Voz do Associado seg, 19 de fevereiro de 2024
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Por: Martonio Mont'Alverne,  Procurador de Fortaleza,  Plínio Régis Baima de AlmeidaProcurador de Maceió e Felinto Alves Martins Filho, Professor da Unifor publicado pelo Conjur no dia 18 de fevereiro.

A operação da Polícia Federal autoapelidada tempus veritatis foi deflagrada com o objetivo de investigar a participação do ex-presidente Jair Bolsonaro e de integrantes da cúpula do seu governo, alguns inclusive oficiais militares de alta patente, na tentativa de abolir o Estado democrático de Direito, crime introduzido no Código Penal pela Lei nº 14.197, de 1º de setembro de 2021.

Um dos primeiros argumentos contrários à decisão do ministro do STF Alexandre de Moraes é aquele da competência da Justiça Militar, uma vez que foi ordenada prisão de militares e busca e apreensão em suas residências.

Alega-se que o artigo 124 da Constituição afastaria a jurisdição do Supremo Tribunal Federal. Nada mais equivocado. A clareza da competência da Justiça Militar não deixa qualquer dúvida: “À Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei”.

Interpretações
Desde 1995 que o STF consolida o entendimento de que os “crimes militares situam-se no campo da exceção”. “As normas em que previstos são exaustivas. Jungidos ao princípio constitucional da reserva legal — inciso XXXIX do artigo 5º da Carta de 1988 — hão de estar tipificados em dispositivo próprio, a merecer interpretação estrita [1].”

Referindo-se a crimes militares — e não a todos os crimes praticados por militares —, a norma constitucional possui incidência no que está definido no artigo 9º do Código Penal Militar.

Com redação dada pela lei 13.491/2017, que ampliou a competência castrense, nele se encontra a definição legal dos crimes militares, entendidos como os delitos previstos naquele código e na legislação penal, desde que praticados em algumas das hipóteses dos incisos também ali previstos.

Mesmo com a alteração ampliativa, em nada se altera a situação concreta, pois fora das hipóteses previstas nos incisos do artigo 9º, como bem fundamentou o ministro Alexandre de Moraes em decisão nos autos do IP 4.923, em fevereiro de 2023.

Importante registrar que a competência foi firmada por solicitação para investigação — devidamente fundamentada — de iniciativa da autoridade Policial Federal. A decisão mereceu inclusive o aplauso e concordância do presidente do Superior Tribunal Militar, tenente-brigadeiro Francisco Joseli [2].

Inexiste na legislação penal militar a previsão de que atentados ou abolição do Estado democrático de Direito sejam crimes militares. Logo, como toda boa doutrina penalista que tem por princípio basilar civilizatória a anterioridade da lei penal, a competência é induvidosamente do STF para o caso.

Além da questão constitucional, a aplicação do tipo penal ao caso tem gerado dois principais pontos de discussão: o crime exige a forma tentada, além do emprego de violência ou grave ameaça (artigo 359-L, do Código Penal).

Divergências
Para alguns, a tentativa só se concretizaria com a expedição de eventual decreto de Estado de Sítio ou de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) pelo ex-presidente. Há nesta tese, no entanto, uma confusão quanto às fases necessárias à consumação do crime (esse “caminho do ato criminoso” é conhecido pela expressão em latim iter criminis).

Como se trata de crime de tentativa de abolição, não é preciso esperar que a abolição se concretize para que o crime seja reconhecido. Assim, todos os atos praticados com vistas a abolir o Estado democrático de Direito, tanto preparatórios quanto executórios, subsomem-se ao tipo penal previsto no artigo 359-L, do Código Penal [3].

Nesse sentido, os ataques sistemáticos ao processo eleitoral e às instituições democráticas, as ações promovidas para interferir nas eleições, a reunião com embaixadores de outros países, o uso indevido de órgãos de inteligência, a reunião para tratar de golpe de Estado, tudo está contido no conceito de tentativa.

A seu turno, cuida a expedição de eventual decreto de Estado de Sítio ou de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) pelo ex-presidente da consumação do golpe. Concretizada a abolição, sobraria às instituições democráticas pouco ou nada de margem para a defesa do Estado. Por essa razão é que a simples tentativa de abolição, e não a consumação, é capitulada como crime, a merecer resposta do Estado.

Violência ou grave ameaça
O outro ponto diz respeito à necessidade de violência ou grave ameaça. O uso de posições privilegiadas em razão de cargo e o uso do aparato estatal para interferir nas eleições, a exemplo dos pronunciamentos do ex-presidente Jair Bolsonaro e de membros do seu governo contra o sistema eleitoral e as operações da Polícia Rodoviária Federal contra eleitores do agora presidente Luiz Inácio Lula da Silva, caracterizam o emprego de violência ou grave ameaça.

Não se pode esquecer que as reuniões e as movimentações de ministros de Estado, do então presidente da República e de oficiais das Forças Armadas em torno de um golpe de Estado são sim caracterizadas como grave ameaça. Não se está tratando de comuns, mas de pessoas que, naquele momento, detinham poder político suficiente para deflagrar a abolição do Estado democrático de Direito.

Não se pode esquecer ainda o tipo penal “violência política”, também introduzido no Código Penal pela Lei nº 14.197, de 1º de setembro de 2021. Comete o crime previsto no artigo 359-P quem restringir, impedir ou dificultar, com emprego de violência física, o exercício de direitos políticos a qualquer pessoa em razão da procedência nacional.

Não custa lembrar que as operações da PRF visaram prejudicar especialmente os leitores do então candidato Lula da Silva situados na região Nordeste do país, em clara subsunção ao tipo penal previsto no referido mesmo artigo 359-P [4].

Parece razoável que se afirme que ainda haverá desdobramentos diversos de um processo tão complexo. A complexidade, por outro lado, não pode representar obstáculo à punição dos militares envolvidos em conspiratas antidemocráticas. A impunidade com os perpetradores dos crimes cometidos durante a ditadura militar brasileira não pode se estender aos atuais momentos.

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[1]HC 72.022, rel. Min. Néri da Silveira, j. 9-2-1995, P, DJ de 28-4-1995.

[2] Disponível neste Conjur: https://www.conjur.com.br/2023-mai-18/atos-janeiro-ampliaram-debate-competencia-justica-militar/. Acesso em 10.02.2024.

[3]Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência

[4] Art. 359-P. Restringir, impedir ou dificultar, com emprego de violência física, sexual ou psicológica, o exercício de direitos políticos a qualquer pessoa em razão de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional: Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

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