a questão for analisada sob o aspecto internacional, percebe-se que uma nação mais forte, mais poderosa, é capaz de manter a paz, em virtude exatamente do seu poderio militar, além da possibilidade de se ter um governo nacional mais moderado em relação às paixões que podem tomar governos regionais. Igualmente no âmbito interno, um governo nacional, menos propenso a se contagiar pelas paixões locais e regionais, pode gerenciar os conflitos de forma mais moderada e, assim, evitar confrontos desnecessários, para se manter a paz social.

Os aspectos econômico e social também são preservados com a instituição de uma federação. Em cada país há regiões que, em razão de suas características, desenvolvem aptidões econômicas em determinadas áreas, umas para o agronegócio, outras para a indústria, outras para serviços. 

Tais diferenças econômicas nas várias regiões criam uma diversidade de modos de vida dos cidadãos e, além disso, uma desigualdade indesejável. Em razão disso o Constituinte de 1988 estabeleceu entre os objetivos fundamentais da República “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3º, III, CR/88). Com a federação é possível reunir essas regiões, de modo a que as deficiências em determinado setor da economia sejam compensadas pelos pontos fortes de outras regiões.

E um Estado com grande extensão territorial, é natural que haja uma variedade de elementos culturais, que em um Estado federal é possível a sua manutenção, diante dos vários níveis de esferas de poder, que possibilitam que assuntos de interesse local ou regional recebam a atenção devida de entidades nacionais.

Outra característica interessante da federação é a manutenção da autonomia política dos entes federativos, embora a soberania seja exercida por apenas um deles (a União). Esta descentralização política possibilita que cada estado membro se organize por sua própria constituição estadual, a partir de parâmetros determinados pela constituição federal, tenha as suas próprias leis e sua administração própria, além de jurisdição para solucionar os conflitos. Apesar dessa autonomia, caso seja necessário, o estado membro se beneficia das vantagens da união com os outros estados membros.

Esta descentralização é importante tendo em vista a existência de interesses de âmbito nacional, como a manutenção da integridade do território e da soberania, a gestão de recursos minerais e energéticos, bem como de interesses regionais e locais. Tais interesses não se referem apenas a aspectos políticos e territoriais, mas também podem envolver a própria economia.

A participação dos estados membros na produção legislativa federal é garantida pelo Senado, que é constituído de representantes dos estados membros, em uma composição legislativa de duas casas – uma delas de representantes do povo.

A federação possibilita um incremento democrático, pelas razões que se seguem. Em primeiro lugar, as diversas esferas políticas, nacional, estaduais e municipais (no caso brasileiro) possibilitam uma maior proteção das minorias locais e regionais em relação à maioria. A federação é a forma de governo que parece ser mais propícia a compatibilizar a heterogeneidade de populações, exatamente por causa da autonomia dos vários entes federativos, que possibilita que minorias sejam ouvidas e suas diferenças respeitadas pelo Estado nacional. É mais fácil uma minoria política ser ouvida no âmbito local e regional. O Estado deve promover ações no sentido de possibilitar às minorias o seu pleno desenvolvimento.

Em segundo lugar, as diversas esferas de poder possibilitam o acesso ao poder de maiorias que variam de tempos em tempos. A ideia é que mesmo um partido político que exerça a oposição em nível federal, ele poderá ganhar as eleições estaduais ou locais e terá a oportunidade de mostrar o seu programa de governo em ação. Esta situação ajuda a promover a alternância de poder. 

Em terceiro lugar, o sistema bicameral do Legislativo possibilita que os assuntos de interesses dos estados membros, mesmo que sejam tratados em legislação federal, haja a participação efetiva daqueles na formação da vontade política.

No que se refere à promoção de políticas públicas, a estrutura federal também se apresenta favorável à democracia, porque, a exemplo das competências comuns, há a possibilidade de União, estados, Distrito federal e Municípios promoverem ações em prol de determinados setores, como ocorre com a saúde (art. 23, II, Constituição), proteger o meio ambiente (art. 23, VI, Constituição), em forma de colaboração e cooperação, de modo a impedir a concentração de poder (e o seu abuso) por parte do poder nacional. Essa divisão de poderes em nível vertical impede o surgimento de um poder nacional onipotente.

Daí é possível se verificar que quanto maior for a descentralização política maiores chances para a democracia florescer no país. Em um governo autoritário, mesmo em um Estado com o nome de federação, a descentralização política será menor, com uma concentração de poderes nas mãos da União.

A simples repartição de competências não é capaz de garantir a descentralização política. A autonomia política, que caracteriza a federação deve garantir que as esferas de poder regionais (estaduais) e locais possam eleger os seus governantes e legisladores.

O Estado brasileiro, portanto, é constituído pela União, estados, Distrito Federal e municípios. Trata-se de uma federação, com um diferencial, pois foi data autonomia política, administrativa e financeira aos municípios.

Como se sabe, não há uma hierarquia entre os entes de uma federação. O que mais caracteriza a federação é a descentralização política. Mas para que isso seja possível, sem que haja uma confusão institucional há a necessidade de uma divisão de competências entre os entes federativos.

O federalismo de coordenação na repartição de competências consiste no exercício conjunto de competências sobre determinadas matérias entre os entes federativos, de modo que cada um deles trate daqueles temas dentro de suas especificidades de abrangência territorial (nacional, estadual e municipal). Cada ente federativo decide de forma autônoma e isolada. É o que acontece com as competências concorrentes, previstas no art. 24 da CR/88.

No federalismo de cooperação, ao contrário, as competências fixadas constitucionalmente devem ser exercidas por todos os entes federativos de modo a união de esforços alcance o bem comum. É o que acontece com as competências comuns, previstas no art. 23, CR/88. Não se trata de uma opção dos entes federados em cooperar, mas, sim, de uma imposição constitucional. Embora a Constituição remeta a matéria à lei complementar, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de reconhecer validade a ajuste contratual entre os entes federados para organizar a cooperação de competência comum.

A saúde é um bom exemplo desta cooperação. Prevista no art. 23, II, da CR/88, a competência comum para cuidar da saúde, entre União, estados, Distrito federal e municípios impõe uma combinação de esforços, como se percebe do texto da lei complementar que regulamenta a cooperação.

  1. Coordenação administrativa no sistema jurídico espanhol

A atuação da Administração Pública, em um Estado democrático de Direito, deve ser pautada na lei. Em outras palavras, os agentes públicos só encontram a legitimidade de sua atuação na lei ou na Constituição. Desta forma é possível investigar se um determinado ato administrativo é válido ou não a partir da verificação se o agente que praticou o ato tem atribuição legal para fazê-lo. 

Em toda estrutura organizacional há que se estabelecer regras de repartição de competências, tendo em vista que vários são os órgãos que desempenham as funções necessárias para o bom funcionamento do todo. Assim, “(...) nada é mais perturbador para o bom funcionamento de um sistema centralizado do que confusão ou indiferenciação de competência (...)”.  

Ao contrário do que se possa parecer, a questão é complexa, porque nem sempre as competências são exclusivas ou privativas, como já se viu anteriormente. O texto constitucional brasileiro estabelece expressamente competências comuns (art. 23) e competências concorrentes (art. 24) e o difícil é definir até que ponto um ente da federação pode exercer as suas atribuições, sem invadir competência alheia.

A Constituição Espanhola de 1978 estabelece dentre os princípios que regem a Administração Pública o princípio da coordenação. O referido preceito significa que “(…) os órgãos e as administrações públicas buscarão que sua atuação seja alinhada e coerente quando existam interesses concorrentes sobre uma matéria”.  O princípio da coordenação tem as mesmas funções que qualquer princípio jurídico em um ordenamento. Ele informa a atividade legislativa, do Chefe do Poder Executivo no exercício do poder regulamentar e da Administração como um todo, ao impor a criação de canais de coordenação entre os órgãos e entidades administrativas. Há uma função hermenêutica, pois nas normas jurídicas devem ser interpretadas de modo a que a favorecer os objetivos dos enunciados. Além disso, há uma função supletiva, para auxiliar os aplicadores das normas em caso de lacunas normativas.

Mas o que exatamente seria a Coordenação Interadministrativa? Trata-se de uma decisão unilateral e vinculante, tomada por uma Administração Pública de um nível territorial superior, em relação a uma Administração local, que está limitada pela autonomia local. O conceito pode soar estranho para o Estado brasileiro, que foi constituído sob a forma de federação. Este conceito, em verdade, foi desenvolvido para um estado unitário, como a Espanha.

Muito embora a Constituição Espanhola reconheça a autonomia municipal, com o poder de autoadministração e autogoverno, nos termos do seu art. 140. Portanto, quando se fala em coordenação administrativa a tarefa difícil é compatibilizá-la com a autonomia municipal, mesmo em um Estado unitário.

Há que se falar em um conteúdo mínimo à autonomia municipal e que não pode ser desprezado pelas autoridades que terão a tarefa de coordenar a atividade administrativa, que seria a) o poder de auto-organização; b) a autonomia financeira do município; e c) limites ao controle sobre o município.

Para Juan Carlos Covilla Martínez a autonomia municipal, como princípio jurídico, tem um caráter expansivo, a autonomia outorga poderes ao Município, ainda que não expressos na Constituição e na lei, com o objetivo de garantia a sua existência. Já a progressividade da autonomia municipal consiste em impor um dever do ente local a utilizar os instrumentos jurídicos de que dispõe para reconhecer e potencializar a sua autonomia.

Há uma garantia prévia para se preservar a autonomia local, mesmo diante do instituto da Coordenação, que são os planos setoriais. Segundo dispõe a lei espanhola, “a coordenação se realizará por meio da definição concreta e em relação a uma matéria, serviço ou competência específica de interesse público ou comunitário, através de planos setoriais para a fixação dos objetivos e determinação das prioridades de ação pública na matéria correspondente”.  

Fica garantida a participação dos municípios envolvidos nos órgãos criados para auxiliar na coordenação (art. 58.2). O objetivo da norma é se possibilitar a cooperação entre os entes administrativos, na chamada cooperação voluntária.

É pertinente uma sentença do Tribunal Constitucional Espanhol sobre a Coordenação Administrativa em matéria de saúde pública, o que interessa a este trabalho, em razão da pandemia da Covid-19 instalada no planeta: a coordenação “deve ser entendida como a fixação de meios e sistemas que tornem possível a informação recíproca, a homogeneidade técnica em determinados aspectos e a ação conjunta das autoridade sanitárias estatais e comunitárias no exercício de suas respectivas competências, de tal modo que se logre a integração de atos parciais na globalidade do sistema sanitário”.

A questão da autonomia local e dos estados se torna mais sensível em um estado federal, como o brasileiro. E isto ocorre porque a autonomia local (ou municipal) e a autonomia provincial (ou estadual) são características de uma federação, pois se trata de uma autonomia reforçada, como já foi dito neste trabalho. Em outras palavras, trata-se de autonomia política. Como em uma federação não há hierarquia entre os entes federados, os três níveis de Administração Pública coexistem, no âmbito de suas competências.

  1. A coordenação intergovernamental em saúde pública: uma alternativa no combate à Pandemia da Covid-19

No âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) há mecanismos de coordenação administrativa, que vão além dos elementos financeiros, para a organização e implementação das políticas de saúde no Brasil. Ganharam relevância instrumentos de natureza política, bem como gerencial, a fim de ampliar a cooperação entre os entes federativos, no desenvolvimento das políticas pública de saúde.

A partir do ano de 2016 foi criado o Pacto pela Saúde, constituído por três elementos: a) o Pacto pela vida; b) o Pacto em Defesa do SUS; e c) o Pacto de Gestão. O primeiro deles, o Pacto pela Vida, teve por finalidade estabelecer compromissos sanitários, com objetivos, metas e indicadores, que deveriam se anualmente reconhecidos pelas três esferas de poder (união, estados e municípios), a partir de seis prioridades: a) saúde do idoso; b) redução da mortalidade infantil e materna; c) controle do câncer do colo do útero e da mama; d) fortalecimento da capacidade de resposta às doenças emergentes e endemias, com ênfase na dengue, hanseníase, tuberculose, malária e influenza; e) promoção da saúde; e f) fortalecimento da atenção básica. Já em 2008 foram incluídas outras prioridades: g) saúde do trabalhador; h) saúde mental; i) fortalecimento da capacidade de resposta do sistema de saúde às pessoas com deficiência; j) atenção integral às pessoas em situação ou risco de violência; e l) saúde do homem.

O Pacto em defesa do SUS tratou de questões financeiras, voltadas à regulamentação da Emenda Constitucional n. 29/2000, com a garantia de recursos mínimos para as políticas de saúde.

Já o Pacto de Gestão teve por foco a regionalização dos instrumentos, a partir do planejamento, gestão do trabalho e educação na saúde. O Pacto pela saúde, como um todo, buscou inovação na gestão do SUS, a partir do comprometimento dos gestores, e no fortalecimento nas relações locais e regionais.

No entanto, embora essa complexa estrutura administrava tenha sido criada, em razão da autonomia política dos entes federativos, não se pode esquecer que se não houver um trabalho coordenado desses entes, recursos públicos serão perdidos por excesso de investimentos em determinadas áreas, enquanto que ao mesmo tempo, outras áreas estarão sem cobertura de serviço.

A Lei 8.080/90, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências, estabelece competências sobre essa questão, que atribui à Direção nacional do Sistema Único de Saúde definir e coordenar o sistema de vigilância epidemiológica (art. 16, III, c). E ainda coordenar e participar na execução das ações de vigilância epidemiológica (art. 16, VI, Lei 8.080/90).

A decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 6341, ao fixar uma interpretação conforme a Constituição de que todos os entes federativos têm competência para o enfrentamento à Pandemia, por estar inserido no art. 23, II, da Constituição (saúde), legitimou a atuação de governadores e prefeitos a agirem de forma diversa, sem uma diretriz geral, sem uma coordenação, que deveria ser exercida pela Direção Nacional do Sistema Único de Saúde.

O combate a uma pandemia, como esta da Covid-19 não se trata apenas de um caso de marcação de consultas ou o agendamento de cirurgias. Isto é uma questão em nível global. A imposição das restrições previstas na Lei 13.979/2020, como quarentena da população, isolamento social, proibição de funcionamento de estabelecimentos empresariais e restrição de horários feitos em uma determinada localidade podem não surtir efeito se em um município vizinho o mesmo não ocorrer.

Não se advoga aqui a ideia de se restringir a aplicação da autonomia dos entes da federação. No entanto, ao que parece, o assunto vai muito além do interesse local, ou mesmo estadual, e passa a ser um interesse de âmbito nacional. É por esta razão que as diretrizes para o enfrentamento da Pandemia devem partir da União, de acordo com os dados alimentados pelos estados e municípios nas unidades do Sistema Único de Saúde.

O argumento na decisão do STF no sentido de que estados e municípios estariam tolhidos de prestar serviços de saúde é falacioso, tendo em vista que os serviços sempre foram prestados de forma integrada nas três esferas de governo. 

Na verdade, a atuação desconectada prejudica o combate à pandemia e descumpre a competência de “definir e coordenar os sistemas de vigilância epidemiológica” da Direção Nacional do Sistema Único de Saúde (art. 16, III, c, Lei 8.080/90), assim como a competência de “coordenar e participar na execução das ações de vigilância epidemiológica”. 

  1. Considerações finais

As medidas de enfrentamento à pandemia da Covid-19 estabelecidas na Lei Federal 13.979/2020 foram submetidas à jurisdição constitucional. A decisão proferida na Medida Cautelar na ADI 6341, no Supremo Tribunal Federal, não reconheceu inconstitucionalidade na referida lei, mas deu interpretação conforme a Constituição, para reafirmar que todos os entes federativos têm competência para tratar do combate à pandemia.

A repartição de competências é uma questão sensível em um estado federal. O Estado constituído sob a forma federal é aquele que reconhece a soberania ao Estado, mas garante autonomia política a todos os entes federativos, com poder de auto-organização, auto legislação e autogoverno.

O federalismo brasileiro assume contornos do federalismo de coordenação em alguns momentos e federalismo de cooperação em outros. O federalismo de coordenação na repartição de competências consiste no exercício conjunto de competências sobre determinadas matérias entre os entes federativos, de modo que cada um deles trate daqueles temas dentro de suas especificidades de abrangência territorial (nacional, estadual e municipal). Cada ente federativo decide de forma autônoma e isolada, como ocorre na competência concorrente, prevista no art. 24, da Constituição.

No federalismo de cooperação, ao contrário, as competências fixadas constitucionalmente devem ser exercidas por todos os entes federativos de modo que a união de esforços alcance o bem comum. É o que acontece com as competências comuns, previstas no art. 23, da Constituição. Não se trata de uma opção dos entes federados em cooperar, mas, sim, de uma imposição constitucional.

Embora a Constituição remeta a matéria à lei complementar, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de reconhecer validade a ajuste contratual entre os entes federados para organizar a cooperação de competência comum, o que se insere a competência em Saúde.

A coordenação administrativa intergovernamental do Direito espanhol é um ato unilateral e impositivo, típico de um Estado unitário. Nestes moldes o instituto não é compatível como o sistema brasileiro, em virtude da autonomia política dos entes federativos.

A decisão do Supremo Tribunal Federal simplesmente afirmou que o enfrentamento à pandemia é uma questão de saúde pública e, portanto, de competência comuns dos entes federativos: União, estados, Distrito Federal e municípios. 

Neste sentido, a referida decisão legitima uma atuação autônoma e fora de sincronia de cada ente da federação com os outros. Uma pandemia não deve ser tratada como um problema local, mas um problema de âmbito nacional.

O Sistema Único de Saúde é um sistema que busca organizar e gerir as políticas públicas de saúde em todo o país. A atuação desconectada prejudica o combate à pandemia e descumpre a competência de “definir e coordenar os sistemas de vigilância epidemiológica” da Direção Nacional do Sistema Único de Saúde (art. 16, III, c, Lei 8.080/90), assim como a competência de “coordenar e participar na execução das ações de vigilância epidemiológica”.

Portanto, no sistema brasileiro existe a coordenação administrativa, consequente do modelo de federalismo adotado na Constituição e aplicado ao Sistema Único de Saúde, de forma que esta atribuição pertence à União, por meio da Direção Nacional do SUS, quem deveria estabelecer as diretrizes sobre as ações de enfrentamento da pandemia da Covid-19.

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