Voz do Associado ter, 11 de maio de 2021
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Por: Orlando Mazzotta Neto

Conselheiro da ANPM. Procurador do Município de Palhoça/SC. Especialista em Direito Contratual pela PUC/SP. Conselheiro Estadual da OABSC. Membro da Comissão Nacional de Advocacia Pública do CFOAB. Membro da Comissão Especial de Defesa dos Municípios do CFOAB. Membro da Comissão do Procurador Municipal da OABSC. 

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Autotutela Administrativa – 3. A Transação da Fazenda Pública na Sistemática do Artigo 26 da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro – 4. Requisitos – 5. Conclusão.

  1. Introdução

O Estado moderno tem evoluído cada vez mais no sentido de tutelar os direitos do cidadão e dos atos jurídicos que tenham repercussão na coletividade.

E outras palavras, é a prevalência dos direitos do cidadão, sob o prisma do interesse geral em detrimento da concepção organicista tradicional.

Nesse sentido é a lição de Norberto Bobbio[1]:

O tema, já aflorado nos escritos anteriores, do significado histórico — ou melhor, filosófico histórico — da inversão, característica da formação do Estado moderno, ocorrida na relação entre Estado e cidadãos: passou-se da prioridade dos deveres dos súditos à prioridade dos direitos do cidadão, emergindo um modo diferente de encarar a relação política, não mais predominantemente do ângulo do soberano, e sim daquele do cidadão, em correspondência com a afirmação da teoria individualista da sociedade em contraposição à concepção organicista tradicional.

E neste contexto contemporâneo de Estado, a Administração Pública é fundamental na condução da sociedade moderna, praticando diariamente os mais variados atos administrativos unilaterais e bilaterais, para satisfazer as necessidades da coletividade.

E não em raras vezes, até pela numerosa quantidade de objetivos do Estado moderno, a Administração pratica atos ilegais ou inoportunos, que somente depois são constatados pelo administrador.

Desta forma, é de fundamental importância que a Administração Pública possa rever seus próprios atos, quando constatada a produção de um ato jurídico ilegal, inoportuno ou ineficiente.

Por isso, o princípio da autotutela estabelece que a Administração Pública tem o poder de controlar os próprios atos, anulando-os quando ilegais ou revogando-os quando inconvenientes ou inoportunos. Assim, a Administração não precisa recorrer ao Poder Judiciário para corrigir os seus atos, podendo fazê-lo diretamente.

  1. Autotutela Administrativa

Feitas as considerações introdutórias, a autotutela significa que a Administração Pública tem o poder-dever de controlar seus próprios atos, revendo-os quando inoportunos, através dos critérios de mérito administrativo (conveniência e oportunidade) e anulando-os quando ilegais, procedendo a sua revisão de ofício ou por provocação, independentemente da apreciação do Poder Judiciário.

Neste sentido, é a lição de José dos Santos Carvalho Filho[2]:

A autotutela envolve dois aspectos quanto à atuação administrativa: 1) aspectos de legalidade, em relação aos quais a Administração, de ofício, procede à revisão de atos ilegais; e 2) aspectos de mérito, em que reexamina atos anteriores quanto à conveniência e oportunidade de sua manutenção ou desfazimento.

Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo[3] definem o princípio da autotutela da seguinte forma:

O princípio da autotutela instrumentaliza a Administração para a revisão de seus próprios atos, assegurando um meio adicional de controle da atuação da Administração e reduzindo o congestionamento do Poder Judiciário. É um princípio implícito, que decorre da natureza da atividade administrativa e de princípios expressos que a informam, especialmente o princípio da legalidade.

A Administração Pública, no desempenho de suas múltiplas atividades, está sujeita a erros; nessas hipóteses, ela mesmo pode (e deve) tomar a iniciativa de repará-los, a fim de restaurar a situação de regularidade e zelar pelo interesse público.

Não precisa, portanto, a Administração ser provocada para o fim de rever seus atos ilegais. Pode fazê-lo de ofício. Nesse aspecto, difere do controle judicial o controle administrativo decorrente da autotutela, uma vez que para a realização daquele, o Poder Judiciário necessita sempre ser provocado.

Como já mencionamos, não é somente em relação a atos ilegais que a Administração exerce o poder-dever de autotutela, anulando-os. Os atos válidos, sem qualquer vício, que, no entender da Administração, se tornarem inconvenientes ao interesse público também podem ser retirados do mundo jurídico em decorrência da autotutela. Nessa hipótese, de revogação de um ato válido que se tornou inconveniente, somente a própria Administração que editou o ato tem a possibilidade de controle. Vale dizer, o Poder Judiciário não pode retirar do mundo jurídico atos válidos editados por outro Poder.

O princípio da autotutela, portanto, autoriza a atuação da Administração de forma mais ampla do que a possibilidade de atuação pelo Poder Judiciário, em razão de ser possível à Administração agir sem provocação e de somente ela própria possuir competência para revogar seus atos válidos.

Diz-se que pelo princípio da autotutela autoriza o controle, pela Administração, dos atos por ela praticados sob dois aspectos:

  1. a) de legalidade, em que a Administração pode, de ofício ou provocada, anular os seus atos ilegais;
  2. b) de mérito, em que examina a conveniência e oportunidade de manter ou desfazer um ato legítimo, nesse último caso mediante a denominada revogação.

Esse importante princípio também possui previsão em duas súmulas do Supremo Tribunal Federal, a súmula 346 e a súmula 473, que estabelecem respectivamente que:

STF, Súmula 326: “A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos”.

STF, Súmula 473: “A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revoga-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”.

Entretanto, a aplicação desse princípio não é absoluta, uma vez que encontra limites quando sua aplicação causar um dano maior ao Estado ou a Administração do que a manutenção do ato viciado.

Nesse sentido, ensina Fernanda Marinela[4]:

O administrador deverá anular os atos ilegais, salvo quando a sua retirada causar danos graves ao interesse público, motivo que, considerando a sua supremacia, justifica a manutenção do ato, desde que não se perca de vista a proporcionalidade entre o benefício e o prejuízo causados, além do princípio da segurança jurídica.

Em alguns casos, a aplicação da autotutela também encontra limites quando afetam direitos de terceiros, ocasião em que sua aplicação deverá ser precedida do devido processo legal administrativo, com a observância do contraditório e da ampla defesa, conforme definido na tese de repercussão geral no RE 594.296 (Tema 138)[5], no sentido de que a Administração poderá revogar os atos ilegalmente praticados, devendo ser observado, no entanto, que se de tais atos já tiverem decorrido efeitos concretos, seu desfazimento deve ser precedido de regular processo administrativo.

Observe-se o que sucintamente menciona a tese de repercussão geral no RE 594.296 (Tema 138):

Ao Estado é facultada a revogação de atos que repute ilegalmente praticados; porém, se de tais atos já tiverem decorrido efeitos concretos, seu desfazimento deve ser precedido de regular processo administrativo. (Tese definida no RE 594.296, rel. min. Dias Toffoli, P, j. 21-9-2011, DJE 146 de 13-2-2012, Tema 138.)

Já a Súmula vinculante nº 3 do Supremo Tribunal Federal[6] dispõe que os processos administrativos perante o Tribunal de Contas da União asseguram o contraditório e a ampla defesa quando a decisão da referida Corte de Contas resultar anulação ou revogação de ato administrativo que repercuta direito da parte interessada, conforme seguinte enunciado:

Nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão.

A jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina também é pacífica no sentido de que a aplicação do princípio da autotutela pela Administração Pública deve ser precedida da observância de determinados princípios constitucionais, dentre eles, o contraditório e a ampla defesa, conforme as recentíssimas ementas abaixo transcritas:

Anulação do ato administrativo à míngua de motivos e da motivação e sem oportunização de prévia manifestação da empresa. Ilegalidade. Autotutela dos atos administrativos que não prescinde da observância do princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa. CF, ART. 5º, INC. LV C.C. SÚMULA N. 473 DO STF. PRECEDENTE DO STF. RE N. 594.296/MG (Tema 138 da Repercussão Geral). SENTENÇA ACERTADA. REEXAME OBRIGATÓRIO CONHECIDO E DESPROVIDO[7]. (TJSC, Apelação Cível n. 0304182-38.2018.8.24.0015, da Capital, rel. Rodrigo Collaço, Terceira Câmara de Direito Público, j. 02-06-2020).

O Entendimento desta Corte está consolidado no sentido de que qualquer ato da Administração Pública que repercuta no campo dos interesses individuais do cidadão deverá ser precedido de prévio procedimento administrativo no qual se assegure ao interessado o efetivo exercício do direito ao contraditório e à ampla defesa (STF Min. Dias Toffoli). A interdição de estabelecimento comercial, com a consequente cassação do alvará de licença para funcionamento, sem regular processo administrativo constitui ato ilegal e abusivo[8] (TJSC, Des. Luiz César Medeiros). (TJSC, Remessa Necessária n. 0301940-30.2015.8.24.0139, de Porto Belo, rel. Des. Pedro Manoel Abreu, j. 5-11-2019)

Portanto, como se sabe é pacífica a aplicação da autotutela administrativa de forma unilateral, bem como suas peculiaridades e restrições acima delimitadas, de modo que a inovação legislativa trazida pela Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro vai além, e permite a transação da Administração com a parte diretamente interessada na anulação, revogação ou convalidação de determinado ato jurídico.

  1. A Transação da Fazenda Pública na sistemática do artigo 26 da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro

O artigo 26 da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro, de forma inovadora positivou e regulamentou a aplicação da transação pela Administração Pública, contudo, através de uma transação ou acordo bilateral entre a Administração e a parte interessada, mediante o seguinte regramento:

Art. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial.

  • 1º O compromisso referido no caput deste artigo:

I - buscará solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais;

II – (VETADO);

III - não poderá conferir desoneração permanente de dever ou condicionamento de direito reconhecidos por orientação geral;

IV - deverá prever com clareza as obrigações das partes, o prazo para seu cumprimento e as sanções aplicáveis em caso de descumprimento.

Esse inovador compromisso ou acordo bilateral, que prescinde da apreciação do Poder Judiciário para produzir efeitos jurídicos, é um permissivo legal democrático e republicano, que possibilita que a Administração Pública possa transacionar com a parte interessada.

Aliás, Sérgio Guerra e Luciana Palma[9] entendem que o grande mérito do compromisso previsto no art. 26 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro é superar a dúvida jurídica sobre o permissivo genérico para a Administração Pública transacionar de forma eficiente e com segurança jurídica:

A Lei n. 13.655/18, que altera a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), representa um novo marco à consensualidade administrativa. Seu 26 consiste em efetivo permissivo genérico para que a Administração Pública celebre acordos. Ao criar uma nova figura consensual – o compromisso da Nova LINDB – a Lei n. 13.655/18 define um novo regime jurídico à consensualidade administrativa, cujas principais características são: propiciar segurança jurídica à celebração de acordos administrativos, a partir do endereçamento de dúvidas jurídicas e distorções em sua prática, e garantir compromissos mais eficientes à sociedade como um todo, e não apenas aos celebrantes, satisfazendo interesses gerais. Este artigo se propõe a destrinchar este novo regime jurídico da negociação com a Administração Pública, focando no compromisso da Nova LINDB, com a finalidade de melhor compreender a intenção legislativa e indicar os seus contornos práticos.

Portanto, o artigo 26 da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro disciplinou um novo regime jurídico dentro da consensualidade administrativa, que gera segurança jurídica na celebração de acordos administrativos quando existirem atos irregulares, ou em caso de incertezas jurídico-administrativas ou contenciosas, propiciando um resultado mais eficiente e seguro para as partes e consequentemente para a coletividade.

Desta forma, a aplicação desse moderno instituto de transação pelo Poder Público também é importante para desburocratizar a Administração Pública na reparação de um ato equivocado ou irregular, visando o melhor resultado possível para o Estado, vindo ao encontro do princípio da eficiência.

  1. Requisitos

Pela leitura do caput do artigo 26 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, chega-se a conclusão de que esse compromisso de vontades necessariamente deve ser: a) motivado; b) proferido por autoridade competente e após a oitiva do órgão jurídico do Ente Público celebrante; c) observar a legalidade estrita do direito material em apreciação; d) ter a presença de relevante interesse geral; e, e) dando-se regular publicidade ao acordo celebrado entre a Administração Pública e a parte interessada, para a produção dos seus regulares efeitos jurídicos.

O preenchimento desses requisitos dá segurança jurídica para que a transação produza efeitos jurídicos de modo efetivo, evitando-se a instauração de um processo administrativo sancionador, como também evita o ajuizamento de demoradas e custosas ações judiciais, cujo resultado jurisdicional nem sempre é aquele que a Administração espera.

Primeiramente, quanto a motivação, o acordo bilateral de vontades firmado pela Administração com o particular, como todo ato administrativo, também deverá ser motivado formalmente, com a exposição dos fundamentos de fato e de direito que levaram o administrador a transacionar.

Maria Silvia Zanella Di Pietro[10] conceitua esse relevante princípio, ao fundamento de que deve ser aplicado tanto para os atos vinculados, quanto para os atos que admitem discricionariedade:

O princípio da motivação exige que a Administração Pública indique os fundamentos de fato e de direito de suas decisões. Ele está consagrado pela doutrina e pela jurisprudência, não havendo mais espaço para as velhas doutrinas que discutem se a sua obrigatoriedade alcançará só os atos vinculados ou só os atos discricionários, ou se estava presente em ambas as categorias. A sua obrigatoriedade se justifica em qualquer tipo de ato, porque se trata de formalidade necessária para permitir o controle de legalidade dos atos administrativos.

Para Hely Lopes Meirelles[11] a aplicação do princípio da motivação constitui moderna tendência do Direito Administrativo dos países democráticos, em que o administrador deverá indicar os elementos determinantes para a prática e validade de determinado ato administrativo:

O princípio da motivação dos atos administrativos constitui moderna tendência do Direito Administrativo dos países democráticos.

Pela motivação o administrador público justifica sua ação administrativa, indicando os fatos (pressupostos de fato) que ensejam o ato e os preceitos jurídicos (pressupostos de direito) que autorizam sua prática.

(...)

A motivação, portanto, deve pontar a causa e os elementos determinantes da prática do ato administrativo, bem como o dispositivo legal em que se funda. Esses motivos afetam de tal maneira a eficácia do ato que sobre eles se edificou a denominada teoria dos motivos determinantes, delineada pelas decisões do Conselho de Estado da França e sistematizada por Jèze[12].

Ato contínuo, a expressão constante no caput do artigo 26 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, de que para a formalização da transação deverão estar presentes “razões de relevante interesse geral” consubstancia-se no fato de que o referido ajuste de vontades deve ser pautado com a observância do interesse público.

Isto porque, não obstante a Administração Pública possa vir a transacionar com um particular, uma das consequências lógicas desse ajuste de vontades é a pacificação social de um interesse público e a obtenção do melhor resultado possível não só para a Administração (interesse público secundário), mas também para a sociedade (interesse público primário).

Imaginemos o ajustamento de um acordo de vontades em que um determinado Ente da Federação venha a celebrar com uma grande empreiteira para corrigir uma irregularidade ocorrida num ato jurídico ou em determinado contrato administrativo, que tenha por objeto a execução de um contorno viário, numa grande metrópole como São Paulo, por exemplo.

É evidente que a correção dessa irregularidade ou dessa nulidade, por meio de um acordo bilateral de vontades, também beneficiará a população diretamente interessada na entrega dessa relevante obra pública, que poderia ter um grande atraso com a paralisação ou judicialização do imaginário imbróglio envolvendo o suposto contorno viário.

Sobre a supremacia do interesse público sobre o privado José Sérgio da Silva Cristóvam[13] entende que:

A noção-chave da teoria da supremacia do interesse público pode ser recuperada naquela originária concepção de desequilíbrio e desigualdade jurídico-política entre o Estado e os Cidadãos justificada a partir da prevalência do interesse público (geral) sobre as aspirações individuais (privadas). Por isso, o aparato estatal deveria estar ungido por um regime de prerrogativas e sujeições, necessários à fiel consecução das suas finalidades.

Nesse sentido, assim parecia ser o pensamento de Hely Lopes Meirelles, para quem a tônica daquela desigualdade originária entre o Estado e os administrados estaria assentada na “supremacia do Poder Público sobre os cidadãos, dada a prevalência dos interesses coletivos sobre os individuais”.

Aprofundando a análise da supremacia do interesse público primário, José Sérgio da Silva Cristóvam[14] o analisa modernamente como um princípio constitucional implícito:

Mesmo que ainda sob os auspícios do paradigma tradicional da teoria da supremacia, quando Osório sustentava em 2000, a existência de um princípio constitucional implícito de supremacia do interesse público, já não fazia naqueles exatos contornos da teoria clássica, mas a partir de um primeiro ensaio reconstrutivista de seus pressupostos e limites teóricos. A partir de uma concepção de interesse público como um valor direcionador da Administração Pública, naquela oportunidade o autor já reconhecia a incompatibilidade de um princípio de prevalência radical e apriorística do interesse público, determinante de variável e absoluta preponderância de interesses públicos em detrimento de interesses privados. Deixava, inclusive o alerta de que um princípio de prevalência, assim concebido, seria impensável se contrastado com o conjunto de garantias e direitos fundamentais consagrados pela Constituição Federal.

(...)

Para amparar sua proposição, Barroso reconstrói a definição de interesse público a partir da conciliação constitucionalizada entre interesses coletivos e individuais, verdadeira pauta de conformação de todas as relações jurídicas e sociais (dos particulares em si, deles com as pessoas de Direito Público e destas entre si). O interesse público primário consistiria “na melhor realização possível, à vista da situação concreta a ser apreciada, da vontade constitucional, dos valores fundamentais que ao intérprete cabe preservar ou promover”.

Por fim, para Rogério Guilherme Ehrhardt Soares[15], o interesse público primário pode ser assim conceituado:

Interesses primários são aqueles cuja definição cabe ao legislador, quando este reparte bens materiais e imateriais da sociedade, segundo uma escala de fins a que adere. Não são interesses puramente formais, mas conflitos trazidos à luz de um interesse, de uma necessidade coletiva que pode ser interpretada amplamente e sua definição compete aos órgãos do Estado no desempenho das funções política e legislativa.

O interesse público primário trata-se do interesse público propriamente dito, ou seja, do interesse de todo social, da comunidade considerada por inteiro.

Portanto, para a consecução da transação mencionada no artigo 26 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, o interesse público, notadamente o interesse público primário, deverá ser observado, quando da motivação dos interesses que levaram as partes a celebrarem o acordo de vontades.

Em relação aos demais requisitos mencionados no texto legal é possível observar que a oitiva do órgão jurídico do Ente Público celebrante será sempre obrigatória, não havendo espaços para discricionariedades do administrador para submeter ou não a acordo para apreciação do órgão jurídico administrativo.

Por outro lado, ao contrário da oitiva do órgão jurídico, que é obrigatória, a realização de consulta pública será exigida apenas em casos específicos ou excepcionais, quando se tratar de situações em que for necessário obter opiniões ou informações técnicas específicas, ou ainda críticas da sociedade interessada a respeito de determinado tema, visando a participação da população diretamente interessada ou afetada nas questões de interesse coletivo envolvidos no assunto, objeto da celebração do acordo entre a parte interessada e a Administração Pública.

Evidentemente, o acordo deve observar o disposto na legislação específica, objeto do direito material envolvido em cada transação, nada mais sendo do que a aplicação do princípio da legalidade, outro requisito exigido para a eficácia da transação.

E pelo princípio da legalidade no ordenamento jurídico pátrio, a noção principiológica do direito privado difere da do direito público, por meio da qual a Administração Pública só pode fazer o que a Lei permite, conforme lição de Maria Silvia Zanella Di Pietro [16]:

Segundo o princípio da legalidade, a Administração Pública só pode fazer o que a lei permite. No âmbito das relações entre particulares, o princípio aplicável é o da autonomia da vontade, que lhes permite fazer tudo o que a lei não proíbe.

(...)

Em decorrência disso, a Administração Pública não pode, por simples ato administrativo, conceder direitos de qualquer espécie, criar obrigações ou impor vedações aos administrados; para tanto, ela depende de lei.

Portanto, mesmo que na transação com a Administração Pública tenha do outro lado muitas vezes um particular, o regramento do princípio da legalidade a ser aplicado no compromisso bilateral será aquele em que as partes somente poderão fazer aquilo que a lei permite.

Modernamente, o princípio da legalidade tem que necessariamente ser analisado de forma ampla, a partir da aplicação empírica e conjunta não só da norma aplicada, mas desta conjuntamente com o ordenamento jurídico e os princípios legais mais intimamente ligados ao texto legal posto em exame.

É a prevalência da legalidade ampla ou temperada em contraposição à legalidade estrita, de modo que a legalidade contemporânea não pode mais se curvar as regras burocráticas que muitas vezes causam prejuízo técnico ou financeiro ao erário sob o manto da legalidade estrita.

E me parece que foi justamente essa a intenção do legislador ao positivar a aplicação do artigo 26, aqui em exame, conjuntamente com vários princípios do direito administrativo, dos quais destaco a eficiência, o interesse público, notadamente o primário, a proporcionalidade e a razoabilidade, além da própria legalidade.

Nesse sentido é o entendimento de Juarez Freitas[17]:

Numa frase, o direito à boa administração vincula racionalmente o gestor público e o força a medir consequências sistêmicas de suas opções, pois terá de justifica-las coerentemente, sobretudo em seu custo-efetividade. Examinando mais de perto, o direito fundamental é autentico complexo de direitos, regras e princípios, encartados numa verdadeira síntese, que serve de antídoto contra o arbítrio (por ação ou omissão).

(...)

A garantia de administração da legalidade temperada, que não se curva, de modo subserviente, às hiperinflacionadas regras, pois a normatividade jurídico-administrativa só se ultima a partir da ponderada aplicação empírica dos textos legais.

O último requisito do caput do artigo 26 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro posto como critério objetivo para celebração do acordo com a Administração Pública é a publicação oficial para que a transação possa produza efeitos jurídicos, que neste caso, nada mais é do que a ordinária aplicação do princípio da publicidade, princípio básico da administração pública, visando a validação de qualquer ato praticado pela Administração Pública nos atos e processos administrativos em geral.

Outro aspecto importante do princípio da publicidade no direito administrativo pátrio, e como consequência, na transação a ser celebrada pela Administração Pública é a transparência, no sentido de dar publicidade dos atos administrativos à sociedade em geral, ou seja, no direito administrativo brasileiro ela é inter partes e erga omnes, ligada intimamente também com a transparência dos atos administrativos.

Analisando a aplicação do princípio da publicidade no direito administrativo alemão e francês, Colaço Nunes[18] explica essas duas concepções do princípio da publicidade:

Em resumo, diríamos que, enquanto a legislação alemã se ocupa essencialmente dos atos pertinentes ao procedimento e limita a garantia de acesso as partes (do referido procedimento), que tenham um interesse juridicamente relevante, o direito francês preocupa-se em afirmar a publicidade extra partes, através de um direito de acesso de todos os membros da coletividade, válido para todos os documentos administrativos.

Outros fundamentos a serem observados no texto legal é que o compromisso “buscará solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais[19]”.

O inciso I, do §1º, do artigo 26 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro repete novamente que a celebração de transação pela Administração Pública deverá observar os interesses gerais, o que demonstra mais uma vez, a preocupação do legislador com a observância do princípio do interesse público primário, já mencionado acima.

Além disso, deixa claro que a finalidade da referida transação é buscar uma solução eficiente, proporcional e equânime.

Quanto a eficiência, conforme já exposto acima, esse princípio que é de fundamental importância para a Administração Pública moderna é também uma das mais importantes consequências da transação celebrada pela Administração, de modo que, se o resultado desse acordo de vontades não for de alguma forma eficiente para a Administração Pública, seja do ponto de vista da economicidade ou de alguma outra forma, eficiente para algum objetivo relevante do Estado, o acordo não poderá ser celebrado.

Nesse sentido, a doutrina dá singular importância na aplicação do princípio da eficiência em todos os resultados a serem alcançados pelo Estado, seja na prestação do serviço público, seja no atendimento geral das necessidades da coletividade, conforme lição de Vladimir da Rocha França[20]:

O princípio da eficiência exige que a atividade administrativa seja exercida com presteza, perfeição e rendimento funcional. É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada somente com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros.

O legislador também deixou claro que a finalidade do acordo deve ser proporcional e equânime.

Para Celso Antônio Bandeira de Melo[21], “a Administração por gerir negócios de terceiros, da coletividade, é compelida a dispensar tratamento equitativo a todo administrado”.

Portanto, a finalidade equânime referida pelo legislador, nada mais é do que o tratamento equitativo que deve ser dado não só a transação realizada com a Administração Pública, mas a todos os atos administrativos.

Além de necessariamente ser equânime, o legislador também condiciona a eficácia da transação para que a solução jurídica encontrada no ajuste bilateral seja proporcional e adequada, atingindo sem arbitrariedades ou excessos os objetivos pretendidos.

É a aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, assim definidos por Maria Silvia Zanella Di Pietro[22]:

Trata-se de princípio aplicado ao Direito Administrativo como mais uma das tentativas de impor-se limitações à discricionariedade administrativa, ampliando-se no âmbito de apreciação do ato administrativo pelo Poder Judiciário.

(...)

A razoabilidade, agindo como um limite à discrição na avaliação dos motivos, exige que sejam eles adequáveis, compatíveis e proporcionais, de modo a que o ato atenda a sua finalidade específica; agindo também como um limite à discrição na escolha do objeto exige que ele se conforme fielmente à finalidade e contribua eficientemente para que ela seja atingida.

E embora os referidos princípios não estejam positivados na Lei Maior, a aplicação da razoabilidade e da proporcionalidade como limitação da discricionariedade administrativa também na transação com a Administração Pública é conceituada por parte da doutrina e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal como princípios constitucionais implícitos, de modo que a razoabilidade e a proporcionalidade são corolários do devido processo legal.

Nesse sentido, em relação ao princípio da proporcionalidade, Gilmar Ferreira Mendes entende que[23]:

Portanto, o Supremo Tribunal Federal considerou que, ainda que fosse legítimo o estabelecimento de restrição ao direito dos partidos políticos de participar do processo eleitoral, a adoção de critério relacionado com fatos passados para limitar a atuação futura desses partidos parecia manifestamente inadequada e, por conseguinte, desarrazoada.

Essa decisão parece consolidar o desenvolvimento do princípio da proporcionalidade como postulado constitucional autônomo que tem sua sede material na disposição constitucional sobre o devido processo legal (art. 5º, inciso LIV, CF).

Ainda dentro da sistemática da razoabilidade e da proporcionalidade, considerando que o artigo 26 da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro estipula termos de conteúdo aberto e subjetivo como regra para a aplicação no caso concreto, será necessário ao administrador, no momento da análise da conveniência e oportunidade realizar um criterioso estabelecimento para a interpretação desses conceitos principiológicos, como forma de limitar a atuação autônoma do referido artigo 26 em todo e qualquer caso, cuja análise deverá ser razoável, proporcional e equânime.

Por fim, como acontece em qualquer contrato ou transação, o inciso IV, do §1º, dispõe que o compromisso entre a Administração Pública e a parte interessada deverá prever as obrigações das partes, o prazo do cumprimento e as sanções aplicáveis em caso de descumprimento do ajuste bilateral.

  1. Conclusão

Diante do exposto, a celebração de transação da Administração Pública, nos termos do artigo 26 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro é de suma importância, pois buscará a melhor solução possível para a coletividade, com eficiência e observância dos demais princípios administrativos vistos acima, desburocratizando litígios em processos administrativos ou judiciais, sendo relevante a repercussão desta temática no meio jurídico.

Também é de singular importância para a eficaz operacionalização do direito pela advocacia pública, uma vez que além da oitiva do órgão jurídico da Administração ser vinculante, dará solução ativa para as demandas judiciais e administrativas de grande complexidade e de interesse geral.

[1] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p.7.

[2] CARVALHO FILHO, José dos Santos: Direito Administrativo. 28. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2015, p. 25.

[3] ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. 14. ed. Niterói: Editora Impetus, 2007, p.149-150.

[4] MARINELA, Fernanda. Direito administrativo. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 64.

[5] Supremo Tribunal Federal. Tema 138 da repercussão geral. RE 594.296. Rel. Min. Dias Toffoli. j. 21-9-2011.

[6] Supremo Tribunal Federal. Súmula vinculante n. 3. Publicado no DOU em 06-06-2007.

[7] Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Apelação Cível n. 0304182-38.2018.8.24.0015. Rel. Des. Rodrigo Collaço. j. 02-06-2020

[8] Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Remessa Necessária n. 0301940-30.2015.8.24.0139. Rel. Des. Pedro Manoel Abreu. j. 5-11-2019.

[9] GUERRA, Sérgio; PALMA, Juliana Bonacorsi de. Art. 26 da LINDB – novo regime jurídico de negociação com a Administração Pública. Revista de Direito Administrativo – RDA, Rio de Janeiro: Edição Especial, 2018, p. 147.

[10] DI PIETRO, Maria Silvia Zanella. Direito Administrativo, 22 ed. São Paulo: 2008, Atlas: p 80.

[11] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 33ed. São Paulo: 2007, Malheiros, p.101.

[12] JÈZE, Gaston. Principes Généraux du Droit Administratif. Paris: RT 664/63, 1926.

[13] CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. Administração pública democrática e supremacia do interesse público. Novo Regime Jurídico-Administrativo e seus Princípios Constitucionais Estruturantes. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2015, p.124.

[14] CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. Administração pública democrática e supremacia do interesse público. Novo Regime Jurídico-Administrativo e seus Princípios Constitucionais Estruturantes. 1. ed. Curitiba: Juruá Editora, 2015, p. 130-131.

[15] SOARES, Rogério Guilherme Ehrhardt. Interesse público, legalidade e mérito. Coimbra: Atlantida, 1955, p.101-102.

[16] DI PIETRO, Maria Silvia Zanella, Direito Administrativo, 22 ed. São Paulo: 2008, Editora Atlas, p 64.

[17] FREITAS, Juarez. Políticas públicas, avaliação de impactos e o Direito Fundamental à Boa Administração. Porto Alegre: 2015.

[18] ANTUNES, Luis Filipe Colaço. Mito e realidade da transparência administrativa. In boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra: 1993, p 52.

[19] BRASIL. Artigo 26, §1º, I, Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro.

[20] FRANÇA, Vladimir da Rocha. Eficiência Administrativa na Constituição Federal, RDA 220/165.

[21] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p.74.

[22] DI PIETRO, Maria Silvia Zanella, Direito Administrativo, 22 ed. São Paulo: 2008, Atlas, p 79.

[23] FERREIRA MENDES, Gilmar. O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: novas leituras, Salvador: Revista Diálogo Jurídico, Ano I, nº 5, 2001.

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