Voz do Associado seg, 01 de junho de 2020
Compartilhe:

Por: Rober Caio Martins Ribeiro, procurador do Município de Cuiabá/MT, publicado no dia 8 de maio pelo Folhamax

A antecipação de pagamento nas contratações públicas é tema sensível na prática administrativa. E não poderia ser diferente, pois trata-se de medida excepcional e admitida pelas Cortes de Contas em situações muito bem fundamentadas e desde que devidamente resguardadas.

O Tribunal de Contas de Minas Gerais na Consulta n. 788.144, por exemplo, entendeu que “não há impedimento legal a vedar a realização de despesa com o adiantamento pretendido, devendo a municipalidade, porém, por medida de cautela, estabelecer no instrumento contratual cláusula que assegure a prestação efetiva do serviço, mediante, também, a fixação de multa pelo descumprimento correlato”. 

É inegável que a pandemia decorrente do contágio do novo coronavírus (COVID-19) impôs desafios hercúleos aos agentes públicos, na medida em que a demanda por inúmeros equipamentos e demais objetos e serviços afetos, direta e indiretamente, à saúde, aumentou de forma exponencial, reivindicando, portanto, contratações.

Nesse sentido, no intuito de conceder segurança jurídica aos contratos administrativos firmados durante o estado de calamidade reconhecido pelo Decreto Legislativo n. 6, de 20 de março de 2020 , no dia 7 de maio de 2020 foi publicada no Diário Oficial da União a Medida Provisória n. 961, de 6 de maio de 2020 – MP 961/20, a qual, dentre outras medidas, autoriza a Administração Pública a antecipar os pagamentos nas licitações e contratos, desde que observadas algumas condições.

É certo que o artigo 15, III, da Lei Geral de Licitações (Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993) estabelece que as compras, quando possível, deverão ser submetidas às condições de pagamento semelhantes às do setor privado.

Tal dispositivo permite ao gestor público, ao menos em tese, autorizar a antecipação de pagamento em determinadas ocasiões. Aliás, é esse artigo que permite atualmente a adoção de tal medida.  A título de exemplo, o Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso entende que “é permitido o pagamento excepcional e antecipado de parcela contratual referente à realização de show ou de evento artístico, uma vez que é praxe de mercado que alguns artistas ou prestadores de serviços desse ramo só realizem shows ou eventos por meio de recebimento financeiro adiantado” .

E a Advocacia-Geral da União, na linha de entendimento permitida pelo artigo 15, III, acima mencionado, editou a Orientação Normativa n. 37 , regulamentando o adiantamento de pagamentos em casos excepcionais e justificados no âmbito da União.

Ainda assim, mesmo diante desse arcabouço jurídico, a edição da MP 961/20, ao menos em relação ao tema aqui tratado, se faz necessária.

É importante esclarecer, antes de tudo, que a autorização contemplada na MP 961/20 é direcionada para todos os entes da federação – União, Estados e Municípios -, na medida em que se trata de norma geral, o que atrai, portanto, a competência privativa da União para legislar sobre o assunto, nos termos do artigo 22, XXVII, da Constituição Federal.

O artigo 1º, II, da MP 961/20 condiciona a possibilidade da antecipação de pagamento à demonstração de que tal medida seja indispensável para a obtenção do bem ou a prestação do serviço a ser contratado OU que isso propicie significativa economia de recursos.

Perceba que não se tratam de requisitos cumulativos, mas alternativos. 

Alguns mercados possuem como regra a antecipação de pagamento em seus negócios, inclusive com a Administração Pública. Exemplo disso, como mencionado acima, é na contratação de artistas, reservas de passagens aéreas e participação em eventos. É da cultura mercadológica.

Não longe disso, em outros segmentos, diante de alterações abruptas no mercado, os players que antes não exigiam a antecipação do pagamento para o fornecimento do produto ou prestação do serviço, passam a exigi-la. Em realidade, tal mudança de comportamento é decorrente da “lei da demanda e da procura”. 

Não custa anotar que os diversos equipamentos que estão sendo adquiridos pelos Estados, Municípios e União para atender a demanda decorrente da pandemia, notadamente aparelhos respiratórios, são fabricados, em sua maioria, em outros países, em especial na China.

Dessa forma, a Administração Pública contratante enfrenta não só os concorrentes internos (demais entes federados), como também os externos (outros países), muitos dos quais, como bem lembrado pelos professores Anderson Sant´Ana Pedra, Rafael Sérgio de Oliveira e Ronny Charles Lopes de Torres , permitem a antecipação de pagamento, desde que observadas algumas condicionantes, a exemplo da Itália, de Portugal e dos Estados Unidos. 

Portanto, uma vez demonstrado que a antecipação de pagamento é medida indispensável para a aquisição almejada, não resta alternativa ao gestor senão realizá-la dessa forma.

Não longe disso, não se faz necessário tecer maiores considerações a respeito, para se saber que a antecipação de pagamento permite ao gestor barganhar o preço do bem ou serviço a ser adquirido/contratado, o que pode resultar no preço menor do inicialmente proposto pelo contratado.

Uma vez presente um dos requisitos mencionados acima, os quais devem estar devidamente justificados no processo administrativo instaurado, cabe a Administração Pública prever no edital ou nos instrumentos formais de contratação direta a antecipação de pagamento, conforme artigo 1º, §1º, I.

Tal requisito é corolário dos princípios da impessoalidade, isonomia, confiança legítima e legalidade. Vale dizer, as regras da contratação devem ser claras, permitindo a todos os interessados verificar as condições de participação, inclusive de pagamento.

Além disso, é necessário estar formalizado que o contratado deverá devolver o valor pago antecipadamente na hipótese de inexecução do contrato (art. 1º, 2º, II).

Frise-se que as exigências obrigatórias contempladas na MP 961/20 se assemelham àquelas constantes na Resolução de Consulta n. 50/2011 do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso .

Portanto, em resumo, é possível a antecipação de pagamento nos contratos firmados no período de calamidade reconhecido pelo Decreto Legislativo n. 6, de 20 de março de 2020, desde que:

1 – tal medida seja indispensável para a obtenção do bem ou prestação do serviço OU que dela resulte em significativa redução do valor contratado;

2 – esteja previsto no edital ou no instrumento formal de contratação direta;

3 – haja previsão contratual de devolução integral do valor antecipado em caso de inexecução do objeto.

Além das condicionantes obrigatórias mencionadas, o §2º da MP 961/20, com o intuito de reduzir os riscos de inadimplemento, faculta ao gestor prever as seguintes medidas adicionais:

“I - a comprovação da execução de parte ou de etapa inicial do objeto pelo contratado, para a antecipação do valor remanescente;

II - a prestação de garantia nas modalidades de que trata o art. 56 da Lei nº 8.666, de 1993, de até trinta por cento do valor do objeto;

III - a emissão de título de crédito pelo contratado;

IV - o acompanhamento da mercadoria, em qualquer momento do transporte, por representante da Administração; e

V - a exigência de certificação do produto ou do fornecedor.”

Vale se atentar para o fato de que a Administração Pública pode adotar outras medidas que permitam reduzir o risco de inadimplemento, além dessas descritas no artigo acima mencionado. 

Por fim, importante registrar que o §3º do artigo 1º da MP em comento veda o pagamento antecipado nas hipóteses de prestação de serviços em regime de dedicação exclusiva de mão de obra.

O fato é que, por se tratar de medida excepcional, para que o gestor público fique resguardado, todas as circunstâncias que reclamam pela antecipação de pagamento devem estar devidamente demonstradas no processo administrativo.

Digo isso porque eventual questionamento pelo Tribunal de Contas competente deve levar em consideração as condições da época da prática do ato, conforme anotado no artigo 24 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

Como dito pelo Professor Jacoby Fernandes em live realizada pelo Instituto Proteje por meio do aplicativo Instagram, no dia 06 de maio de 2020, o gestor deve trazer as dificuldades enfrentadas para o processo.

Compartilhe: