Voz do Associado seg, 05 de abril de 2021
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Por: Edcarlos Alves Lima[1]
Procurador do município de Cotia/SP

Com a sanção ao Projeto de Lei nº 534/2021, ocorrida em 10/03/2021, nasceu, em ordenamento jurídico, a Lei nº 14.125, que disciplina a responsabilidade civil relativa aos eventos adversos pós-vacinação contra a Covid-19 e sobre a aplicação e distribuição de vacinas por pessoas jurídicas de direito privado.

Já de plano, uma inquietação nos chama a atenção. A ementa da precitada lei nos induz a crer que quis o legislador regulamentar as seguintes temáticas: i) responsabilidade civil relacionada aos eventos adversos pós-vacinação; e ii) aplicação e distribuição de vacinas por pessoas jurídicas de direito privado.

Sem adentrar, com profundidade, aos aspectos inerentes à responsabilidade civil, cabe consignar ser plenamente possível que a lei imponha a responsabilidade do Estado por atos “absolutamente estranhos a ele”[2].

Já no que toca à aplicação e distribuição de vacinas por pessoas jurídicas de direito privado, a própria lei deixou assente que autorização se aplica desde que sejam integralmente doadas ao Sistema Único de Saúde, a fim de serem utilizadas no âmbito do Programa Nacional de Imunizações (PNI)” (art. 2º), bem como, após o término da imunização dos grupos prioritários previstos no PNI, desde que, pelo menos, 50% das doses sejam, obrigatoriamente, doadas ao SUS e as demais sejam utilizadas de forma gratuita (§ 1º do art. 2º)[3].

A celeuma, no entanto, encontra-se no art. 1º, da referida norma, onde está dito que:

Art. 1º  Enquanto perdurar a Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin), declarada em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), ficam a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios autorizados a adquirir vacinas e a assumir os riscos referentes à responsabilidade civil, nos termos do instrumento de aquisição ou fornecimento de vacinas celebrado, em relação a eventos adversos pós-vacinação, desde que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tenha concedido o respectivo registro ou autorização temporária de uso emergencial. (Destaquei)

O § 4º do mesmo artigo poderia nos indicar a interpretação a ser dada à expressão “autorizados a adquirir”, porém, tal dispositivo foi objeto de veto jurídico pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República. Vejamos a redação do parágrafo então vetado, verbis:

  • 4º  A aquisição de vacinas de que trata o caput deste artigo será feita pela União, podendo os Estados, o Distrito Federal e os Municípios fazê-la em caráter suplementar, com recursos oriundos da União, ou, excepcionalmente, com recursos próprios, no caso de descumprimento do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19 ou na hipótese de que este não proveja cobertura imunológica tempestiva e suficiente contra a doença. (Destaquei)

Aparentemente, a intenção do legislador foi a de conceder autorização para que Estados, Distrito Federal e Municípios fizessem a aquisição apenas em caráter suplementar, com recursos da União ou, excepcionalmente, próprios, no caso de descumprimento do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação (PNI) ou caso este não provesse cobertura tempestiva e suficiente contra a Covid-19.

Uma das razões declaradas para o veto do citado dispositivo é pautada no “inadequado tratamento do mesmo assunto em mais de um diploma normativo”[4], o que violaria o inciso IV do art. 7º da Lei Complementar nº 95/1998.

Como sabemos, o veto é o modo pelo qual o Chefe do Poder Executivo manifesta a sua discordância com o projeto aprovado na casa legislativa, por entendê-lo inconstitucional (veto jurídico) ou contrário ao interesse público (veto político). O veto pode, ainda, ser total (quando atinge todo o projeto de lei) ou parcial (quando alcança parte do projeto – um artigo, parágrafo ou inciso).

Uma das problemáticas que podem advir do veto parcial é o risco de desvirtuamento do espírito de um projeto de lei, deixando algumas de suas disposições desconexas com outra.

Em que pese, de fato, a matéria versada pelo § 4º do art. 1º da Lei nº 14.125/2021, já estivesse sido tratada na Medida Provisória nº 1.026/2021, convertida na Lei nº 14.124/2021[5], o veto ora discutido poderá trazer uma interpretação que não condiz com a realidade atual, qual seja, no sentido de que os Estados, Distrito Federal e Município possuem autorização para, durante o estado de emergência, adquirir e aplicar vacinas fora do PNI, mesmo sem a demonstração de que este seja ineficaz ou intempestivo.

A interpretação acima poderia levar o Brasil a uma crise ainda maior, visto que colocaria todos os entes da federação – que não são poucos - em concorrência, de modo a disputar a aquisição de vacinas junto aos poucos laboratórios que a produzem, causando um desequilíbrio sanitário que refletiria prejuízos para toda a população.

Nesse contexto, basta imaginarmos que o Brasil conta, atualmente, com 5.570 Municípios, 26 Estados e 1 Distrito Federal, cada qual com estruturas, populações e realidades orçamentárias específicas e, muitas delas, impactadas pelas ações de enfrentamento da pandemia de Covid-19 que já perdura há um ano em nosso território.

Entendemos, portanto, que não seria essa a melhor interpretação a ser conferida ao novel diploma normativo. Afinal, somos um só povo e uma só nação e, como tal, devemos nos unir em torno de um mesmo objetivo, qual seja, a erradicação da doença ou, ao menos, a diminuição de seu impacto, o que só será possível com empenhos e ações planejadas e coordenadas.

Para termos uma ideia, no exercício de 2020, foram empenhados, aproximadamente, R$ 5,27 bilhões pelo Governo do Estado de São Paulo e R$ 4,90 bilhões pelos 644 municípios paulistas, conforme dados divulgados no Relatório da Gestão de Enfrentamento da Covid-19, divulgado pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo[6].

Ainda, segundo levantamento realizado pelo mesmo tribunal, entre 1º de janeiro e 31 de dezembro de 2020, as arrecadações dos municípios paulistas (exceto a do Município de São Paulo[7]), atingiram, juntas, o montante de R$ 122.243.799.879,13, número este aquém dos R$ 125.844.324.994,97 estimados inicialmente[8].

Neste cenário, entendemos que a interpretação literal e isolada do art. 1º da Lei nº 14.125/2021 não é a que melhor se harmoniza com o cenário que estamos vivenciando[9], uma vez que contrária às lições de teoria do direito e hermenêutica, sendo uma noção básica a de que o ordenamento deve ser lido como um todo, de forma sistemática.

A Lei nº 14.124 e a Lei nº 14.125, ambas com vigência a partir de 10/03/2021, compõem um contexto único, de modo que a aquisição de vacinas pelos demais entes da federação somente está autorizada na hipótese tratada pelo § 3º do art. 13 da Lei nº 14.124, ou seja, no caso de a União não realizar as aquisições e a distribuição tempestiva de doses suficientes para a vacinação dos grupos previstos no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19.

Ademais, para corroborar o nosso entendimento, vale a pena transcrever o trecho da cautelar parcialmente deferida, em 17/12/2020, pelo Ministro Ricardo Lewandowski, no bojo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 770:

Isso posto, com fundamento nas razões acima expendidas, defiro em parte a cautelar, ad referendum do Plenário do Supremo Tribunal Federal, para assentar que os Estados, Distrito Federal e Municípios (i) no caso de descumprimento do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, recentemente tornado público pela União, ou na hipótese de que este não proveja cobertura imunológica tempestiva e suficiente contra a doença, poderão dispensar às respectivas populações as vacinas das quais disponham, previamente aprovadas pela Anvisa, ou (ii) se esta agência governamental não expedir a autorização competente, no prazo de 72 horas, poderão importar e distribuir vacinas registradas por pelo menos uma das autoridades sanitárias estrangeiras e liberadas para distribuição comercial nos respectivos países, conforme o art. 3°, VIII, a, e § 7°-A, da Lei 13.979/2020, ou, ainda, quaisquer outras que vierem a ser aprovadas, em caráter emergencial, nos termos da Resolução DC/ANVISA 444, de 10/12/2020. (Destaquei)

Em decisão unânime, o Plenário do STF, em sessão realizada no dia 23/02/2021, referendou a decisão supramencionada, a qual constitui base importante para a interpretação em torno da matéria.

Destarte, reafirmamos que, com base na interpretação das atuais disposições legislativas, a aquisição, distribuição e aplicação de vacinas por Estados, Distrito Federal e Municípios somente poderá ser feita mediante a intempestividade ou insuficiência de ações adotadas no âmbito do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19.

A interpretação por nós adotada privilegia a igualdade material de todos os cidadãos brasileiros no que tange ao direito básico e universal à saúde, que é garantido em diversas partes do texto constitucional, a exemplo do art. 3º (elenca os objetivos fundamentais da República), art. 5º (pontua que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza), art. 196 (expõe que a saúde é direito de todos e dever do Estado) e art. 198 (dispõe que as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único organizado)[10].

Ainda assim, é mister pontuar que, mesmo em cenário de possibilidade, a autorização excepcional para a aquisição direta de vacinas não dispensa a deflagração de procedimento administrativo apto a evidenciar as circunstâncias técnicas, científicas e econômicas em torno da escolha do tipo de imunizante, assim como o cumprimento dos demais requisitos de contratação exigidos pela Lei nº 14.124/2021, que trouxe nova hipótese de dispensa de licitação para a aquisição de vacinas e de insumos e à contratação de bens, serviços de logística, tecnologia da informação e comunicação, de comunicação social e publicitária e de treinamentos[11].

[1] Mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, na qual obteve o título de especialista em direito tributário. Especialista em Gestão Pública pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPr). Advogado-Chefe do Departamento de Consultoria Jurídica em Licitações, Contratos e Ajustes Congêneres, da Advocacia Geral do Município de Cotia (AGM/SAJJ).

[2] Para Marçal Justen Filho, “A lei pode impor a responsabilidade do Estado por atos absolutamente estranhos a ele. O caso não configurará propriamente responsabilidade civil, mas uma forma de outorga de benefício a terceiros lesados. (…) Rigorosamente, a hipótese não é de responsabilidade civil extracontratual. Aliás, se fosse, não haveria necessidade das aludidas leis” (JUSTEN FILHO. Marçal. Curso de Direito Administrativo. 9ª ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 1.327).

[3] Em que pese a claridade legislativa em relação à aquisição de vacinas por entes privados, vale anotar que várias entidades têm se socorrido do Poder Judiciário, a fim de obter a autorização para aquisição direta de vacinas. Como, por exemplo, cito o Mandado de Segurança impetrado pelo Sindicado dos Motoristas Autônomos de Transportes Privado Individual por Aplicativos no Distrito Federal, no bojo do qual o MM. Juízo da 21ª Vara Federal da Seção Judiciária do DF deferiu parcialmente a tutela para o fim de reconhecer a ausência de impedimento legal de a sociedade civil participar do processo de imunização da população brasileira, bem como para autorizar que fosse deflagrado processo de importação das vacinas para aplicação a seus associados e familiares (Processo nº 1007074-73.2021.4.01.3400). A União, todavia, obteve, junto à Presidência do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, a suspensão da tutela antecipada, tendo sido consignado, no referido decisorium, que: “as decisões impugnadas apresentam, também, permissa venia, potencialidade para causar grave lesão à saúde pública, na medida em que, pedindo-se novamente licença a ótica distinta, e na forma do que indicado, em resumo, na petição inicial, as questionadas decisões “(...) geram graves danos à saúde pública ao: (i) comprometer o objetivo primário do PNO de concentrar todos os esforços para a imunização de todas as pessoas inseridas no grupo prioritário; (ii) violar a equidade e a universalidade no acesso à vacina; (iii) prejudicar a coordenação do PNO, uma vez que não será possível que os órgãos competentes acompanhem e fiscalizem o processo de vacinação a ser levado a efeito pelo sindicato; (iv) comprometer a credibilidade do Programa Nacional de Imunização(...)”. (TRF 1ª Região, Suspensão de Segurança nº 1008586-09.2021.4.01.0000).

[4] BRASIL. Presidência de República. MENSAGEM Nº 70, DE 10 DE MARÇO DE 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/Msg/VEP/VEP-70.htm. Acessado em: 13 Mar.2021

[5] Vejamos a redação do § 3º do art. 13: “§ 3º Os Estados, os Municípios e o Distrito Federal ficam autorizados a adquirir, a distribuir e a aplicar as vacinas contra a covid-19 registradas, autorizadas para uso emergencial ou autorizadas excepcionalmente para importação, nos termos do art. 16 desta Lei, caso a União não realize as aquisições e a distribuição tempestiva de doses suficientes para a vacinação dos grupos previstos no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19.”

[6] SÃO PAULO (ESTADO). Tribunal de Contas do Estado de São Paulo. Relatório de Atividades da Fiscalização - Gestão de Enfrentamento da Covid-19 – Período Janeiro/2021. Disponível em: https://painel.tce.sp.gov.br/arquivos/covid/Covid-19-AtividadesFiscalizacao-150.pdf. Acesso em: 12 Mar.2021.

[7] Cujo controle externo é exercido pela Câmara Municipal com o auxílio do Tribunal de Contas do Município de São Paulo.

[8] SÃO PAULO (ESTADO). Tribunal de Contas do Estado de São Paulo. Relatório de Atividades da Fiscalização - Gestão de Enfrentamento da Covid-19 – Período Janeiro/2021. Disponível em: https://painel.tce.sp.gov.br/arquivos/covid/Covid-19-RelatorioConsolidado-149.pdf. Acesso em: 12 Mar.2021.

[9] Até porque, a interpretação literal do art. 1º da referida lei nos levaria à conclusão de que apenas a aquisição das vacinas estaria autorizada pelo texto legal, de forma que a sua distribuição e a aplicação deveriam ser feita nos moldes previstos no PNI. Seria, por assim concluir, possibilitar que todos os entes envidassem esforços no sentido de, em regime de cooperação, fazerem cumprir o Plano Nacional estabelecido pela União.

[10] Vale esclarecer que as ações e serviços públicos que integram o Sistema Único de Saúde (SUS) devem ser desenvolvidos em consonância com o art. 198 da CF e obedecer, dentre outros, aos seguintes princípios estabelecidos no art. 7º, da Lei nº 8.080/1990:  igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie (inciso IV); e organização dos serviços públicos de modo a evitar duplicidade de meios para fins idênticos. Portanto, a aquisição de vacinas fora do PMI feriria de morte os princípios que regem as ações e serviços públicos na área de saúde.

[11] É mister considerar que o regramento simplificado para a contratação direta prevista na novel legislação é similar – para não dizer o mesmo – àquele veiculado na Lei nº 13.979/2020, que teve sua vigência encerrada em 31/12/2020.

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