Voz do Associado sex, 23 de abril de 2021
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Por: Jhonny Prado

Procurador do Município de Porto Alegre/RS publicado pelo Migalhas, no dia 20 de abril

Desde o início da crise sanitária nacional instaurada pela Pandemia decorrente do Coronavírus, Chefes dos Poderes Executivos, órgãos de controle e magistrados, de todas as esferas e níveis de Poder, digladiam-se para definir quem é competente para elaborar normas e atos materiais necessários ao enfrentamento da situação de calamidade pública jamais vista.

Em algum momento surgiu a ideia de que só seria dado ao Município agir se for de forma mais restrita do que aquela estabelecida pelo Governo Estadual. Esse mito se ploriferou com velocidade pela comunidade jurídica, sobretudo nos órgãos de controle, contudo, como se demonstrará a seguir, essa interpretação, definitivamente, não decorre do texto constitucional.

A competência dos municípios para a adoção de medidas no âmbito local, como a edição de atos normativos para o combate à pandemia, encontra embasamento tanto na Constituição Federal, como na legislação infraconstitucional.

De início, é importante relembrar que o Brasil é uma República Federativa, formada pela União dos Estados, do Distrito Federal e Municípios, todos autônomos, nos termos da Constituição Federal (art. 1 e 18 da CF).

Na distribuição de competências, o Constituinte assegurou poderes enumerados à União, competência residual aos Estados, assegurando, por seu turno, aos Municípios, a competência para tratar dos assuntos de interesse local. Assim, desde a CF/88, compete ao Município tratar sobre os assuntos de peculiar interesse da sua população local, entendidos esses como assuntos que afetam especialmente as atividades locais, relacionando-se, predominantemente, com as peculiaridades locais.

Isso ocorre porque as autoridades locais, por conhecerem melhor as características da localidade, reúnem mais condições de fixar regras que defendam de forma mais efetiva sua população, tendo em vista que são os primeiros a identificar eventuais problemas. Em relação às matérias sanitárias e de enfrentamento à pandemia, não haveria de ser diferente.

A Constituição da República estabelece em seu art. 196 que "a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".

No contexto da repartição de competências dos entes da federação brasileira, decorre diretamente da Constituição a atribuição para que os municípios adotem medidas de controle sanitário e epidemiológico para a proteção à saúde.

Trata-se de um poder-dever que deriva: (a) da competência material comum, para promover ações de defesa da saúde (art. 23, II, e art. 30, VII, da CF), bem como (b) da competência legislativa suplementar, para editar normas locais, para legislar sobre questões locais vinculadas ao direito à saúde (art. 24, XII, e art. 30, I e II, da CF).

Assim, diante da inexistência de hierarquia entre os entes federados, que, nos termos da Constituição Federal, devem atuar de forma coordenada, não subsiste qualquer fundamento jurídico que imponha aos municípios a necessidade de se adequarem às normas estaduais. Pelo contrário, em relação às matérias em que haja interesse local, dadas as peculiaridades e realidade existente em cada município, observa-se que a Constituição e a legislação atribuem a ele a competência legislativa e material, conferindo aos Estados um papel de coordenação e apoio.

Defender o contrário, frise-se, esvaziaria as competências municipais, bem como ignoraria as realidades locais de cada município, que podem variar substancialmente, especialmente diante de realidades extremamente discrepantes entre municípios com gestão plena de saúde e que concentram grande parte do PIB do Estado com municípios de menor porte e estruturação. A maior proximidade com o quotidiano dos cidadãos e conhecimento dos dados científicos concretos ali verificados faz com que a atuação municipal tenda a ser mais eficiente e proporcional às reais necessidades da localidade.

A Constituição adotou o chamado Federalismo cooperativo, convivendo os entes federados de forma harmônica, devendo ser preservada a predominância do interesse.

Nessa esteira, a doutrina há muito ensina:

"Interesse local não é interesse exclusivo do Município; não é interesse privativo da localidade; não é interesse único dos munícipes. Se se exigisse essa exclusividade, essa privatividade, essa unicidade, bem reduzido ficaria o âmbito da Administração local, aniquilando-se a autonomia de que faz praça a Constituição. Mesmo porque não há interesse municipal que não o seja reflexamente da União e do Estado-membro, como, também, não há interesse regional ou nacional que não ressoe nos Municípios, como partes integrantes da Federação Brasileira. (.) O entrelaçamento dos interesses dos Municípios com os interesses dos Estados, e com os interesses da Nação, decorre da natureza mesma das coisas. O que diferencia é a predominância, e não a exclusividade" (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro, 16ª edição, ano 2008, p. 111 e 112).

 

Além da competência reservada para legislar sobre interesse predominantemente local, a Constituição Federal assegurou aos municípios a competência para suplementar as normatizações federais e estaduais, para adaptá-las ao interesse local.

No enfrentamento à Pandemia não poderia ser diferente. Deveras, alguns aspectos do enfrentamento à Pandemia merecem um tratamento isonômico e planejado para todo o território nacional, como a política nacional de vacinação. Outros reclamam uma normatização regional. Mas não há como negar que há aspectos que são eminentementes locais, merecendo uma atenção especial dos Gestores locais. Imaginar que o Governador do Estado, por meio de um único ato normativo, seria capaz de organizar e gerir, de modo eficiente, a crise política, social, econômica e sanitária, tanto no Município mais singelo, quanto na capital do Estado, além de utópico e irrazoável, não encontra guarida no Estado Democrático de Direito. Só se pode exigir a observância de normas estaduais para atividades e serviços que demandam uma atuação uniformes em todo o estadual.

Não há hierarquia entre os entes. Tampouco se pode falar em hierarquia normativa entre eles. O que restou definido pelo STF no julgamento da ADIn 6341-DF foi a competência comum dos entes federativos para as ações na área da saúde, sem a existência de hierarquia entre os entes. Ali restou consignado: "Como a finalidade da atuação dos entes federativos é comum, a solução de conflitos sobre o exercício da competência deve pautar-se pela melhor realização do direito à saúde, amparada em evidências científicas e nas recomendações da Organização Mundial da Saúde."

O erro está na interpretação de que a melhor realização do direito à saúde estará sempre presente na norma que mais restringe direitos individuais. Há muito a jurisprudência do STF reconhece a competência assegurada pela CF aos Municípios para legislar concorrentemente com União e Estados, no limite de seu interesse local e desde que tal regramento seja e harmônico com a disciplina estabelecida pelos demais entes federados (art. 24, VI, c/c 30, I e II, da CRFB). [- RE 586.224, rel. min. Luiz Fux, j. 5-3-2015, P, DJE de 8-5-2015, Tema 145.]

O que se deve exigir é a harmonia entre as normas federativas e clareza do peculiar interesse local. Ora, nem sempre a norma mais restrita representará a mais harmônica. Deveras, um município que decreta lockdown, sem necessidade fática a indicar esta realidade, em contraposição à norma menos restritiva do ente regional, padecerá de inegável inconstitucionalidade, em que pese esteja agindo de forma mais restritiva. De outra maneira, em determinado município em que a realidade fática demonstre que a situação já esteja mais controlada do que a realidade de outros municípios do Estado, a norma que mais atenderá o interesse local será aquela que menos restringe direitos individuais, sem que isso seja capaz de causar desarmonia com o ordenamento jurídico nacional.

Nas palavras da constitucionalista Ana Paula de Barcellos, a distribuição de competências no âmbito do Estado Federal atende em geral a dois propósitos principais: evitar a concentração de poderes em apenas um ente e proporcionar a eficiência estatal, atribuindo aos entes menores competências que eles possam desempenhar melhor que os entes maiores1. Com efeito, reunir nas mãos do Governador do Estado o poder de regular todos os aspectos do combate à pandemia, reservando aos prefeitos o restrito campo de atuação do estabelecimento de normas mais restritivas daquelas já impostas, além de não ser razoável e eficiente, viola a um só tempo, a autonomia municipal, o pacto federativo e o Estado Democrático de Direito.

De fato, todo o poder emana do povo, que o exerce por meio dos seus representantes eleitos. No caso do interesse local, o poder é da população municipal, e deve ser exercida pelos seus representantes eleitos. Desse modo, parece-nos claro a possibilidade de que, desde que com justificativa plausível, e com base no interesse local, o Município adote regras diversas daquelas adotadas pelo Estado.

Em regra, a dificuldade maior se dá para definir o que é interesse local e o que merece uma atuação coordenada e regional. Trata-se de conceito jurídico indeterminado, que deve ser preenchido pelo intérprete, da análise do caso concreto. Como é cediço, os conceitos indeterminados geram três zonas de incidência: a zona de certeza positiva, aquela em que se tem certeza de que a escolha se insere nas opções legais; a zona de certeza negativa, em que se tem certeza que a opção está completamente fora da previsão legal, e, por fim, a zona limítrofe, em que são possíveis interpretações diversas acerca da legalidade da escolha.

Com efeito, há casos em que patentemente se reconhecerá que determinado assunto não é eminentemente local. Em outros, restará claro que se trata de matéria de competência local. É o caso, por exemplo, do funcionamento do comércio. De fato, o primeiro tema que mereceu o reconhecimento do STF, por meio de súmula vinculante da sua jurisprudência, foi justamente o estabelecimento de horário de funcionamento do comércio local (Súmula vinculante 38). Ora, não poderia ser diferente. Repita-se, não há como uma mesma norma pretender gerir com eficiência realidades tão diferentes, como a de um município de 10 mil habitantes e a da capital de um mesmo Estado.

Por ocasião dos julgamentos da ADIn 6.341/DF e da ADPF 642, o Supremo Tribunal Federal entendeu que legislar sobre normas de combate à covid-19, em nome da defesa e da proteção da saúde, insere-se no rol de atribuições deferidas concorrentemente aos entes federativos (art. 24, XII, e art. 30, I e II, da CF).

Conforme posicionamento do STF, a competência concorrente norteia-se pelo princípio da predominância do interesse, de forma que à União compete editar normas gerais que busquem a coordenação nacional, aos estados compete regular temáticas de interesse regional e aos municípios compete regular temáticas de interesse local. Contudo, tal conclusão não implica o esvaziamento do papel do ente municipal, nem o seu alijamento da participação na execução de ações e serviços de vigilância epidemiológica e controle do surto de covid-19, no desempenho da competência concorrente, tampouco importa em reconhecer que ao Município só é dada a regulamentação de normas mais restritivas - como o mito institucionalizado defende.

Ora, como referido alhures, a competência municipal no que se refere à edição de normas está atrelada ao interesse local, o qual, independentemente de sua maior ou menor restrição em relação à norma estadual, deve preponderar justamente por melhor se amoldar às especificidades e às necessidades da região, embasada em critérios técnicos e cotejadas com as estruturas administrativas para o enfrentamento da pandemia.

A competência legislativa suplementar não pode ser confundida como submissão das normas do Município às Estaduais, devendo prevalecer as políticas públicas de saúde que mais se amoldam aos interesses locais e às necessidades reais e concretas identificadas.

Tem-se, portanto, o aporte legal, teórico e jurisprudencial da competência municipal para o enfrentamento da covid-19. Sobreleva destacar que a identificação do interesse local é a circunstância do direito a ser protegido no universo do município. Fatores como a característica cultural, demográfica, geográfica, topográfica, climática, geológica, econômica, política, de saúde pública - entre outros - indicarão o interesse local a ser protegido.

Vale lembrar, também, que em jogo estão direitos fundamentais dos cidadãos. Para que a intervenção nesses direitos seja considerada válida e constitucional, é necessário o respeito a determinados limites (teoria dos limites dos limites), dentre eles, a obrigatoriedade de fundamentação constitucional válida e a observância da proporcionalidade, adotando-se, dentre as políticas públicas existentes e adequadas, aquela que restrinja de forma menos onerosa os direitos individuais envolvidos, sob pena de tornar a intervenção restrititiva, em intervenção violadora2.

O presente estudo, longe de ter a pretensão de definir a adequada interpretação do texto constitucional, defende apenas que tratemos a situação com a seriedade que o caso requer, sem decisões simplistas e pré-moldadas, analisando o caso concreto e respeitando direitos constitucionais tão caros ao Estado Democrático de Direito, como o pacto federativo, a autonomia municipal e a mínima intervenção nos direitos fundamentais dos cidadãos.

1 BARCELLOS, Ana Paula de. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2018.

2 FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, 6.ª ed, pp. 336-339.

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