Voz do Associado seg, 20 de julho de 2020
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Por: Giuliano Campos Pereira, procurador do Município de Luís Correia/PI 

RESUMO 

O artigo em apreço tem por finalidade precípua propor informação e análise jurídica aos leitores acerca do instituto da calamidade pública e do seu respectivo processo normativo e executório, e a partir disso debater o atual estágio dos seus efeitos práticos em nosso país, a fim de que os mesmos repercutam no nosso ordenamento jurídico. Assim, busca- se observar as origens deste instituto e as suas influências no direito pátrio, posteriormente apresentam-se os temas controvertidos no direito público brasileiro à luz dos princípios constitucionais adequados a presente temática, ainda, referindo-se aos textos normativos em vigor, bem como aos projetos de lei em discussão, por fim é dado ênfase as novas perspectivas de tratamento e resolução dos conflitos jurídicos que emergiram do atual estágio pandêmico. 

Palavras-chave: Calamidade Pública. Direito Público. Princípios Constitucionais. Sistema de Crises. Direito Processual Civil. 

INTRODUÇÃO 

O artigo em tela tem por desiderato analisar o atual evento fático de calamidade pública, decorrente da pandemia do novo Coronavírus (COVID-19), a partir da sua abordagem técnica-jurídica, e suas consequências teóricas e práticas no Direito Público brasileiro, centrado nas normas e entendimento jurisprudenciais recentes. 

Ocorre que, como é cediço, o mundo está vivenciando a assustadora crise decorrente da pandemia, decretada oficialmente pela OMS, da COVID-19, que atinge todo o mundo e está a abalar severamente também o Brasil, que se encontra em estado de Calamidade Pública, pelo Decreto Legislativo no 06, de 20 de março de 2020, e, consequentemente, os Estados e Município brasileiros. 

Circunstância que tem demandado ações quase que instantâneas e enérgicas do Estado brasileiro, conquanto estas devem acatamento ao sistema de normas jurídicas de ordenação de relacionamento institucional entre entes políticos e suas respectivas administrações públicas e destas com os administrados, que é o Direito Público, em sua acepção contemporânea. 

Em sequência tais medidas estatais de enfrentamento a esta adversa situação, são regradas pela atuação técnico-jurídica da Advocacia Pública, que oferta posicionamentos, aos gestores públicos, aferrados ao ordenamento jurídico, pautados na independência funcional e liberdade de convicção jurídica de seus membros. 

Neste sentido, torna-se importante o estudo dos efeitos jurídicos do momento de calamidade nacional na determinação de padrões de atuação do Direito Público e principalmente em seus sub-ramos, como o Direito Constitucional, Administrativo, Tributário-Financeiro e Processual Civil. 

Por fim, cabe evidenciar que o presente texto se mostra necessário no sentido de propor debate atual sobre instituto que não é de todo incipiente, mas que ainda promove dúvidas e divergências sobre seus principais efeitos, antigos e contemporâneos, na Administração Pública e no relacionamento desta com o cidadão, agente propulsor das melhorias públicas. 

  1. CALAMIDADE PÚBLICA 

A calamidade pública, tem assento normativo, inicialmente, na Medida Provisória no 494/2010, convertida na Lei no 12.340/2010 e regulamentada pelo Decreto no 7.257/2010, e posteriormente alterada pela Lei no 12.608/2012; estabelecendo a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, com definições técnicas sobre a ocorrência de desastres e seus efeitos no cotidiano nacional. 

Consoante dicção do art. 2o do Decreto mencionado, entende-se calamidade pública por uma “situação anormal, provocada por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o comprometimento substancial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido”; e desastre é “o resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem sobre um ecossistema vulnerável, causando danos humanos, materiais ou ambientais e consequentes prejuízos econômicos e sociais.” 

Logo, são situações que geram anormalidade de ordem político- administrativa, ocasionadas por eventos naturais ou não de consequências deletérias, que causam conjuntura de ineficácia dos atos de enfrentamento destes, por parte do Poder Público competente, e que autorizam a necessidade de atitudes mais veementes para a superação deste quadro. 

Tal circunstância de defesa civil aproxima-se do direito em sua adequação ao conceito de força maior, que segundo Maria Helena Diniz é “fato jurídico natural extraordinário, sem intervenção da vontade humana que produz efeitos jurídicos no ordenamento pátrio”1; não estando imune a estes efeitos os sub-ramos do direito público em análise, tendo em vista a prevalência do interesse público nestes. 

Cabível comentar que, pela atual situação de crise pandêmica, o estado de calamidade pública fora ampliado em demasia, antes era um instituto diminuto em nossa Constituição Federal, com efeitos relegados ao cerne das normas de direito financeiro, entretanto, hodiernamente, é anseio de diversas outras áreas do direito público, visando a regulação extraordinária das mesmas, como: competência constitucional, incidência tributária, responsabilidade de agentes público, suspensão processual, entre outras. 

  1. DIREITO PÚBLICO 

A divisão entre direito público e privado é uma das antigas e fundamentais para a compreensão do fenômeno jurídico, embora ressalte-se discussões sobre a superação desta dualidade, bem como sobre a área de sintonia entre estes, com esteio na função de tutelar a res pública ou interesses particulares, conforme pontifica Paulo Dourado de Gusmão: 

Os juristas, desde os romanos, têm tentado dar as razões dessa distinção. O critério mais antigo, que vem desde os romanos, é o do interesse: é direito público o que trata de relações e situações jurídicas em que o interesse público predomina, enquanto direito privado aqueles em que sobressai o interesse privado2

Na sua função de observância aos interesses da coletividade o direito público dialoga com os princípios e regras que pautam o comportamento extroverso ou não da Administração Pública, tendo em vista a função precípua desta de instrumentalizar o Estado na busca pela concreção do interesse público primário3

É do Direito Público, por meio de seus sub-ramos como o Direito Constitucional, Administrativo, Penal, Tributário, Financeiro e Processual, que emerge o palco de atuação do comportamento estatal, na forma do seu regime jurídico administrativo. 

Regime jurídico que norteia as decisões administrativas, em seu âmbito próprio, ou mesmo em questionamentos judiciais, tomando por instrumentos necessários a prática diária dos ensinamentos de cada uma dessa matérias, fomentando, assim, pontos de tangência entre sub-ramos do direito, que diariamente se interpenetram nas atividades públicas4

  1. DIREITO CONSTITUCIONAL 

O direito constitucional é direito público fundamental que dá funcionalidade e essência aos diversos elementos fundantes do Estado, desde a sua organização, base principiológica e observância aos direitos fundamentais, como pontifica Luís Roberto 

Barroso, “procura ordenar elementos e saberes diversos, relacionados a aspectos normativos do poder político e dos direitos fundamentais”5

No direito constitucional a calamidade pública, seus pressuposto e consequências, demonstram-se, com maior destaque, apesar da pouca visibilidade no texto constitucional, no tema de repartição de competência (entre os artigos 21 e 24) e nos estados de defesa (artigo 136) e de sítio (art. 137 e seguintes). 

A repartição constitucional de competências localiza-se dentro do título da organização do Estado e, a partir disso, estabelece critérios de aferição de legitimação de atos do poder público, com arrimo nas funções típicas de poder, em matéria legislativa ou administrativa. 

Os artigos 21 e 23 enumeram competência não legislativa, material ou de execução, posto a regulação de ações entre os entes políticos e, respectivamente, apresentam hipóteses onde esta é exclusiva da União, marcada pela indelegabilidade do seu exercício, ou comum a todos os entes, por meio de cooperação destes, por meio de Lei Complementar, por exemplo a no 140/2011. 

Já nos artigos 22 e 24 estabeleceu-se a competência legislativa ou de cariz normativo, critério de elaboração de leis, no primeiro esta é privativa da União, permitindo os Estados regular questões pontuais, por meio de lei complementar; no segundo trata-se de competência concorrente entre União, com normas gerais, e Estados e Distrito Federal, com normas suplementares ou mesmo gerais, caso aquela seja omissa, com possibilidade de suspensão de eficácia destas por sobrevir norma geral da União. 

Aos Municípios há ainda, tanto a opção de legislar sobre interesse local, que é aquela não distinta dos demais entes, mas peculiar a sua própria existência; bem como de suplementar a legislação federal e estadual, seguindo as suas particularidades políticas, previsões do art. 30, incisos I e II. 

No presente, caso destaca-se o cotejo entre a competência material ou de execução de ações do art. 21, inciso XVIII da Constituição Federal que cabe à União exclusivamente “planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações” e a competência entre todos os demais entes políticos de “cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência”, exposta no artigo 23, inciso II da Constituição. 

Surgindo conflito aparente entre normas constitucionais após edição da Medidas Provisórias no 926 e 927/2020, que alteraram a Lei no 13.979/2020, no sentido de centralizar as ações de política sanitária de enfrentamento à pandemia na União, prejudicando a cooperação dos demais entes em determinar regras de isolamento, locomoção e serviços essenciais; porém após propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no 6341, foi concedida medida cautelar, referendada de forma unânime posteriormente em plenário6, com entendimento de as medidas sanitárias do governo federal não afastam as providências dos demais entes, conforme trecho: 

O que nela se contém – repita-se à exaustão – não afasta a competência concorrente, em termos de saúde, dos Estados e Municípios. Surge acolhível o que pretendido, sob o ângulo acautelador, no item a.2 da peça inicial, assentando-se, no campo, há de ser reconhecido, simplesmente formal, que a disciplina decorrente da Medida Provisória no 926/2020, no que imprimiu nova redação ao artigo 3o da Lei federal no 9.868/1999, não afasta a tomada de providências normativas e administrativas pelos Estados, Distrito Federal e Municípios. (ADI 6341 MC/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, STF, 1a turma, julgamento: 24-03-2020.) 

Os ministros aderiram à proposta de que, com base na predominância do interesse local, sobre a necessidade de que os artigos da Lei 13.979/2020 sejam interpretados conforme a Constituição, a fim de deixar claro que a União pode legislar sobre o tema, mas que o exercício desta competência deve sempre resguardar a autonomia dos demais entes. No seu entendimento, a possibilidade do chefe do Executivo Federal definir por decreto a essencialidade dos serviços públicos, sem observância da autonomia dos entes locais, afrontaria o princípio da separação dos poderes. 

O atual estágio de calamidade pública também se insere no sistema constitucional de resolução de crises, sendo este um complexo de postulados constitucionais, que baseando-se em situação de anormalidade e urgência tem por intuito o mais rápido restabelecimento do Estado Constitucional de Direito, trata-se de um verdadeiro estado de exceção. Tal sistema divide-se entre os Estado de Defesa (artigo 136) e Estado de Sítio (artigo 137 e seguintes), ambos com assento expresso na Constituição. 

O Estado de Defesa é uma medida excepcional, menos gravosa que o Estado de Sítio, decretada pelo Presidente da República, ouvidos os Conselhos da República e de Defesa Nacional, e com posterior aprovação do Congresso Nacional. Seu objetivo é o restabelecimento da ordem pública e da paz social, abaladas por iminente instabilidade institucional ou por calamidades de grandes proporções, em localidades restritas e determinadas. É uma medida de competência exclusiva da União, diferentemente do estado único e exclusivo de calamidade, que pode ser decretado por qualquer ente federativo, mas, como visto, pode ser pressuposto constitucional daquele. 

O Estado de Sítio, também de competência exclusiva do Presidente da República e ouvidos os conselhos citados acima, mas com autorização prévia do Congresso, por sua vez, é aquele decretado em situações que geram grave comoção nacional, insuficiência do estado de defesa ou conflito armado envolvendo países estrangeiros. 

O Estado de Defesa pode durar por, no máximo trinta dias, sendo prorrogável apenas por mais trinta. Se a situação de anormalidade permanecer após os sessenta dias, deve-se decretar o Estado de Sítio. Já este terá duração de trinta dias, podendo ser prorrogado por mais trinta, quantas vezes forem necessárias, em casos de comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; em casos de declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira, o Estado de Sítio durará enquanto estas perdurarem. 

Entretanto, com a decretação dessas medidas não há isenção estatal, devendo seus executores serem responsabilizados pelos atos ilícitos que praticarem durante sua vigência, com a sua respectiva execução, é cabível controle político concomitante e posterior das suas medidas restritivas de direitos fundamentais como: de reunião, sigilo de correspondência, liberdade de imprensa, etc, bem como controle de legalidade por parte do Poder Judiciário7

Entretanto, a par de existência dos seus requisitos ensejadores, deve-se tomar muito cuidado com sua utilização em tempos de saudável desenvolvimento democrático brasileiro, tendo em vista seus efeitos nefastos nos direitos mais caros à sociedade, conforme demonstrado acima; logo, embora destaque-se a imprevisibilidade do ineditismo da atual crise pandêmica, tem-se mostrado suficiente a decretação exclusiva do estado de calamidade pública. 

  1. DIREITO ADMINISTRATIVO 

O direito administrativo entendido como conjunto teórico de normas jurídicas que tutelam os órgãos, agentes e funções do Estado na atividade de gerir os interesses públicos da administração, embora não seja codificado, talvez esta matéria seja a que mais tem sofrido com os efeitos da declaração de calamidade pública, na forma do regramento excepcional da Lei no 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, (norma geral de enfrentamento à COVID-19), pela sua normatização extensa e por seus instrumentos de estabilização pública. 

De início, entre seus institutos, cabe mencionar a contratação por tempo determinado que é maneira legal e diversa de admissão de agentes pela administração pública, convivendo harmoniosamente com o provimento em cargos efetivos, por meio de 

concurso público, e a nomeação para cargos em comissão; desde que presente o excepcional interesse público, consoante assento constitucional: 

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...]
II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração; [...]
IX - a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público;” 

Desta forma, a Constituição Federal optou por uma norma de eficácia limitada, tendo em vista que cabe a lei ordinária esmiuçar os casos específicos para a contratação temporária; o regramento federal é feito pela lei no 8.745/1993, seguido por Estados, Distrito Federal e Municípios8

No caso de municípios omissos, deve-se aplicar por analogia a disciplina da lei do respectivo estado ou a própria lei federal, com possibilidade de dispensa de processo simplificado de contratação, pela situação de calamidade pública, no combate ao surto epidêmico, tendo em vista o semblante de urgência à conjuntura administrativa dos entes políticos, consoante o art. 3o, § 1o da lei federal citada: 

Art. 3o O recrutamento do pessoal a ser contratado nos termos do disposto nesta Lei será feito por meio de processo seletivo simplificado, na forma estabelecida em edital, e prescindirá de concurso público. § 1o Prescindirá de processo seletivo a contratação para atender às necessidades decorrentes de: I - calamidade pública; 

Desta feita, existe permissivo legal e comprovação legislativa do atual momento brasileiro, que autoriza a contratação temporária ou até mesmo por requisição administrativa, desde que observando os requisitos legais e funções autorizadas para tanto, numa melhor adequação do serviço público às contingências do atual estado de saúde pública, neste sentido foi a previsão da Lei no 13.979/20209, sem prejuízos à guarida das normas jurídicas constitucionais dispensadas à Administração Pública. 

Outro instituto de viés administrativo influenciado pela emissão de decreto com supedâneo na crise pandêmica, é a licitação que também autoriza a possibilidade de 

contratação direta baseada no momento atípico de saúde pública, conforme a Lei no 8.666/1993 estipula, em seu art. 24, inciso IV: 

Art. 24 É dispensável a licitação: [...] 

IV - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos” 

É sempre imperioso aquilatar a necessidade da realização do trâmite do processo licitatório e suas respectivas formalidades, sendo que o mesmo é procedimento obrigatório à Administração Pública para efetuar suas contratações, consoante preceitua o art. 37, inciso XXI da Constituição Federal, ressalvados os casos em que a Administração pode ou deve deixar de realizar licitação, tornando-se dispensada, dispensável ou inexigível10, consoante tal inciso: 

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...) 

XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.” 

Entretanto, sempre é cabível aferição da presente exceção, uma vez que a decretação do estado de calamidade pública não repele de imediato a obrigação de licitar que recai sobre o poder público. Faz-se, então, imprescindível avaliar, no caso concreto, se de fato estão presentes os requisitos que ensejam a dispensa de processo licitatório, no caso: urgência no atendimento da situação calamitosa objeto do contrato; conexão entre esta e a fundamentação de dispensa contratual; possibilidade de conclusão do objeto contratual em até 180 (centro e oitenta dias) e vedação de prorrogação destes contratos. Estas imposições legais visam restringir a dispensa de licitação apenas àquilo que realmente for da necessidade inarredável, já que a Constituição Federal prevê que a regra é a realização de licitação. 

Com intuito de harmonização sistemática a Lei 13.979/2020, trouxe em seu artigo 4o, previsão específica de nova hipótese de dispensa licitatória, para aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da atual calamidade de saúde pública; presumindo-se a situação sanitária atípica, a necessidade de sua contenção, a existência de risco físico ou patrimonial e a limitação de contratação do objeto em questão. 

Tais imposições legais são fundamentais para a higidez do procedimento licitatório, uma vez que já estão sendo verificadas irregularidades e crimes praticados por vícios na celebração de contratos administrativos emergenciais com base nesta forma de dispensa de licitação. Portanto, tendo como pano de fundo o atual contexto de pandemia pelo qual passa o Estado e a sociedade, é fundamental que o poder público, que venha a firmar relações com licitantes, avalie se, no seu caso concreto, é patente o enquadramento legal para que sejam firmados contratos com base em respectiva dispensa; embora novo entendimento acerca da responsabilização dos gestores, visto à frente. 

Em continuação, a lei no 13.979/2020, trouxe regramento específico ao processo administrativo, que na concepção de José dos Santos Carvalho Filho trata-se de “instrumento que formaliza a sequência ordenada de atos e de atividades do Estado e dos particulares a fim de ser produzida uma vontade final da Administração”11, na forma dos artigos abaixo. 

Art. 6o-C Não correrão os prazos processuais em desfavor dos acusados e entes privados processados em processos administrativos enquanto perdurar o estado de calamidade de que trata o Decreto Legislativo no 6, de 2020. Parágrafo único. Fica suspenso o transcurso dos prazos prescricionais para aplicação de sanções administrativas previstas na Lei no 8.112, de 1990, na Lei no 9.873, de 1999, na Lei no 12.846, de 2013, e nas demais normas aplicáveis a empregados públicos. Art. 6o-D Fica suspenso o transcurso dos prazos prescricionais para aplicação de sanções administrativas previstas na Lei no 8.666, de 1993, na Lei no 10.520, de 17 de julho de 2002, e na Lei no 12.462, de 4 de agosto de 2011. 

No primeiro artigo houve prescrição genérica, de cunho nacional, de suspensão de prazos processuais (ex. oferecimento de defesa escrita do processo disciplinar), que correm contra os acusados em geral, como servidores e demais pessoas sujeitas à disciplina administrativa, por exemplo, concessionários ou permissionários de serviço público; norma que se estende ao demais entes políticos quando da instrução e julgamento de tais procedimentos. 

Seu respectivo parágrafo único trouxe a suspensão dos prazos prescricionais para o exercício da pretensão de aplicar sanções, sejam elas direcionadas a servidor público (lei no 8.112/1990), particulares (lei no 9.873/1999) ou especificamente pessoas jurídicas (lei no 12.846/2013). 

Por fim, há suspensão de prazos prescricionais no interesse sancionador no procedimento licitatório: nas leis de licitações e contratos (lei no 8.666/1993), do pregão (lei no 10.520/2002) e do regime diferenciado de contratações públicas (lei no 12.462/2011). 

Dúvidas podem surgir quanto a segurança jurídica desses artigos e seus efeitos no âmago do processo administrativo e nas decisões tomadas com base neste, já que aquele tem por finalidade a prolação de atos administrativo, todavia, a lei no 9.784/1999 que rege o processo administrativo federal, mas comumente utilizada de forma subsidiária ou supletiva pelos demais entes políticos, autoriza em seu artigo 67 que “salvo motivo de força maior devidamente comprovado, os prazos processuais não se suspendem”. 

Há no caso, autorização legal para tanto e preenchimento do requisito de motivo de força maior, transvestido em calamidade pública, conforme demonstrado alhures, tendo em vista que o processo administrativo tem consequência dual, primeiro atesta segurança jurídica à administração pública na feitura de seus atos, bem como estabelece garantia do devido processo legal pelo contraditório aos interessados. 

Por fim, o atual momento de saúde pública trouxe ainda exceção legal a previsão do princípio republicano de responsabilização dos agentes públicos, tendo em vista ser este regra de balizamento das condutas administrativas destes, uma vez que o seu semblante de interação com o interesse público sempre se sobrepõe e determina comportamento probo de seus servidores. 

Neste leque de responsabilidades, (civil, penal e administrativa), que pautam as condutas do serviço público destaca-se a por atos de improbidade administrativa, com previsão material e processual na Lei no 8.429/1992, que estipula atos juridicamente ímprobos e seu respectivo processo administrativo e judicial para imposição de penalidades político-administrativas, importância abaixo relatada: 

Não obstante a dificuldade na conceituação da improbidade administrativa, o termo pode ser compreendido como o ato ilícito, praticado por agente público ou terceiro, geralmente de forma dolosa, contra as entidades públicas e privadas, gestoras de recursos públicos, capaz de acarretar enriquecimento ilícito, lesão ao erário ou violação aos princípios que regem a Administração Pública.12 

Entretanto a Medida Provisória no 966, de 13 de maio de 2020, trouxe disposição sobre a responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos 

relacionados com a pandemia da COVID-19, trazendo verdadeira exceção normativa à responsabilidade por atos de improbidade administrativa em atos relativos as condutas praticadas durante este momento atípico, conforme seu art. 1o: 

Art. 1o Os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, com as medidas de:
I - enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia da covid-19; e
II - combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da covid-19. 

Desta forma, embora esteja sobre o crivo de sua conversão, o atual entendimento é o de que atos praticados por gestores públicos no enfrentamento a pandemia somente devem sofrer reprimenda da lei de improbidade quando agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro, em contradição com esta, uma vez que há atos ímprobos punidos por simples culpa, como nos casos de lesão ao erário; em clara sintonia com a Lei no 13.655/2018, que acrescentou normas de acepção de gestão pública na lei de introdução as normas do direito brasileiro, conforme seu artigo 28. 

Art. 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro. 

De imediato surgiram diversas dúvidas e discussões acerca desta excepcionalidade, em que contrasta a duradoura tradição da efetiva responsabilização dos agentes públicos e a contemporânea necessidade de agir destes em um cenário fático totalmente inédito, em que condutas dramáticas e imediatas são perpetradas sem a devida percepção dos seus resultados práticos. 

Todavia, logo em sequência, após ser questionado em diversas ADI’s, o STF definiu pela concessão de medida cautelar parcial mantendo o teor da medida provisória, apenas dando interpretação conforme a Constituição, desta forma: 

Na sequência, por maioria, deferiu parcialmente a cautelar para: a) conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 2o da MP 966/2020, no sentido de estabelecer que, na caracterização de erro grosseiro, deve-se levar em consideração a observância, pelas autoridades: (i) de standards, normas e critérios científicos e técnicos, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente conhecidas; bem como (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção; e b) conferir, ainda, interpretação conforme à Constituição ao art. 1o da MP 966/2020, para explicitar que, para os fins de tal dispositivo, a autoridade à qual compete a decisão deve exigir que a opinião técnica trate expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades reconhecidas nacional e internacionalmente; (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção. (ADI 6421 MC/DF, Rel. Min. Roberto Barroso, STF, 1a turma, julgamento: 21-05-2020.) 

Com isso, assentou-se que a expressão “erro grosseiro” deve ter roupagem constitucional, inferindo-se que este se evidencia quando o ato administrativo for ultimado sem recorrer aos padrões normativos do direito, como os princípios da precaução e da 

prevenção e de critérios técnicos das autoridades de saúde, ou por intermédio de condutas científicas negacionistas, além de vedação total a possibilidade da prática de crimes; houve com isso, atitude de zelo pelo microssistema de exigência de responsividade dos agentes públicos, livrando a mencionada MP da pecha de irrazoada excludente de ilicitude civil e administrativa. 

  1. DIREITO TRIBUTÁRIO E FINANCEIRO 

O direito tributário e financeiro, com mais razões este último, são os primeiros afetados por situação de calamidade pública, tendo em vista as razões econômicas que subjugam a atuação estatal, logo, o estado, implementador de políticas públicas que demandam aporte do seu erário, sente prejuízos na sua arrecadação, principalmente, pela necessária paralisação da atividade econômica, que atualmente fomenta a atividade de tributação. 

Logo, os sub-ramos aqui comentados dialogam na atividade estatal conjunta de recepção de tributos e a implementação destes nas suas respectivas receitas e despesas formando o núcleo da função político-econômica de existência do Estado e viabilização de direitos que demandam atuação deste, como se demonstra: 

O direito financeiro, por sua vez, guarda relação estreita com o direito tributário. E isso principalmente em razão da funcionalização da tributação, a exigir a análise da finalidade quando da instituição das contribuições e empréstimos compulsórios, bem como da efetiva destinação do seu produto, como critério de validação constitucional de tais tributos.13 

No âmbito do direito tributário exsurge da calamidade pública circunstancial, a competência constitucional especial da União, por meio reserva de lei complementar, de instituir o Empréstimo Compulsório, figura tributária necessária para atender despesas extraordinárias ou para investimento público. 

Com assento constitucional, no artigo 148, a par de antigas discussões quanto a sua fisionomia, tem caráter de tributo, embora bastante peculiar, com vinculação finalística de sua receita, necessidade de restituição e requisitos específicos para sua criação, consoante o artigo citado acima: 

Art. 148. A União, mediante lei complementar, poderá instituir empréstimos compulsórios:
I - para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência; II - no caso de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional, observado o disposto no art. 150, III, "b". Parágrafo único. A aplicação dos recursos provenientes de empréstimo compulsório será vinculada à despesa que fundamentou sua instituição. 

Na comunhão com os objetivos da presente análise, destaca-se a possibilidade de instituir o mesmo, baseando-se em hipótese de calamidade pública, como desenvolvida outrora, devendo esta apresentar situações emergenciais e eminentemente extraordinárias, sob pena de vulgarização da presente autorização constitucional, se não observados seus requisitos legais14, sendo causa que excepciona as duas regras de anterioridade tributária – anual e nonagesimal. 

Entretanto seu fato gerador não é a calamidade pura e simples, mas sim a previsão legal para tanto, esta é apenas o contexto fático que autoriza o exercício da competência especial, devendo haver prazo estabelecido do empréstimo e sua respectiva devolução, conforme previsão do parágrafo único do artigo 15 do Código Tributário Nacional15, daí sua nomenclatura histórica de empréstimo e seu aspecto de temporalidade de recurso ao Estado. 

Outra particularidade comum também as contribuições especiais, é a necessária vinculação da sua respectiva receita com as despesas oriundas da situação de calamidade pré-existente e obrigatória para a instituição tributária em questão, tendo em vista que é ilógico haver situação que autoriza tal instituto e a sua respectiva renda não ser revestida as necessidades desta, vedando-se com isso, o desvio das razões políticas no seu adequado exercício administrativo.16 

Porém, embora presente a opção pela mencionada exação, talvez neste momento a sua instituição provocaria efeitos nefastos no cotidiano do contribuinte, pois além de ter sua renda mensal diminuída, ainda teria quer contribuir de sobremaneira para o Estado, por meio de tributo inédito, por uma conjuntura sanitária que causa prejuízos a todos, ente político ou sociedade. 

No cerne do cariz financeiro do Estado a hipótese jurídica da calamidade destaca-se com maior enfoque, primeiramente, na decretação da mesma que se dá apenas pelo ente em que sua atuação política seja insuficiente em face da situação de 

anormalidade, com reconhecimento posterior pelos entes que auxiliarem aqueles, que tem como instrumentos similares o estado de defesa e o estado de sítio, vistos acima. 

Além de atitudes necessárias e atípicas bastante genéricas, como parcelamento de dívidas, atraso na execução de gastos obrigatórios e antecipação de recebimento de receitas, a crise decorrente de calamidade financeira tem por efeito principal a flexibilização de algumas regras orçamentárias contidas na Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar no 101/2000), como por exemplo a de cumprir prazos de controle de despesas de pessoal e de limites de endividamento, atingir as metas fiscais, bem como utilizar o mecanismo da limitação de empenho, entre outras, como previsão do seu artigo 65: 

Art. 65. Na ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, no caso da União, ou pelas Assembléias Legislativas, na hipótese dos Estados e Municípios, enquanto perdurar a situação: I - serão suspensas a contagem dos prazos e as disposições estabelecidas nos arts. 23 , 31 e 70;
II - serão dispensados o atingimento dos resultados fiscais e a limitação de empenho prevista no art. 9o

Entretanto, como se destaca na cabeça do artigo, para que a situação atípica seja legítima no âmbito dos Municípios, é necessário que haja reconhecimento pela Assembleia Legislativa Estadual respectiva de aprovação do decreto de calamidade do Executivo municipal, não sendo suficiente apenas por parte de sua Câmara de Vereadores. 

Também nesta matéria há a exceção de abertura de créditos extraordinários, baseados em despesas imprevisíveis e prementes, como no caso de calamidade pública, devidamente declarada e reconhecida pelo Poder Legislativo, com intuito de proporcionar ajustes ao orçamento vigente, adequando-o ao panorama econômico-social do país, por isso seu semblante de crédito adicional17

Tal instituto prescinde do princípio da legalidade estrita, podendo ser aberto com decreto do Poder Executivo ou mesmo por Medida Provisória, após análise de comissão mista do orçamento, conforme artigo 167, § 3o da Constituição Federal: 

  • 3o A abertura de crédito extraordinário somente será admitida para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública, observado o disposto no art. 62. 

Todavia, há celeuma doutrinária e jurisprudencial acerca de qual instrumento sustenta-se como adequado aos Estados e Municípios, logo, a partir de entendimento sistemático da Constituição, esta não veda a disciplina das MP’s no âmbito estadual e municipal, desde que sigam as regras de urgência e relevância do plano federal, sendo esta norma de princípio extensivo, com lastro na autonomia dos entes e da predominância de interesses. 

  1. DIREITO PROCESSUAL CIVIL 

Os entes políticos, como pessoas jurídicas de direito público, no exercício pleno dos seus direitos tem capacidade processual, tendo legitimidade para ser sujeito em processo civil, presentados ativa ou passivamente em juízo pela advocacia pública e seus respectivos procuradores, que fazem repercutir, judicialmente, os interesses da administração pública, construindo aspectos processuais próprios, consoante doutrina: 

Tratando-se da Fazenda Pública, sua representação é feita, via de regra, por procuradores judiciais, que são titulares de cargos públicos privativos de advogados regularmente inscritos na OAB, detendo, portanto, capacidade postulatória. Como a representação decorre da lei, é prescindível a juntada de procuração, de forma que os procuradores representam a Fazenda Pública sem necessidade de haver procuração; a representação decorre do  vínculo legal mantido entre a Administração Pública e o procurador.18 

Não sendo distintos os efeitos circunstancias pandêmicos nesta disciplina, que deve, antes de tudo seguir com retidão os valores constitucionais, a primeira observação que se faz necessária é a de que o atual Código de Processo Civil (lei no 13.101/2015) em sua exposição de motivos, carta de intenções de legisladores e juristas, preza pela incessante busca de seus cinco objetivos centrais. 

No presente tópico é imprescindível fazer referência ao objetivo número dois: “criar condições para que o juiz possa proferir decisão de forma mais rente à realidade fática subjacente à causa”, uma vez que as atuais demandas das fazendas públicas em juízo são singulares, vislumbrando os prejuízos, principalmente de ordem financeira, que é vítima o erário público. 

É deste objetivo que se espraia dois significantes fenômenos processuais da atualidade: a suspensão massiva do curso de processos judiciais e o ajuizamento de ações que têm por intuito discutir como causa de pedir o nosso atual estado de crise pandêmica. 

Em relação ao primeiro fato, a suspensão processual, com efeito de obstar o prazo em curso para posteriormente retomá-lo, tem previsão no atual Código de Processo Civil, tendo por base situação de força maior (artigo 313, inciso VI), entendida como gênero que é espécie a calamidade pública, que considera-se justa causa, ou seja evento alheio à vontade da parte e que a impediu da prática do ato (artigo 223, §1o). 

Tal possibilidade tem como destinatários especificamente os juízes, para o exercício da função jurisdicional dentro da sua competência, com subsídio no poder-dever do magistrado de adequar o trâmite processual com as particularidades da causa, com 

claro apego ao objetivo citado acima, já que uma tutela compatível com os seus imperativos fáticos é resultado último da função jurisdicional, conforme artigo 139, inciso VI do CPC: 

Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, 

incumbindo-lhe: 

VI - dilatar os prazos processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova, adequando-os às necessidades do conflito de modo a conferir maior efetividade à tutela do direito; 

Entretanto, o próprio Conselho Nacional de Justiça - CNJ, em sua atuação administrativa, financeira e funcional em relação ao Poder Judiciário, por conta do inédito estado de calamidade nacional, trouxe resguardo a função jurisdicional e a segurança de atuação aos sujeitos processuais; tendo em vista que por meio de atos administrativos tem feito adequações no trâmite processual, como a Portaria no 79/2020, que prorrogou os prazos das diretrizes para a atuação do Poder Judiciário durante a pandemia passando as Resoluções no 313, 314 e 318/2020, a vigorarem até meados de junho

As normativas estenderam a suspensão dos prazos de processos físicos até esta data última, sendo que os prazos dos processos virtuais já foram retomados no início do mês de maio. Porém, com a devida atenção, nos estados que sejam decretadas medidas restritivas à circulação de pessoas com fim sanitário, os prazos de processos físicos ou virtuais continuam sendo automaticamente suspensos, conforme Resolução 318, de 07 de maio de 2020: 

Art. 2o. Em caso de imposição de medidas sanitárias restritivas à livre locomoção de pessoas (lockdown) por parte da autoridade estadual competente, ficam automaticamente suspensos os prazos processuais nos feitos que tramitem em meios eletrônico e físico, pelo tempo que perdurarem as restrições, no âmbito da respectiva unidade federativa (Estados e Distrito Federal). 

Neste momento vigora regramento de transição para retomada da atividade judiciária, por intermédio da Resolução 322, de 01o de junho de 2020, do CNJ, baseada em adequado critério de escalonamento gradual e sistemático de suas atividades, com observância as regras de prevenção; prevendo o retorno pleno das funções do Poder Judiciário em fases, a partir do dia 15 de junho último. 

Segundamente, cabe analisar a multiplicidade de ações judiciais que têm como base a pandemia da COVID-19, gerando pedidos de suspensão de contratos de parcelamentos, principalmente, dos Estados e Municípios em relação a dividas com a União e seus demais órgãos e entidades, ações estas, embasadas em decisões do Supremo Tribunal Federal, como a concessão de medida cautelar em Ação Cível Originária (ACO) no 3.363, em que o Estado de São Paulo requereu em pedido liminar, que a União se abstenha da cobrança e de seus efeitos, em decorrência de não pagamento de contrato de refinanciamento de dívida, que celebrou com esta, conforme trecho abaixo: 

A alegação do Estado de São Paulo de que está impossibilitado de cumprir a obrigação com a União em virtude do “atual momento extraordinário e imprevisível relacionado à pandemia do COVID-19 e todas as circunstâncias nele envolvidas” é, absolutamente, plausível; estando, portanto, presente na hipótese, a necessidade de fiel observância ao princípio da razoabilidade, uma vez que, observadas as necessárias proporcionalidade, justiça e adequação da medida pleiteada e a atual situação de pandemia do COVID- 19, que demonstra a imperatividade de destinação de recursos públicos para atenuar os graves riscos à saúde em geral, acarretando a necessidade de sua concessão, pois a atuação do Poder Público somente será legítima, se presentes a racionalidade, a prudência, a proporção e, principalmente, nesse momento, a real e efetiva proteção ao direito fundamental da saúde. A medida pleiteada comprova ser patente a necessidade de efetividade de medidas concretas para proteção da saúde pública e da vida dos brasileiros que vivem em São Paulo, com a destinação prioritária do orçamento público. (ACO 6341 MC/SP, Rel. Min. Alexandre de Moraes, STF, 1a turma, julgamento: 22-03- 2020.) 

Consignando, ainda, a necessidade de comprovar que os valores respectivos, das dívidas vigentes, estão sendo integralmente aplicados pelos entes beneficiários de tais medidas, nas secretarias de saúde, para o custeio das ações de prevenção, contenção e combate à pandemia. 

Contudo a Lei Complementar no 173/2020, de 27 de maio de 2020, que trata do Programa Federativo de Enfrentamento à COVID-19, estabeleceu medidas de auxílio financeiro da União para com Estados, Distrito Federal e Municípios, e determinou regra de exclusão dos entes que, em até dez dias contados da publicação desta, não tenham renunciado ao direito sobre o qual se fundamenta a ação, ajuizadas após o dia 20 de março deste ano, com esteio na calamidade pública da COVID-19, consoante seu § 7o do artigo 5o: 

  • 7o Será excluído da transferência de que tratam os incisos I e II do caput o Estado, Distrito Federal ou Município que tenha ajuizado ação contra a União após 20 de março de 2020 tendo como causa de pedir, direta ou indiretamente, a pandemia da Covid-19, exceto se renunciar ao direito sobre o qual se funda em até 10 (dez) dias, contados da data da publicação desta Lei Complementar. 

Observe que não se trata de simples desistência da ação, que provoca resolução sem julgamento mérito (artigo 485, inciso VIII do CPC), mas sim renúncia à pretensão formulada na ação (artigo 487, inciso III, “c” do CPC)19 que provoca julgamento de mérito, com posterior trânsito em julgado, embora tenham a mesma disciplina processual quanto ao pagamento de despesas processuais e honorários advocatícios. 

Apesar de questionamentos políticos, que excedem os objetivos deste trabalho, quanto as razões do parágrafo supra e de dúvidas quanto ao regime das liminares em tutela provisória deferidas anteriormente a 20 de março, o que a União pretendeu foi ter pra si o comando executivo deste auxílio emergencial, tentando, blindá-lo da interferência do controle judicial, embora a inafastabilidade do Poder Judiciário seja a regra, se com sucesso ou não, somente no transcorrer dos próximos meses é que será possível aclarar a presente disposição legal, sem prejuízo de questionamentos judiciais. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

São notórios o ineditismo e a imprevisibilidade da nossa atual conjuntura de saúde pública e seus efeitos teóricos e práticos no Direito Público, trazendo à tona a necessidade imperiosa do Estado brasileiro e suas respectivas administrações públicas, como instituição catalisadora do interesse público e da operacionalização deste na sociedade, transformarem os aspectos sociais, políticos e econômicos em difusores da nossa ordem constitucional. 

Desta forma, o Estado deve, permanentemente, se readequar as necessidades do cotidiano do cidadão, sendo guarida aos infortúnios deste, torna-se necessário redesenhar o pacto federativo brasileiro e propor perene diálogo na administração pública, tendo em vista, principalmente, a política pública de saúde, que por meio de seu sistema único tem prestado relevante serviço no enfrentamento à COVID-19, bem como o papel normativo e executor das medidas sanitárias, exauridas pelos Municípios. 

O pacto federativo é o sistema de repartição de competências e arrecadação de receitas que rege a descentralização da forma do estado brasileiro e sua harmonia entre os entes políticos; a necessidade de redefinição deste, acentuou-se com a atual grave crise de calamidade pública, tendo em vista as dificuldades orçamentárias e de gestão dos Estados e Municípios, que necessitaram de um plano de emergência desenvolvido pelo governo federal, como exposto anteriormente. 

Logo, o fundamental, conforme Proposta de Emenda Constitucional em trâmite no Congresso Nacional, é buscar dar mais autonomia financeira para Estados e 

Municípios, com esse intuito é que a PEC, em debate congressional, busca, de modo geral, descentralizar os recursos públicos e desvincular receitas de determinadas despesas. 

Privilegiando, com isso, o interesse local, mais caro aos Municípios, efetivando a realização de direitos fundamentais na órbita de poder mais próxima ao cidadão/contribuinte. 

Da mesma forma, cabe destacar o diálogo habitual, claro e resolutivo entre administrações públicas dos entes políticos e entre estas e o administrado, como fator dileto de consensualidade e enfrentamento lógico a presente crise pandêmica, uma vez que somente com a participação da sociedade na produção de atos administrativos é que torna a atividade administrativa correta e mais rente aos preceitos constitucionais. 

Por último, a adequação das medidas estatais de enfrentamento a pandemia citadas acima e os fenômenos político-administrativos mencionados a pouco, devem ser cotejados pela atuação técnico-jurídica da Advocacia Pública, que por seus entendimentos, ao reflexo do ordenamento jurídico, com prevalência aos apelos constitucionais, representa fator de mudança nos destinos da coisa pública. 

NOTAS 

1 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro – Teoria Geral do Direito Civil. 28. ed. São Paulo, Saraiva, 2011, p. 410. 

2 GUSMÃO, Paulo Dourado de Gusmão. Introdução ao Estudo do Direito. 42. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2010, p. 146. 

3 NOHARA, Irene Patrícia. Fundamentos de Direito Público. 1. ed. São Paulo, Atlas, 2016, p. 8. 

4 FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo, Atlas, 2018, p. 64. 

5 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 7. ed. São Paulo, Saraiva, 2018, p. 45. 

6 DANTAS, Paulo Roberto de Figueiredo. Direito Processual Constitucional. 6. ed. São Paulo, Atlas, 2015, p. 236-237. 

7 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 36. ed. São Paulo, Atlas, 2020, p. 874. 

8 SCATOLINO, Gustavo; TRINDADE, João. Manual de Direito Administrativo. 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 419. 

9 Art. 3o. Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: [...] VII - requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa; 

10 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 29.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 433. 

11 FILHO, José dos Santos Carvalho. op. cit., p. 1.101. 

12 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de improbidade administrativa: direito material e processual. 6.a ed. Rio de Janeiro, Forense, 2018, p. 28. 

13 PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo. 8. ed. São Paulo, Saraiva, 2017, p. 29-30. 

14 SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 9. ed. São Paulo, Saraiva, 2017, p. 501. 

15 Art. 15. Somente a União, nos seguintes casos excepcionais, pode: [...] Parágrafo único. A lei fixará obrigatoriamente o prazo do empréstimo e as condições de seu resgate, observando, no que for aplicável, o disposto nesta Lei. 

16 SABBAG, Eduardo. op. cit., p. 499-500. 

17 LEITE, Harrison. Manual de Direito Financeiro. 5. ed. Salvador, Juspodvm, 2016, p. 116-117. 

18 CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 17. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2020, p. 6. 

19 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 8.a ed. Salvador, Juspodivm, 2016, p. 756-757. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 7. ed. São Paulo, Saraiva, 2018. 

CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 17. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2020. 

DANTAS, Paulo Roberto de Figueiredo. Direito Processual Constitucional. 6. ed. São Paulo, Atlas, 2015.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro – Teoria Geral do Direito Civil. 28. ed. São Paulo, Saraiva, 2011. 

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 29. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. 

FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo, Atlas, 2018. 

GUSMÃO, Paulo Dourado de Gusmão. Introdução ao Estudo do Direito. 42. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2010. 

LEITE, Harrison. Manual de Direito Financeiro. 5. ed. Salvador, Juspodvm, 2016. 

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 36. ed. São Paulo, Atlas, 2020. 

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Improbidade Administrativa: direito material e processual. 6.a ed. Rio de Janeiro, Forense, 2018. _________. Manual de Direito Processual Civil. 8.a ed. Salvador, Juspodivm, 2016. 

NOHARA, Irene Patrícia. Fundamentos de Direito Público. 1. ed. São Paulo, Atlas, 2016. 

PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo. 8. ed. São Paulo, Saraiva, 2017. 

SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 9. ed. São Paulo, Saraiva, 2017. 

SCATOLINO, Gustavo; TRINDADE, João. Manual de Direito Administrativo. 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2016. 

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