Voz do Associado sex, 03 de junho de 2022
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Por: Vanice Valle,
Procuradora do município do Rio de Janeiro. Professora da Universidade Federal de Goiás, visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School, pós-doutora em Administração pela Ebape-FGV, doutora em Direito pela Universidade Gama Filho. Membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio. Publicado pelo Conjur no dia 03/06/2022.

A recente Lei 14.341 de 18 de maio de 2022, alterando o CPC, pretendeu dar resposta ao difícil problema da representação judicial de municípios — mas a medida proposta parece não só ser inapta ao enfrentamento da questão que deflagrou a iniciativa, como também abre espaço para outras sensíveis indagações.

É sabido que a literalidade do artigo 132 CF, aludindo a procuradores dos estados e do Distrito Federal, induz à conclusão (equívoca) de que a advocacia de Estado, na lição de Moreira Neto, ramo da advocacia pública [1], se limite a estas específicas instituições, deixando livre a municípios optar pela adoção ou não desse mesmo modelo institucional. Já o STF, sensível ao argumento de que considerado o número elevado de municípios país afora, inviabilizar-se-ia, por ausência de escala, a instituição em todos eles de procuradorias municipais organizadas em carreira, concluiu pela inexistência de dever constitucional de sua criação [2], numa interpretação — concessa vênia, paupérrima — orientada pela literalidade.

De outro lado, é a mesma corte quem afirma, analisando outros aspectos da moldura constitucional de regência das procuradorias municipais, que elas se caracterizem como função essencial à justiça [3], e ainda que "... a carreira da advocacia pública municipal se enquadra, para todos os fins, na categoria da advocacia pública, equiparando-se às procuradorias estaduais e federais no que se refere à prerrogativas da classe" [4]. Evidente portanto a compreensão quanto à relevância da presença e consolidação institucional de procuradorias municipais, componentes do sistema de justiça que impulsionariam, neste mesmo nível federado, a sensibilização da Administração Pública para com a concretização dos direitos fundamentais, inscritos na Constituição como referenciais de orientação finalística à ação pública.

A Lei 14.341 de 18 de maio de 2022, admitindo a representação judicial de municípios por Associação de Representação de Municípios está a ofertar (em tese) a oportunidade de um exercício de colaboração entre estas entidades federadas na promoção da defesa de interesses comuns. O que se tem implícito é o eventual ganho de escala na congregação de várias entidades federadas buscando o mesmo objetivo comum — e aqui o benefício potencial se daria em relação não só a aspectos econômicos do patrocínio em si, mas também da formação de conhecimento por agregação, a partir da representação de distintos municípios em demandas envolvendo matérias iguais ou assemelhadas.

A suposta vantajosidade da fórmula, todavia, não resiste a uma leitura minimamente mais meditada da norma legal recém-publicada. Muito se poderia falar quanto à duvidosa constitucionalidade da proposição, considerada a autonomia que é própria às entidades federadas. Mereceria abordagem igualmente a compatibilidade entre a providência materializada pela Lei 14.341 de 18 de maio de 2022 e a recomendação originária da Lei Complementar 95, de que a lei não contenha matéria estranha a seu objeto. Dedico-me, todavia, neste breve ensaio, a outros aspectos a evidenciar o desacerto da inovação legislativa.

Primeira fragilidade está em proceder a Lei 14.341 de 18 de maio de 2022 a uma segmentação equívoca e nefasta, entre consultoria jurídica e representação judicial, restando a primeira confiada ainda às estruturas internas da administração municipal, e a segunda, à associação de representação de municípios. Afinal, a autorização em favor da entidade associativa ali contida envolve tão-somente o patrocínio judicial de causas específicas conforme autorizado pelo chefe do Poder Executivo — mas não alcança a consultoria jurídica, ainda que diretamente relacionada com a defesa em juízo, com a análise de viabilidade em tese de transigir ou ainda com as providências necessárias à execução de sentença. É evidente que a defesa em juízo dissociada do potencial de orientação consultiva ao defendido fica extremamente prejudicada, eis que faltarão canais de informação, potencializando o risco de descolamento entre o que se sustenta nos autos, e os limites do possível no âmbito da Administração. Vale consignar que as alterações empreendidas à Lindb pela Lei 13.655/18 enfatizam a relevância da consideração por todo o sistema — administração, controle e Judiciário — de relevantes elementos fáticos que informam a decisão da administração, e esse fluxo de informações haveria de ser laboriosamente construído quando o diálogo é de se dar com estrutura estranha à organização.

Subsiste, portanto — não obstante a alteração proposta pela Lei 14.341 de 18 de maio de 2022; a necessidade de estrutura institucional de orientação jurídica — ainda que a representação judicial tenha sido objeto da autorizada delegação. Assim, não se tem na proposta legislativa, resposta efetiva ao problema que a teria provocado, a saber, o pequeno porte de centenas de municípios no país, que inviabiliza a criação de estruturas especializadas de advocacia de Estado.

Segundo ponto crítico na disciplina legal, está na ausência de clareza em relação à natureza jurídica mesmo da referida Associação de Representação de Municípios — se o que se cogita é de pessoa jurídica de direito privado, ou ainda daquela entidade que confere personificação aos consórcios públicos na forma da Lei 11.107 de 6 de abril de 2005. A referência no artigo 75, § 5º a "questões de interesse comum de municípios associados" parece sugerir a segunda opção, mas isso ainda é entendimento a se construir. A matéria é sensível, porque a natureza jurídica da referida associação diz respeito à estabilidade do arranjo institucional em debate — portanto, à aptidão do modelo para dar resposta à necessidade de adequado patrocínio judicial.

Em relação verdadeiramente simbiótica com a questão da natureza jurídica da associação referida pela Lei 14.341 de 18 de maio de 2022, está a tipologia do vínculo que os profissionais do direito envolvidos na representação judicial dos interesses dos municípios possam ter. Dispenso-me de tecer considerações quanto à relevância, como garantia da autonomia do referido profissional, de um vínculo funcional permanente. A par disso, o tema da permanência dos agentes que empreendem à representação é relevante, eis que também no campo das demandas judiciais, o conhecimento — tanto o do quadro fático que antecede o litígio, quanto das teses jurídicas em discussão — se constrói por agregação, exigindo uma certa constância em relação aos agentes envolvidos.

A regra contida no artigo 75, § 5º CPC, exigindo autorização e objeto específico, se apresenta em tese, como limitadora do uso abusivo da representação judicial via associação — mas também esse efeito da cláusula legal é duvidoso. Afinal, a delimitação específica de qual seja o direito ou obrigação a ser objeto das medidas judiciais é elemento que pode conduzir ou à permanente necessidade de reconfiguração da autorização exarada pelo chefe do Poder Executivo (se demasiado recortada de início), ou ainda a uma enunciação excessivamente alargada, o que tornaria ociosa a cláusula legal. Isso se diz por que embora em tese se tenha com a contestação o efeito processual de estabilização da demanda; o desdobramento da relação processual pode propor novos aspectos de direito ou da obrigação em debate que escapem do escopo da autorização originária de parte do chefe do Poder Executivo.

Igualmente preocupante é o silêncio da Lei 14.341 de 18 de maio de 2022 em relação à viabilidade da representação como prevista pelo artigo 75, § 5º CPC, em municípios que sejam dotados de representação própria — procuradorias organizadas em carreira, ou ainda estruturas mais frágeis. Afinal, o referido parágrafo é claro em exigir a autorização expressa do chefe do Poder Executivo — mas não exclui textualmente a possibilidade do convívio (indesejável e potencialmente conflituoso) entre a representação em casos específicos pela associação, e em outros — mais afetos à rotina, e eventualmente reputados menos relevantes — por estrutura própria.

É provável que o dilema do convívio entre duas representações se resolva, em relação a municípios dotados de procuradorias, pelo reconhecimento da competência privativa em favor destas últimas — com ou sem referência expressa na legislação municipal a esse caráter exclusivo. Se há a norma aludindo à privatividade, não há dúvida — o legislador falou, e em assunto que diz respeito à autoadministração, componente inafastável da autonomia municipal. Ainda que a lei municipal instituidora da estrutura própria de representação judicial não aluda especificamente ao caráter privativo, tem-se que a situação de fato determinante da solução preconizada pela Lei 14.341 de 18 de maio de 2022 — inviabilidade de representação por estrutura própria — não se põe, o que conduziria a eventual autorização do chefe do Poder Executivo à representação externa, a uma zona de fronteira com o desvio de finalidade, eis que expressaria uma seletividade injustificada.

Finalmente, mas não menos importante; tem-se que a previsão expressa pela Lei 14.341 de 18 de maio de 2022 se constitui em claro desincentivo à instituição, naqueles municípios desprovidos ainda de representação, da estrutura organizacional própria a promover a defesa do interesse público confiado à sua cura. Destaque-se ainda que a inovação legislativa não cogitou sequer de distinguir municípios pelo seu porte — técnica de diferenciação utilizada pelo próprio texto constitucional e pela legislação infraconstitucional para superar problemas onde também a escala se apresenta como obstáculo à generalização de uma mesma obrigação para todos. Nisso, a Lei 14.341 de 18 de maio de 2022 caminha no sentido contrário do que o amadurecimento do texto constitucional tem recomendado, que é a consolidação institucional de estruturas essenciais à justiça, revestidas de autonomia que lhes permita desenvolver, ainda que no campo da representação judicial, a zeladoria da juridicidade.

É certo que o problema da representação judicial de municípios de menor porte subsiste em pauta, e merece reflexão. A solução proposta pela Lei 14.341 de 18 de maio de 2022, todavia, parece parcial e improvisada. O risco de dispersão de informações, enfraquecimento das estruturas de controle e desconsideração do real quadro fático da municipalidade é grande — e nestes termos, o que se terá é um desserviço ao ente federado e aos interesses que lhe cabe proteger.

[1] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Independência técnico-funcional da Advocacia de Estado. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro. Vol. XVI – Advocacia Pública, Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006, p. 3-23.

[2] RE 1156016 AgR, Relator(a): LUIZ FUX, 1ª Turma, julgado em 6/5/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-102 DIVULG 15/5/2019 PUBLIC 16/5/2019)

[3] Consulte-se a tese de repercussão geral enunciada no Tema 510: "A expressão 'Procuradores', contida na parte final do inciso XI do artigo 37 da Constituição da República, compreende os Procuradores Municipais, uma vez que estes se inserem nas funções essenciais à Justiça, estando, portanto, submetidos ao teto de noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal".

[4] ARE 1.311.066 SÃO PAULO, relator(a): GILMAR MENDES, DJe-198 PUBLIC 5/5/2021.

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