Voz do Associado qua, 13 de abril de 2022
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Por: Ravi Peixoto,
Procurador do Município do Recife.  Advogado. Doutor em direito processual pela UERJ. Mestre em direito pela UFPE. Membro da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo (ANNEP), do Centro de Estudos Avançados de Processo (CEAPRO) e do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).


No Brasil, a Fazenda Pública realiza os seus pagamentos em decorrências de sentenças transitadas em julgado por meio de precatórios. Em termos gerais, o precatório é uma ordem de pagamento expedida pelo presidente do tribunal, a partir de um ofício expedido pelo juiz responsável pela execução, que determina o pagamento de uma dívida específica, por meio de sua inclusão no orçamento público.[1]

Dentre outras particularidades na sistemática dos precatórios, em decorrências dos constantes atrasos no seu pagamento, a Constituição brasileira inseriu “filas” preferenciais para o seu pagamento. Até a entrada em vigor da EC 114/2021, existiam apenas três filas, o que foi aumentado para quatro, para além de outros possíveis problemas interpretativos que provavelmente surgirão.

Iniciarei a análise do problema contextualizando as preferências que existiam na redação anterior da Constituição e, posteriormente, tratando da nova e suas possibilidades interpretativas.

 

Por sua importância para os efeitos desse texto, reproduzirei o conteúdo do art. 100, §§1º e 2º, da CF:

  • 1º Os débitos de natureza alimentícia compreendem aqueles decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou por invalidez, fundadas em responsabilidade civil, em virtude de sentença judicial transitada em julgado, e serão pagos com preferência sobre todos os demais débitos, exceto sobre aqueles referidos no § 2º deste artigo.

  • 2º Os débitos de natureza alimentícia cujos titulares, originários ou por sucessão hereditária, tenham 60 (sessenta) anos de idade, ou sejam portadores de doença grave, ou pessoas com deficiência, assim definidos na forma da lei, serão pagos com preferência sobre todos os demais débitos, até o valor equivalente ao triplo fixado em lei para os fins do disposto no § 3º deste artigo, admitido o fracionamento para essa finalidade, sendo que o restante será pago na ordem cronológica de apresentação do precatório.

Pela redação dada respectivamente pelas Emendas Constitucionais 62/2009 e 94/2016, eram três as filas de pagamento de precatórios:

  1. créditos superpreferenciais: alimentares de idosos, portadores de doenças graves e deficientes até 3 vezes o valor da RPV;
  2. créditos preferenciais alimentares;
  3. demais créditos.

Um aspecto bastante importante da sistemática dos precatórios é a de que há uma vedação geral ao seu fracionamento (art. 100, §8º, CF). A possibilidade do fracionamento é excepcional e requer a previsão expressa ou eventual atividade interpretativa que deixe clara a diferenciação dos créditos, a exemplo dos casos em que há litisconsórcio ativo.[2] Nessa situação, na verdade, não há propriamente um fracionamento, mas a divisão dos valores em relação aos seus vários titulares.

No caso da previsão expressa, um exemplo está no caso dos créditos superpreferenciais, que, limitados ao “valor equivalente ao triplo fixado em lei” para a Requisição de Pequeno Valor, era “admitido o fracionamento para essa finalidade, sendo que o restante será pago na ordem cronológica de apresentação do precatório” (art. 100, §3º, CF). Nessa situação, o credor receberá uma parcela do valor como superpreferencial e o restante como precatório, por deter natureza alimentar.

A Emenda Constitucional 114 alterou a sistemática de pagamento dos precatórios. Agora, de acordo com o art. 107-A, §8º, do ADCT:

  • 8º Os pagamentos em virtude de sentença judiciária de que trata o art. 100 da Constituição Federal serão realizados na seguinte ordem:

I – obrigações definidas em lei como de pequeno valor, previstas no § 3º do art. 100 da Constituição Federal;

II – precatórios de natureza alimentícia cujos titulares, originários ou por sucessão hereditária, tenham no mínimo 60 (sessenta) anos de idade, ou sejam portadores de doença grave ou pessoas com deficiência, assim definidos na forma da lei, até o valor equivalente ao triplo do montante fixado em lei como obrigação de pequeno valor;

III – demais precatórios de natureza alimentícia até o valor equivalente ao triplo do montante fixado em lei como obrigação de pequeno valor;

IV – demais precatórios de natureza alimentícia além do valor previsto no inciso III deste parágrafo;

V – demais precatórios

Antes de analisar a alteração, é relevante apontar a estranha escolha do constituinte de alterar as preferências de precatórios no ADCT, mantendo, para esse ponto, intacto o art. 100 da CF. Por mais que o próprio nome ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) indique transitoriedade, nada há no texto normativo que indique que essa alteração assim o seja.

Quando o constituinte assim o quis, há expressa previsão da excepcionalidade. Esse é o caso, por exemplo, do art. 102, §2º, do ADCT, que, durante o regime especial previsto no art. 101 do ADCT, aumenta o valor da superpreferência para o quíntuplo do valor da RPV. Mas, como apontado, neste caso, o constituinte expressamente limitou esse aumento do valor da superpreferência para o regime especial.

A partir da entrada em vigor do novo texto constitucional, existem quatro filas em ordem decrescente de preferência:

  1. créditos superpreferenciais: alimentares de idosos, portadores de doenças graves e deficientes até 3 vezes o valor da RPV;
  2. créditos preferenciais alimentares até 3 vezes o valor da RPV;
  3. créditos preferenciais alimentares acima desses valores;
  4. demais créditos (art. 107-A, §8º, do ADCT).

Um primeiro problema interpretativo a ser enfrentado envolve a situação dos precatórios superpreferenciais, que, como mencionado, detinham expressa autorização para o seu fracionamento. Ocorre que essa menção não é repetida na redação do art. 107-A, §8º, II, do ADCT. Lido de forma isolada, a previsão é a de que se tem os precatórios superpreferenciais limitados a triplo do valor da RPV, sem fracionamento.

No entanto, é possível uma outra leitura do texto normativo, até de forma a torná-la compatível com o art. 100, §2º, da CF: o art. 107-A, §8º visa apenas a estabelecer a ordem de pagamento das dívidas do poder público, com inclusão de mais uma preferência, não alterando o regime de pagamento daquelas já previstas no art. 100 da CF. Além disso, trata-se de uma interpretação que concede maior efetividade ao acesso à justiça, permitindo que ao menos parcela dos créditos considerados pela constituição como de maior importância aos seus titulares sejam pagos de forma mais célere, afinal, são alimentares e apenas concedidos a portadores de doenças graves, de deficiências ou acima de 60 anos.

Dessa forma, seria possível afirmar que art. 107-A, §8º, II, do ADCT apenas insere/reforça o precatório superpreferencial como o primeiro da fila, mas não altera a autorização para o seu fracionamento que permanece no art. 100, §2º, da CF.[3]

A possibilidade de fracionamento, no entanto, não é possível para o novo integrante da fila, qual seja, “demais precatórios de natureza alimentícia até o valor equivalente ao triplo do montante fixado em lei como obrigação de pequeno valor” (art. 107-A, §8º, III, do ADCT). Isso porque, como apontado, o fracionamento é hipótese excepcional, não havendo qualquer previsão constitucional para que isso possa ser feito em relação a esse crédito.

Em outros termos, para que o credor possa ser beneficiado por essa fila preferencial, ou o seu crédito está limitado ao triplo do valor da RPV, ou terá de renunciar ao valor excedente, não podendo fracionar o seu crédito, tal qual pode fazê-lo o detentor do precatório superpreferencial. A situação é equiparável ao credor do RPV, que não pode optar por receber parte em RPV e parte em precatório, devendo, caso o valor a ser recebido ultrapassar o limite da RVP, renunciar ao crédito exequente caso objetive dispensa a espera para recebimento do precatório.

Há um outro possível problema interpretativo, partindo-se do pressuposto de que: i) permanece possível o fracionamento do crédito superpreferencial e ii) não é possível o fracionamento do crédito alimentar que ultrapasse o triplo do valor da RPV. O que fazer com o crédito superpreferencial que ultrapasse o triplo do valor do RPV? Ele deve, no valor excedente, ingressar como simples precatório alimentar ou pode ser beneficiado pela nova preferência?

Entendo que o valor excedente deve ingressar como precatório de natureza alimentar, independentemente do valor. Não parece possível que o crédito seja beneficiado pela superpreferência e, no que exceder, ingresse como preferência limitada a três vezes o valor do RPV e, no eventual excedente, como alimentar simples. A redação do texto normativo faz referência a “precatórios de natureza alimentícia até o valor equivalente ao triplo do montante fixado em lei como obrigação de pequeno valor” (art. 107-A, §8º, II, do ADCT), o que indica um precatório visto em sua totalidade e não em eventual parcela excedente. Para além disso, essa nova espécie de precatório não pode ser fracionada.

É perceptível que a alteração realizada no regime de pagamento de precatórios não foi cuidadosamente redigida e que possíveis problemas interpretativos surgirão. Ao menos a partir de uma análise inicial, é possível afirmar que permanece possível o fracionamento do crédito superpreferencial, o que não foi autorizado para o novo membro da fila dos precatórios, que não tem autorização constitucional para o seu fracionamento.


[1] MOREIRA, Egon Bockmann; GRUPENMACHER, Betina Treiger; KANAYAMA, Rodrigo Luís; AGOTTANI, Diogo Zelak. Precatórios: o seu novo regime jurídico. São Paulo: RT, 2017, p. 23.

[2] STF, Tribunal Pleno, RE 568.645, rel. min. Cármen Lúcia, j. 24/09/2014, DJE 13/11/2014, Tema 148; STF, 2ª T., RE 1.038.035 AgR, rel. p/ o ac. min. Dias Toffoli, j. 07/11/2017, DJE 09/03/2018; STF, Tribunal Pleno, ARE 925.754 RG, rel. min. Teori Zavascki, j. 17/12/2015, DJE 03/02/2016, Tema 873.

[3] Agradeço ao professor Marco Aurélio Peixoto pelos debates sobre as possíveis interpretações do novo texto normativo.

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