Voz do Associado ter, 26 de julho de 2022
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Por: José Eduardo Martins Cardozo,

Ex-Procurador do Município de São Paulo. Sócio do Martins Cardozo Advogados Associados. Ex-ministro de Estado da Justiça. Ex-advogado-geral da União. Professor da Pontifícia Universidade Católica da São Paulo (PUC-SP). Doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e pela Universidade de Salamanca, mestre pela PUC-SP
Eduardo Lasmar Prado Lopes ,

Advogado associado do Martins Cardozo Advogados Associados. Ex-assessor de ministros do STF. Doutorando em ciência política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ). Mestre em direito público e graduado em direito pela UERJ. Secretário-geral-adjunto da Comissão de Assuntos Constitucionais da OAB-DF.

Publicado pelo Jota no dia 26 de julho de 2022.

A Lei 14.341/2022, promulgada recentemente, passou quase despercebida no mundo do Direito. Apesar da novidade – um tanto engenhosa – da figura da Associação de Representação de Municípios (ARM), poucos juristas, inclusive do Direito Administrativo, se dedicaram a analisar as inovações heterodoxas trazidas pela norma. Apesar da discrição com que foi tratada, a Lei 14.341/2022 possui diversas inconstitucionalidades, especialmente quando se leva em conta os princípios que regem a Administração Pública e a contribuição das procuradorias municipais para o interesse público e para o sistema de justiça. É sobre algumas dessas violações que iremos tratar aqui.

O objetivo da ARM é que sejam constituídas associações de municípios, para a realização de metas de “interesse comum de caráter político-representativo, técnico, científico, educacional, cultural e social” (art. 1º). Essas associações são constituídas como pessoa jurídica de direito privado (art. 2, I, a), para atuar na defesa do interesse dos entes associados.

Dentre as finalidades da ARM estão (art. 3º): (i) promover o intercâmbio de informações sobre temas de interesse local; (ii) desenvolver projetos relacionados a questões de competência municipal, como educação, esporte e cultura; (iii) participar de processos legislativos de interesse dos filiados; (iv) postular em juízo, em ações individuais ou coletivas, para defender interesse dos filiados, seja como parte, terceiro interessado ou amicus curiae; (v) atuar na defesa dos interesses gerais dos filiados perante os Poderes Executivos da União, dos Estados e do Distrito Federal; (vi) apoiar a defesa dos interesses comuns dos municípios filiados em processos administrativos que tramitem perante os Tribunais de Contas e órgãos do Ministério Público; (vii) representar os municípios filiados em instâncias privadas; (viii) constituir programas de assessoramento e assistência para os filiados, para assuntos de interesse comum; (ix) organizar e participar de reuniões, congressos, seminários e eventos; (x) divulgar publicações e documentos em matéria de sua competência; (xi) firmar convênios com entidades de caráter internacional, nacional, regional ou local que atuem em assuntos de interesse comum; (xii) exercer outras funções que contribuam com a execução de seus fins.


Os arts. 1º e 3º revelam um amplo leque de atividades. Qualquer interesse que, com algum esforço argumentativo, possa ser caracterizado como direta ou indiretamente local poderia legitimar a constituição e a participação da ARM, seja em processos judiciais, seja em instâncias administrativas. Não obstante, essas associações não possuem as prerrogativas de direito material e processual asseguradas aos municípios (art. 12). Além disso, não se exige licitação ou concurso público para a seleção de pessoal, que se submete ao regime celetista, e para contratação de bens e serviços. Basta a realização de procedimentos simplificados previstos em regulamento próprio, observados os princípios da Administração Pública (art. 6º, caput, I).

Feita essa breve introdução, passamos a explicitar, rapidamente, as – já bastante evidentes – inconstitucionalidades da lei. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) é no sentido de que a instituição de órgão de advocacia pública municipal não encontra previsão na Constituição, afastando o argumento de que os arts. 131 e 132, CF seriam normas de reprodução obrigatória pelos municípios[1]. Isso não significa que, uma vez constituído o órgão de assessoria jurídica, seja possível preterir a atuação dos servidores públicos com a contratação de profissionais privados em paralelo. Não faz sentido que o ente federativo constitua uma estrutura organizacional, faça concurso e nomeie servidores, com todas as garantias do serviço público, para, ao fim, ser possível a contratação de comissionados em paralelo à atividade estatal.

Aliás, o STF decidiu apenas que a Constituição não impõe a implementação do órgão da advocacia pública nos casos do município. Contudo, não é legítimo o ente ter a prerrogativa de, paulatinamente, extinguir o órgão, para que a estrutura da assessoria jurídico seja composta apenas – ou majoritariamente – por comissionados. O esvaziamento do órgão é inconstitucional, porque contraria os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade e da proporcionalidade (arts. 1º, caput, 5º, II, e 37, caput, CF). É com certeza mais consentâneo com a Constituição a instituição de um órgão técnico-jurídico, vinculado à estrutura estatal e composto por servidores de carreira, do que uma assessoria comissionada que muda de acordo com as mudanças no poder.

A Lei 14.341/2022 caminha na direção oposta a esse ideal normativo, porque permite que a advocacia do interesse público local seja exercida sem as garantias processuais e materiais dos municípios. Além de estimular o esvaziamento das procuradorias, cria fortes incentivos para que os municípios não implementem procuradorias. Flexibiliza a possibilidade de contratação de escritórios de advocacia amesquinhando o papel exercido pelos órgãos de advocacia pública. Portanto, os entes que possuem tal estrutura não podem abdicar de seus servidores e de suas instituições, para que a advocacia do interesse local seja tutelada por atores privados, sem as prerrogativas da Fazenda Pública.

Como o próprio STF já decidiu, as procuradorias municipais são essenciais à justiça, de modo que as prerrogativas da classe devem ser equiparadas às das procuradorias estaduais e federais[2]. Além disso, a lei autoriza, por vias transversas, a celebração de transações e de acordos independentemente de controle por outros órgãos e de parâmetros legais, em violação ao postulado da indisponibilidade do interesse público e aos princípios da Administração Pública. Permite também o pagamento de verbas e honorários advocatícios decorrentes de condenações judiciais sem a emissão de precatórios ou de restituição de pequeno valor, o que afronta o art. 100 da CF. Assim, a estabilidade, a indisponibilidade do interesse público, a moralidade e a legalidade são princípios que regem a atividade dos procuradores – ou mesmo dos comissionados e dos advogados privados contratados para a prestação de serviço – no dia a dia.

A Lei 14.341/2022 apresenta considerável retrocesso na garantia de uma advocacia pública voltada aos interesses público primários. O município – e o interesse local – será representado, direta ou indiretamente, por meio de uma entidade de direito privado, como uma associação qualquer, com prerrogativas legais e processuais inerentes à atividade privada. Mesmo o advogado privado contratado pela Administração Pública para exercer a advocacia, como no caso da excepcional contratação de escritório de advocacia mediante dispensa de licitação[3], goza das prerrogativas da Fazenda Pública, o que não ocorrerá com a ARM. Não há nenhuma lógica em autorizar que o ente federativo em questão possa celebrar acordos com organismos e entidades internacionais, com órgãos da Administração Pública direta e indireta dos diversos níveis da federação, com os poderes dos Estados e da União, sem as prerrogativas de direito público. Permitir a representação do interesse público local por pessoa jurídica de direito privado associado à lógica do modelo de advocacia privada viola os arts. 30 e 37, caput, XI c/c 131 e 132 da CF.

Outro ponto de preocupação diz respeito à fiscalização. Como entidade de direito privado, a lei foi omissa sobre o controle e a fiscalização dos Tribunais de Contas municipais (onde houver) e estaduais. O regime de contratação de pessoal, de bens e de serviços é basicamente de direito privado: a ARM pode contratar sem licitação e sem concurso. Deve apenas observar os princípios da legalidade, da igualdade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da economicidade e da eficiência (art. 6º, I, a) e seu pessoal está submetido à CLT.

Lembremos que mesmo os consórcios públicos de direito privado, constituídos na forma do art. 1º, § 1º, segunda parte, da Lei 11.107/2005, devem observar as regras de licitação para a contratação de bens, de serviços e de pessoal (art. 6º, § 2º). Abriu-se um campo bastante temerário: qual órgão de contas exercerá a fiscalização? Qual o Ministério Público com atribuição em caso de irregularidades? Obviamente, o fato de a lei não responder tais questionamentos não torna a ARM imune ao controle desses órgãos, sob pena de violação aos arts. 71, 75 e 129, CF. Contudo, impõe-se uma interpretação conforme a Constituição da norma, para assegurar que o controle seja exercido pelos órgãos fiscalizatórios competentes.

Aliás, outro ponto relevante diz respeito à ausência da participação do Poder Legislativo na instituição da ARM e na fiscalização das suas atividades. A lei confere uma grande proeminência ao Executivo na consecução das finalidades estabelecidas na lei para a instituição da associação e para a execução de suas atividades. No entanto, se o Legislativo não pode se imiscuir nas atividades administrativas para não afrontar a separação de poderes[4], por outro lado, atividades inerentes à competência municipal, vinculadas à consecução do interesse local, não podem ser afastadas do olhar desse poder.

Além de exercer tipicamente a atribuição fiscalizatória, o art. 3º da Lei 14.341/2022 possui diversos incisos que versam sobre concretização do interesse público local e que, por isso, deveriam passar pelo crivo dos representantes populares. A celebração de convênios, por exemplo, pode afetar diretamente o ente federativo, o que levou o STF[5] a reconhecer a validade da prévia aprovação legislativa. No caso dos organismos internacionais, não custa lembrar que o procedimento previsto pela Constituição para incorporação de tratados demanda a aprovação do Congresso Nacional. Nesse cenário, não faria sentido que obrigações assumidas com parceiros e contratantes internacionais ficassem isentas do escrutínio das Câmaras Municipais.

Dessa forma, uma interpretação da Lei 14.341/2022 conforme os arts. 2º, 30 e 31 da CF impõe que as atividades, convênios e finalidades a serem instituídas pelas ARM e que digam respeito a atividades de competência tipicamente municipal, como o interesse local, a fiscalização, a proteção do patrimônio, a instituição e organização de políticas públicas (como educação e saúde) devem passar pela autorização prévia do Poder Legislativo.

Toda nova figura jurídica é objeto de forte controvérsia e intensos debates no mundo jurídico. O novo pode ser polêmico, porque muda um costume ou prejudica um setor da sociedade ou uma categoria. Não é que as novidades sejam ruins. É salutar que os poderes eleitos sejam criativos para encontrar soluções que melhorem a vida em nossa sociedade. Porém, a liberdade não é ampla e irrestrita: deve observar a moldura delineada pela Constituição.

Nesse sentido, a Lei 14.431/2022 parece ter ido além de uma inovação exótica em alguns pontos. Ao constituir uma associação municipal de direito privado, esvaziar as garantias materiais e processuais e excluir a fiscalização dos órgãos de contas, do Ministério Público e do Legislativo, a norma violou a Constituição. Propusemos aqui dar um pontapé na filtragem constitucional da lei. Os próximos passos serão dados pela criatividade dos juristas e pela eventual aplicação da lei na criação de ARM de forma contrária ao texto constitucional.

[1] Cf. STF, RE 1.154.762 AgR, Primeira Turma, Relatora Ministra Rosa Weber, DJe de 13/2/2019; STF, RE 1.156.016 AgR, Primeira Turma, Relator Ministro Luiz Fux, julgado, DJe em 16/5/2019; STF, ARE 893.694 AgR, Segunda Turma, Relator Ministro Celso de Mello, DJe em 20/03/2017; STF, RE 690.765, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, decisão monocrática, DJe em 06/08/2014; STF, RE 225.777, Plenário, Redator p/ acórdão Ministro Dias Toffolli, DJe em 29/08/2011.

[2] STF, RE 663696, Tema nº 510 da Repercussão Geral, Tribunal Pleno, Relator Ministro Luiz Fux, DJe em 22/08/2019.

[3] Vale reiterar que não se discute aqui a matéria objeto da ADC 45, que provavelmente será referendado pelo STF, tendo em vista que havia sete votos favoráveis à tese do relator quando houve o pedido de destaque do ministro Gilmar Mendes. Busca-se discutir o modelo material e processual instituído pela Lei 14.341/2022.

[4] STF, ADI 4.272, Tribunal Pleno, Relator Ministro Luiz Fux, DJe em 16/09/2019.

[5] STF, RE 488.065 AgR, Primeira Turma, Relator Ministro Marco Aurélio, DJe em 11/10/2017 e STF, ADI 331, Tribunal Pleno, Relator Ministro Gilmar Mendes, DJe em 02/05/2014.

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