Por: Aline Cotrim Santos,
Procuradora do Município de Lauro de Freitas/BA. Aluna especial da disciplina Teorias do Direito e Justiça do programa de Mestrado da Universidade Federal da Bahia - PPGD/UFBA. Pós graduada em Direito Público. Advogada. Delegada da Associação Nacional de Procuradores Municipais – ANPM, pelo Estado da Bahia. Coordenadora dos Delegados Estaduais da ANPM.
RESUMO: Este artigo possui o objetivo de analisar a atuação dos entes federativos na pandemia do Covid-19, especialmente a atuação dos municípios na crise sanitária, fazendo uma reflexão acerca dos contornos do federalismo nesse período. Inicia-se pela análise do cenário de pandemia. Após, realiza breves notas acerca do federalismo brasileiro. No terceiro capítulo, realiza análise das decisões mais importantes do Supremo Tribunal Federal – STF – pertinentes ao enfrentamento da pandemia do Covid-19, com impactos na Federação brasileira. Posteriormente, trata da atuação dos entes federativos na pandemia, em especial da atuação dos municípios. Conclui-se que o Supremo Tribunal Federal tem decidido no sentido de preservar, ao máximo, a autonomia de cada pessoa política no âmbito das suas competências nas medidas de enfrentamento à pandemia Covid-19, logo, a preservar o pacto federativo, bem como reflete acerca da necessidade da releitura do federalismo no país pós pandêmico, de modo a garantir maior desconcentração do poder, maior autonomia municipal e, consequentemente, melhor atuação do poder público na implementação dos direitos fundamentais.
PALAVRAS-CHAVE: Federação brasileira; Pandemia Covid-19; Supremo Tribunal Federal; federalismo; municípios; coronavírus; direito à saúde; crise sanitária; direito constitucional.
ABSTRACT: This article aims to analyze the role of federative entities in the Covid-19 pandemic, especially the role of municipalities in the health crisis, reflecting on the contours of federalism in this period. It starts with the analysis of the pandemic scenario. Afterwards, he makes brief notes about Brazilian federalism. In the third chapter, it analyzes the most important decisions of the Supremo Tribunal Federal - STF - pertinent to the face of the Covid-19 pandemic, with impacts on the Brazilian Federation. Subsequently, it deals with the performance of federative entities in the pandemic, in particular the performance of municipalities. It is concluded that the STF has decided to preserve, as much as possible, the autonomy of each political person within the scope of their competences in the measures to combat the Covid-19 pandemic, therefore, to preserve the federative pact, as well as reflects about the need for a reinterpretation of federalism in the post-pandemic country, in order to guarantee greater deconcentration of power, greater municipal autonomy and, consequently, better performance of the public power in the implementation of fundamental rights.
KEYWORDS:. Brazilian federation; Covid-19 Pandemic; Supremo Tribunal Federal; federalism; counties; coronavirus; right to health; health crisis; constitutional right.
Desde o início de 2020, o mundo se surpreendeu com uma pandemia global causada pelo vírus SARS-CoV-2, identificado pela primeira vez por autoridades na cidade de Wuhan, capital da província de Hubei na China, causador de uma infecção respiratória grave e que, até maio deste ano, já tinha causado a morte de mais de seis milhões de pessoas em todo o mundo[1].
No Brasil, a pandemia de COVID-19 teve início em 26 de fevereiro de 2020, após a confirmação de que um homem de 61 anos de São Paulo, ao retornar da Itália, testou positivo para o SARS-CoV-2, causador da COVID-19. Após isso, foi declarada transmissão comunitária[2], reconhecida a pandemia pela Organização Mundial de Saúde - OMS e foram confirmados mais de 21 (vinte e um) milhões de casos, com mais de seiscentos mil óbitos[3] somente no Brasil e muitos reflexos nas mais diversas áreas.
Diante disso, houve a decretação do estado de calamidade, aprovado pelo Congresso Nacional em 20 de março de 2020 (Decreto Legislativo nº 6, de 2020) e foi instituído um orçamento de guerra, através da Emenda Constitucional nº. 106, de 7 de maio de 2020, que instituiu um regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para enfrentamento de calamidade pública nacional decorrente de pandemia.
Como consequência da pandemia, houve o aprofundamento da crise econômica, atingindo os mais diversos setores, inclusive o de serviços essenciais.
Em abril de 2020, com a majoração do número de casos e mortes em todo o território nacional, o sistema de saúde de Manaus entrou em colapso, e, logo após, o sistema funerário[4], o que tornou a ocorrer em janeiro de 2021, quando a capital do Amazonas viveu o drama da falta de oxigênio nos hospitais públicos e privados[5].
Ainda em abril de 2020, diversos Estados e Municípios optaram pelo lockdown como uma medida mais rígida para impedir o avanço do coronavírus, permitindo à população que saísse de casa somente para atividades essenciais.
Em 17 de janeiro de 2021, os Municípios iniciaram a vacinação contra a COVID-19, organizando estratégias de vacinação e cadastrando, inicialmente, as pessoas integrantes de uma lista de prioridades e, posteriormente, todo o restante da população adulta e crianças a partir de 05 (cinco) anos de idade, o que possibilitou atingir a marca de 167 milhões de brasileiros vacinados, o que equivale a 78,4% da população do país totalmente vacinada e aplicação de 445 milhões de doses [6].
Já integra o “senso comum” a expressão segundo a qual a pandemia da Covid-19 representa um verdadeiro “divisor de águas” na história da humanidade. Cogita-se o surgimento de novas formas de relacionamento intersubjetivo, novas dinâmicas econômicas, novas formas de trabalho etc (DE MASI, 2020). Como consequência, muitos reflexos em todas as áreas sociais, enorme produção legislativa e muitas transformações no direito, que tenta se adaptar à nova realidade de crise sanitária.
Os estudiosos da Universidade de Brasília[7] apontam que as deficiências já presentes na efetividade do direito fundamental à saúde vivenciadas no Brasil, potencializarão os efeitos da pandemia no país.
Ficou evidente a importância da participação dos Municípios no controle da pandemia e enfrentamento da crise, através da criação de estratégias de vacinação, controle de medidas sanitárias, organização dos postos de saúde para tratamento de doentes de menor gravidade e encaminhamento de doentes com maior complexidade para tratamento hospitalar, dentre outros, organizando de forma mais próxima o cotidiano do cidadão para enfrentamento da pandemia. Afinal, o indivíduo não reside na União, mas sim, no município, sendo no município que a vida acontece.
O mundo saiu do eixo com a pandemia do COVID-19 e se faz necessária a reflexão de como o direito brasileiro pode se ajustar melhor a fim de atender de forma mais satisfatória as demandas cotidianas do cidadão em um país pós pandemia, podendo esta configurar um marco na configuração das relações federativas no país.
Com a proclamação da República, foi introduzido no Brasil o federalismo. Por Estado Federal compreende-se uma forma de organização e de distribuição do poder estatal em que a existência de um governo central não inibe que sejam divididas responsabilidades e competências entre ele e os Estados-membros.
O brilhante José Afonso da Silva distingue a forma unitária da forma federal de Estado. Para o jurista, se “existe unidade de poder sobre o território, pessoas e bens, tem-se Estado unitário. Se, ao contrário, o poder se reparte, se divide, no espaço territorial (divisão espacial de poderes), gerando uma multiplicidade de organizações governamentais, distribuídas regionalmente, encontramo-nos diante de uma forma de Estado composto, denominado Estado federal ou Federação de Estados”. Assim, “a repartição regional de poderes autônomos constitui o cerne do conceito de Estado federal. Nisso é que ele se distingue da forma de Estado unitário (França, Chile, Uruguai, Paraguai e outros), que não possui senão um centro de poder que se estende por todo o território e sobre toda a população e controla todas as coletividades regionais e locais” (SILVA, 2005, p. 100-101).
A Primeira República do Brasil (1889-1930) marcou-se por amplo domínio das oligarquias (grupos pequenos, detentores da força econômica, do poder político e do prestígio social) e o federalismo conheceu sua máxima expressão no País. Foi o período em que os grupos dominantes nos Estados tiveram grande autonomia em relação ao poder central.
Logo após, com a crise mundial dos anos 1930, houve a falência do liberalismo econômico e político, criando reflexos também no país. No Brasil, o principal acontecimento político foi a chamada “Revolução de 1930” e a consequente implantação da Era Vargas (1930-1945), marcada pela expansão de regimes autoritários, altamente centralizados, onde a autonomia dos Estados praticamente deixa de existir, com o comando da União da quase generalidade de ações.
Com a queda do regime ditatorial no país, uma nova experiência democrática foi possível, especificamente entre 1946 a 1964, com um país mais moderno, que se industrializava e urbanizava. Nesse período, houve o recobramento da importância do Congresso Nacional, bem como dos Estados, que recuperaram parte da autonomia perdida durante o regime ditatorial.
Com o regime militar (1964-1985), aprofunda-se o processo de ampliação dos poderes da União, enfraquecendo o Federalismo e sujeitando os Estados à posição de acentuada dependência do Governo Federal, especialmente financeiramente. Os Atos Institucionais baixados durante o Regime Militar geravam uma enorme concentração de poderes no Governo Central.
Com o fim do Regime Militar e o retorno da democracia, ressurgiu o Federalismo, restando clara a estreita relação entre Estado democrático de direito e Federação.
Como visto e como bem pontuado pelos autores Marcelo Labanca Corrêa de Araújo e Leonam Liziero (2020), a centralização é uma característica presente na história constitucional do Estado federal brasileiro e sufocou muitas vezes o federalismo no Brasil.
A Constituição de 1988, também conhecida como “Constituição Cidadã”, amplia as competências dos Estados-membros e estabelece um papel de destaque para os municípios, além de conceder autonomia ao Distrito Federal semelhante àquela adotada para as demais Unidades da Federação, apesar de continuar centralizadora.
No primeiro artigo da CF/88, já se apresenta a determinação de que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados e municípios e do Distrito Federal. Neste espectro, impossível, enquanto vigorar a Carta Constitucional, qualquer rediscussão do pacto federativo, tendo sido o mesmo alçado a cláusula pétrea, através do art. 60, §4º, impossível de se abolir, portanto, mesmo por eventual emenda à constituição.
Acerca da repartição de competências entre os componentes do Estado Federal na Constituição Cidadã, conforme doutrina constitucional majoritária, sabe-se que o princípio geral que norteia é o da predominância de interesse, cabendo à União matérias de interesse geral, aos Estados as matérias de interesse regional e aos municípios os assuntos de interesse local.
Nas palavras de Fernandes (2018):
Além do princípio da indissolubilidade do vínculo Federativo (já citado), existe um outro princípio importante para o federalismo e para o tema ora em análise. Esse princípio é chamado de Princípio da predominância dos interesses. Nesses termos, à luz do referido princípio: a União tem sempre interesse geral; os Estados-membros, interesse regional e os Municípios, interesse local. O Distrito Federal terá interesse tanto regional como local, conforme o art. 32 § lº da CR/88 (FERNANDES, 2018, p. 886).
E, como grande causa deste cenário centralizador, identifica-se a chamada a tese da autoridade sobre jurisdições (ARRETCHE, 2009, p. 380), que consiste em compreender que a Constituição de 1988 criou um modelo de repartição de competências que proveu à União ampla autoridade em inúmeras matérias, aliada às limitadas oportunidades de resistência dos poderes subnacionais contra as decisões da União.
Deste modo, vários os doutrinadores do federalismo, ao examinar o tema de repartição de competências na Constituição de 1988, indicam a existência de um federalismo centralizado, em razão da maior quantidade de assuntos destinados à União.
No entanto, também se pode dizer que o sistema de repartição de competências utilizado no federalismo brasileiro seria uma combinação do modelo do federalismo dual com o modelo do federalismo cooperativo. Pelo modelo do federalismo dual, tem-se uma divisão de competências sempre privativas para a União e para os Estados-membros. As da União são dispostas por numerus clausus. A dos Estados-membros são as chamadas competências remanescentes, técnica muito conhecida de divisão de competências em estados descentralizados politicamente.
Por meio da divisão de competências do federalismo dual, tudo aquilo que não está expressamente designado para a União, será dos Estados. Esse tipo de repartição foi utilizado também pelo constituinte de 1988, a teor do que diz o art. 25 da Constituição. Ali encontra-se expressamente consignado que “são reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição”. Ou seja, tudo que não da União (e nem dos municípios) por expressa previsão constitucional, será do Estado.
Conforme explicitam os autores Marcelo Araújo e Leonam Liziero (2020), além do modelo do federalismo dual, também foi adotado o modelo do federalismo cooperativo, técnica em que a Constituição elege alguns temas que podem ser objeto de atuação conjunta (legislativa ou administrativa) pela União e também por parte dos Estados-membros (no caso brasileiro, também dos municípios), como consolidado nos arts. 23 e 24 do texto constitucional de 1988.
Anteriormente à Constituição Cidadã, os municípios eram apenas desmembramentos territoriais dos Estados brasileiros, com a Constituição Federal atual foram elevados à esfera de poder que compõe a Federação brasileira, especialmente com integração à estrutura federativa como entidade autônoma (artigo 1º), autonomia política, administrativa e financeira (artigo 18), competências constitucionais próprias (artigo 30), e previsão de rendas (artigo 156).
Como vimos na história do Federalismo Brasileiro, constata-se que quanto mais democrático for o país, maior será a autonomia de Estados e municípios. Defender uma maior centralização dos poderes e decisões na União seria retroceder em termos democráticos e ignorar a necessária evolução e crescente anseios e demandas da sociedade brasileira.
Democracia, estado de direito e federalismo estão, portanto, estreitamente conectados, de modo que um depende do outro e todos existem para coibir a concentração autoritária de poder político e o arbítrio de governantes autocratas (MELO, 2020, p. 344).
Portanto, o que mais caracteriza o federalismo é ser uma forma de distribuição de poder político entre âmbitos central, regional e local, de modo a diluí-lo no território nacional. A CF/88 prevê a autonomia administrativa, legislativa e financeira dos entes federados, de modo que compartilhem competências administrativas e legislativas, comuns e concorrentes, conforme elencadas nos arts. 23 e 24, da CF/88, respectivamente, além de competências tributárias.
Ou seja, no Brasil, a União, os Estados e o Distrito Federal legislam, concorrentemente, sobre a proteção e a defesa da saúde (art. 24, XII), e têm competência administrativa comum para cuidar da saúde e da assistência pública, a teor do art. 23, II, da CF/88. Desta forma, os governos das três esferas federativas têm o dever constitucional de adoção e implementação de políticas públicas que assegurem o exercício social do direito à saúde dos seus cidadãos.
A Constituição Federal, como dito anteriormente, portanto, propõe uma ideia de federalismo de cooperação, em que o papel da União é coordenar ações, estabelecer regras gerais e apoiar o desenvolvimento de políticas públicas regionais e locais de proteção e promoção à saúde.
Diante desta responsabilidade e atuações conjuntas, restou evidenciado na pandemia, como se verá a seguir, conflitos entre os entes acerca dos limites da atuação de cada um, tendo sido alçado o federalismo ao tema da ordem do dia no constitucionalismo brasileiro.
Acerca dos recorrentes conflitos federativos, especialmente o que vivenciado na pandemia do coronavírus, importante destacar a lição do notável José Afonso da Silva: “Esta distribuição constitucional de poderes é o ponto nuclear da noção de Estado federal. São notórias as dificuldades quanto a saber que matérias devem ser entregues à competência da União, quais as que competirão aos Estados e quais as que se indicarão aos Municípios” (SILVA, 2005, p. 477).
Surpreendidos os entes federativos com uma excepcional crise sanitária que sobrecarregava todo o sistema de saúde nacional, com escassez de insumos médicos, leitos hospitalares, profissionais de saúde e iminente risco de colapso, tiveram que adotar medidas sanitárias das mais diversas para garantir uma mínima ordem social, protegendo a vida e saúde da população.
Por todo o país, Estados e municípios adotaram medidas como a obrigatoriedade do uso de máscaras, ampliação dos leitos hospitalares, lockdown, toque de recolher, proibição de venda de bebidas alcoólicas, proibição de aglomerações, shows e eventos presenciais, fechamento de estabelecimentos comerciais não essenciais, a depender do grau de comprometimento sanitária de cada localidade.
Tais atos acabaram por gerar embates entre a União e Estados e municípios, a exemplo do ocorrido no Estado da Bahia, em que, no início da pandemia, houve a tentativa de medição de temperatura das pessoas que chegavam através dos aeroportos, com intuito de identificar possível portador do Covid-19, uma espécie de barreira sanitária, evitando maior disseminação do vírus no Estado, tendo a Anvisa, no entanto, judicializado a questão para obstaculizar tal controle[8]. Os principais aeroportos do país, localizados nas maiores cidades e áreas urbanas, foram a porta de entrada da Covid-19, e, portanto, mais afetadas que outras porções do território (Candido et al., 2020; Fortaleza et al., 2020).
No contexto da sociedade brasileira, a crise médico-sanitária vem revelando disputas de poder que colocam em xeque o direito ao desenvolvimento de seus cidadãos (GRIGOLETTO; MUNIZ, 2020).
A omissão do Governo Federal no enfrentamento da pandemia, com o atraso na aquisição de vacinas e adoção de medidas que contivessem a disseminação do vírus provocou uma avalanche de atos estaduais e municipais autônomos e dissociados da orientação do Ministério da Saúde[9], na esteira da competência material comum definida constitucionalmente.
Os atos estaduais e municipais representaram evidente manifestação do federalismo de resistência frente às diretrizes políticas negacionistas e contrárias à ciência do governo federal para enfrentamento da crise pandêmica do covid-19. Diante da negação ao conhecimento científico, por parte do Governo Federal, da importância do afastamento social, das orientações da Organização Mundial de Saúde adotadas com base em protocolos científicos testados, e da sua insistência no uso da cloroquina como meio suficiente e supostamente eficaz para enfrentamento do surto pandêmico, a resposta dos governadores e gestores locais foi a resistência, a insurgência e a afirmação de sua independência política para promover a proteção à saúde da população sob sua administração (MELO, 2020).
Nesse sentido, a Medida Provisória nº 926/2020 promulgada pelo Governo Federal em 20 de março de 2020, foi interpretada como uma tentativa de centralização dos atos sanitários na União, especificamente na tentativa de se atribuir à Presidência da República a exclusividade da prerrogativa na edição das medidas sanitárias, insatisfeito com a autonomia dos Estados e municípios na execução das ações e serviços de vigilância epidemiológica e de controle do surto.
A referida Medida Provisória previa que todas as medidas de restrição de entrada e saída do País e locomoção interestadual e intermunicipal apenas poderiam ocorrer se em conformidade com o Ministério da Saúde e da Justiça e Segurança Pública. Da mesma forma, os gestores locais (estaduais e municipais) apenas poderiam decidir sobre o tema se assim o fossem autorizados pelo Ministério da Saúde.
Ademais, de acordo com a MP, nenhuma medida de restrição poderia obstruir o exercício de atividades essenciais, determinando, ainda, que essas atividades seriam reguladas por meio de decreto do Poder Executivo Federal.
Assim, teve a Medida Provisória questionada sua constitucionalidade através da Ação Direta de nº 6.341[10], sobrevindo decisão liminar do Ministro do STF Marco Aurélio Mello estabelecendo que governadores e prefeitos possuem autonomia para determinar restrições à locomoção das pessoas em Estados e municípios, reafirmando, portanto, a competência federativa comum.
Entendeu o Supremo Tribunal Federal que o exercício da competência constitucional de Estados, Distrito Federal e municípios compreende a adoção de importantes medidas restritivas como a imposição de isolamento social, quarentena, suspensão de aulas, restrições de funcionamento do comércio e a atividades culturais, e que, portanto, não compete ao Poder Executivo Federal afastar unilateralmente as decisões dos governos estaduais e locais que eventualmente tenham determinações de restrição de serviços e circulação de pessoas em meio à pandemia.
Em ato seguinte, o plenário do STF referendou, por unanimidade, a medida cautelar concedida no bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.341, confirmando que as competências conferidas à Anvisa pela Medida Provisória nº 926/2020 não afastam a competência concorrente de Estados e municípios sobre saúde pública. As medidas sanitárias estabelecidas por Estados e municípios, portanto, passaram a ter respaldo, além de constitucional, jurisprudencial, diminuindo, então, o embate federativo e reafirmando as autonomias estaduais e municipais.
Importa destacar a ementa do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.341, mais importante julgamento do Supremo Tribunal Federal acerca do conflito federativo vivenciado no período pandêmico, vejamos:
REFERENDO EM MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DA INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO À SAÚDE. EMERGÊNCIA SANITÁRIA INTERNACIONAL. LEI 13.979 DE 2020. COMPETÊNCIA DOS ENTES FEDERADOS PARA LEGISLAR E ADOTAR MEDIDAS SANITÁRIAS DE COMBATE À EPIDEMIA INTERNACIONAL. HIERARQUIA DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. COMPETÊNCIA COMUM. MEDIDA CAUTELAR PARCIALMENTE DEFERIDA.
(STF - ADI: 6341 DF, Relator: MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 15/04/2020, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 13/11/2020)
Como visto, além de reafirmar a autonomia de Estados e municípios, o STF teve um papel importante ao condenar a omissão na formulação de políticas públicas vinculadas às ações essenciais insculpidas no art. 23 da Constituição Federal, salientando a gravidade em se obstaculizar a atuação de Estados e municípios, sobretudo em matéria de saúde pública, ao argumento de suposta competência exclusiva ou privativa da União. Premia a visão voltada ao coletivo, à saúde, de interesse de todos os cidadãos.
Ressalta, ainda, que a diretriz constitucional da hierarquização, constante do caput do art. 198 não significou hierarquização entre os entes federados, mas comando único, dentro de cada um deles, reafirmando o pacto federativo.
Neste mesmo sentido, a atuação do STF no julgamento da ADPF 672, vejamos:
CONSTITUCIONAL. PANDEMIA DO CORONAVÍRUS (COVID-19). RESPEITO AO FEDERALISMO. LEI FEDERAL 13.979/2020. MEDIDAS SANITÁRIAS DE CONTENÇÃO À DISSEMINAÇÃO DO VÍRUS. ISOLAMENTO SOCIAL. PROTEÇÃO À SAÚDE, SEGURANÇA SANITÁRIA E EPIDEMIOLÓGICA. COMPETÊNCIAS COMUNS E CONCORRENTES E RESPEITO AO PRINCÍPIO DA PREDOMINÂNCIA DO INTERESSE (ARTS. 23, II, 24, XII, E 25, § 1º, DA CF). COMPETÊNCIAS DOS ESTADOS PARA IMPLEMENTAÇÃO DAS MEDIDAS PREVISTAS EM LEI FEDERAL. ARGUIÇÃO JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE.
(STF - ADPF: 672 DF, Relator: ALEXANDRE DE MORAES, Data de Julgamento: 13/10/2020, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 29/10/2020)
Nesta, proposta pelo Conselho Federal da OAB, o Ministro Relator Alexandre de Moraes expressamente reconheceu a competência concorrente de Estados e Distrito Federal e suplementar dos Municípios para "a adoção ou manutenção de medidas restritivas legalmente permitidas durante a pandemia, tais como, a imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outras; independentemente de superveniência de ato federal em sentido contrário, sem prejuízo da competência geral da União para estabelecer medidas restritivas em todo o território nacional, caso entenda necessário", reafirmando preceitos jurídicos fundamentais da proteção à saúde e do respeito ao federalismo. Deste modo, tratando de providências específicas, a decisão indica que, no caso de conflito, deverão prevalecer as deliberações de Estados, DF e municípios na matéria, e não a da União.
Essa decisão tem suporte na ideia própria do federalismo de que são as autoridades locais e regionais que têm maior condição de fazer um diagnóstico em torno do avanço da doença e da capacidade de operação do sistema de saúde em cada localidade, com vistas a evitar o seu colapso (MELO, 2020).
Desta forma, teve o Supremo importante atuação na solução da crise federativa durante a pandemia, ao estabelecer que, no caso das medidas de enfrentamento ao Covid-19, relacionadas, portanto, à proteção à saúde, matéria de competência comum a todos os entes federados, não pode a União decidir isoladamente quais medidas de isolamento serão adotadas ou quais as atividades seriam consideradas essenciais ou poderiam sofrer restrição, ignorando a realidade e particularidade de cada localidade do país. Reafirmou, assim, de forma categórica, o pacto federativo, especialmente o federalismo cooperativo.
Muitos autores entendem que pode estar havendo uma “virada” descentralizadora da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal com o julgamento da ADPF 672, como prelecionam Marcelo Araújo e Leonam Liziero (2020).
Em tempos de crise e instabilidade política, a população credibiliza ao sistema jurídico a melhor alternativa de pacificação social (SANTOS, 2018, p. 75-76), tendo o STF, portanto, agido de modo cirúrgico na crise política originada da crise sanitária global vivenciada.
Como ensina o mestre Ricardo Soares (2017), dentre os desafios da contemporaneidade, os chamados tempos pós-modernos são sempre um desafio para o direito, são tempos de ceticismo quanto à capacidade da Ciência do Direito de dar respostas adequadas e gerais aos problemas que perturbam a sociedade atual e se modificam com uma velocidade assustadora.
De acordo com a produção jurisprudencial do STF no período da crise, Estados e os municípios podem e devem agir na proteção à saúde dentro de seus interesses regionais e locais.
Diante da urgência e caos impostos pela pandemia, seria razoável esperar a implementação de uma estratégia nacional, articuladora de medidas de enfrentamento ao vírus, com adaptações regionais e locais, equilibrando as demandas relativas à saúde pública e à economia, o que não se verificou.
Em razão da inércia da União, Estados e municípios assumiram o protagonismo da situação, com atuações decisivas para salvaguardar o maior bem do cidadão: a vida.
Como visto alhures, trata a saúde pública de matéria de competência comum dos entes federativos. Isso se extrai tanto da leitura do art. 23, II, da CF, como do inciso I do art. 198, que estabelece o princípio da descentralização administrativa do Sistema Único de Saúde (SUS), vejamos:
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
(...).
II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
(...). (BRASIL, 2020).
Conforme jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal, embora o art. 196 da Constituição de 1988 traga norma de caráter programático, os entes estatais não podem furtar-se do dever de propiciar os meios necessários ao gozo do direito à saúde por todos os cidadãos, sendo dever solidário da União, do Estado e do município provê-los.
Como forma de inibir o avanço do Covid-19 e diminuir a sobrecarga do sistema de saúde, ainda em abril de 2020, diversos Estados e municípios optaram pelo lockdown como uma medida mais rígida para impedir o avanço do coronavírus, permitindo à população que saísse de casa somente para atividades essenciais.
Em 17 de janeiro de 2021, os municípios iniciaram a vacinação contra a COVID-19, organizando estratégias de vacinação e cadastrando, inicialmente, as pessoas integrantes de uma lista de prioridades e, posteriormente, todo o restante da população adulta e crianças a partir de 05 (cinco) anos de idade.
Coube ao município definir, a partir das recomendações do Programa Nacional de Imunização, quais seriam os grupos a serem preferencialmente vacinados ou até o tipo de vacina utilizada em cada situação. No Município de Salvador/BA, por exemplo, foi adotada a estratégia de vacinar a população em situação de rua com a vacina da fabricante Janssen[11], considerada à época de dose única, por entender a dificuldade de retorno da população em situação de rua para uma segunda dose.
Além disso, especificamente nos municípios, os gestores locais tiveram que atuar na decisão acerca da suspensão de funcionamento de transportes intermunicipais, funcionamento de escolas e atividades comerciais, do uso de máscaras, ampliação dos leitos hospitalares, toque de recolher, proibição de venda de bebidas alcoólicas, proibição de aglomerações, shows e eventos presenciais, a depender do grau de comprometimento sanitária de cada localidade.
Dados da Confederação Nacional dos Municípios, coletados no segundo semestre de 2020, apontaram que a distribuição do Covid-19 não ocorreu de forma homogênea nas regiões brasileiras ou mesmo dentro da escala intraurbana. No mesmo sentido, o estudo de Fortaleza e colaboradores indica que houve dois padrões de disseminação geográfica do Covid-19 no Estado de São Paulo, da área metropolitana para o interior do estado, e o segundo ligado a uma ideia de hierarquia de cidades, com impacto primeiramente nos centros urbanos de maior relevância regional e, em seguida, atingindo os municípios menores e interioranos (LUI et al, 2021).
Se verifica, então, que a pandemia não atingiu de forma uniforme todas os municípios, nem todas as regiões do Brasil, impossibilitando, portanto, que a União decidisse de maneira única acerca do tema, em um país com dimensões continentais como o Brasil. Decidir de modo uniforme seria ignorar particularidades locais e regionais de cada município ou Estado.
O município, acompanhando o cotidiano do cidadão, detém informações e profundidade de conhecimento acerca da realidade local, ignorados pela União, como taxa de contágio, tipo de economia, principais atividades econômicas, quantidade de leitos disponíveis, dentre tantas outras peculiaridades, a exemplo dos costumes locais.
No município de Salvador/BA, por exemplo, houve decreto municipal específico proibindo a realizações de festas do tipo “paredões”[12], por promoverem aglomerações e facilitarem de modo intenso a transmissão do vírus, possibilitado pelo conhecimento do gestor local acerca dos costumes dos moradores.
Ficou evidente a importância da participação dos municípios no controle da pandemia e enfrentamento da crise, através da criação de estratégias de vacinação, controle de medidas sanitárias, organização dos postos de saúde para tratar doentes de menor gravidade e encaminhar doentes com maior complexidade para tratamento hospitalar, dentre outros, organizando de forma mais próxima o cotidiano do cidadão para enfrentamento da pandemia. Afinal, o indivíduo não reside na União, mas sim, no município e é no município que a vida acontece.
Governar é realizar escolhas, que envolvem valores, além de equilíbrio entre diversos interesses (PINHEIRO, 2018), devendo, inclusive, o gestor público ser criterioso em suas escolhas, pois os recursos disponíveis são geralmente inferiores às inúmeras necessidades humanas (SERTÃ; VILAR, 2022) e, em uma situação de extrema excepcionalidade como na pandemia do Covid-19, especialmente com envolvimento do bem jurídico mais importante, a vida, certamente o gestor local detém maior poder de acertabilidade nessas escolhas.
Experiência importante na crise sanitária foi a participação dos Consórcios Regionais na formulação de políticas de enfretamento ao vírus. Especialmente no Consórcio Nordeste, criado em 2019 para ser o instrumento jurídico, político e econômico de integração dos nove Estados da região Nordeste do Brasil, com o objetivo de atrair investimentos e alavancar projetos de forma integrada, constituindo-se, ao mesmo tempo, como uma ferramenta de gestão criada e à disposição dos seus entes consorciados, e como um articulador de pactos de governança, com a realização de compras conjuntas, a implementação integrada de políticas públicas e a busca por cooperação, também em nível internacional[13], foi criado um Comitê Científico durante a crise sanitária.
De modo a reforçar a adoção de medidas de combate à pandemia nas melhores evidencias científicas, o Consórcio Nordeste instituiu, nos termos da Resolução nº 05/2020, o Comitê Científico de apoio ao combate da pandemia do novo coronavírus no âmbito do Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável do Nordeste – Consórcio Nordeste, com a finalidade de assessorar os Estados consorciados na adoção de medidas para a prevenção, o controle e a contenção de riscos, danos e agravos à saúde pública, a fim de evitar a disseminação da doença e a estruturação do sistema de saúde para o atendimento da população.
O Comitê Científico do Consórcio Nordeste, composto por especialistas de distintos campos do conhecimento, incluindo o de saúde coletiva, clínica, direito sanitário, administração, ciência da computação, engenharia clínica, epidemiologia, entre outros, buscou assessorar os governadores da região na tomada de decisões com base nas melhores evidências científicas, de forma a diminuir a curva de contágio do vírus e mitigar os danos ocasionados à saúde daqueles acometidos com os problemas respiratórios decorrentes.
O Comitê Científico passou a emitir boletins com recomendações de ações para a contenção do espalhamento do vírus, informações para as equipes de saúde, análises de cenários e riscos, entre outros, com base no melhor conhecimento científico existente, sugerindo o lockdown [14], cancelamento de feriados específicos, proibição de festas, utilização de máscaras em locais fechados, dentre outros.
A primeira recomendação do Boletim 1 do Comitê Científico foi enfática: os Estados e municípios deveriam impor medidas restritivas de distanciamento social, que eram essenciais para conter o avanço da epidemia, imediatamente acatada pelos governadores do Nordeste. No entanto, a epidemia expandiu na região, facilitada por ser uma das mais pobres do país, com particularidades de enormes desigualdades sociais, com aglomeração de pessoas nas moradias e trabalhando em setores comerciais informais ou desestruturados[15].
Com os municípios, experiência semelhante ocorreu no Estado da Bahia, em que as medidas sanitárias adotadas ao longo da pandemia do Covid-19 eram realizadas de forma regionalizada, com a participação dos gestores locais da respectiva área[16]. Quando reunidos em consórcios, como os da região oeste da Bahia, através do Consórcio Multifinalitário do Oeste da Bahia – CONSID, também debatiam para adotar decisões uniformes e em atendimento às particularidades locais[17].
Os consórcios se apresentam como um poderoso (ainda tímido, porém) instrumento institucional de insurgência federativa, de modo a deslocar, mesmo que em pouco grau, o eixo decisório aos Estados, como instrumento de estímulo à cooperação federativa horizontalizada (ARAÚJO; LIZIERO, 2020). Estabelecido pela reforma integral do texto do art. 241 da Constituição de 1988, com a Emenda Constitucional nº 19/1998, possibilita a formação de uma pessoa jurídica cujo objetivo é promover integração entre os entes federativos signatários.
As experiências relatadas demonstram, portanto, que o federalismo cooperativo se apresenta como um modelo de organização estatal mais compatível com a necessidade de prevenção e o enfrentamento da Covid-19, ao propiciar a articulação dos governos nacionais e locais, nos limites de suas respectivas competências, tendo em vista a formulação e execução de políticas públicas conjuntas e, portanto, dotadas da sinergia necessária para salvaguardar a dignidade humana (JUNIOR; SOARES, 2020, p. 286).
Uma maior descentralização das competências materiais e legislativas hoje acumuladas na esfera de poder da União favoreceria o desenvolvimento de políticas públicas que considerem as especificidades de cada localidade, tornando-as mais eficientes e passíveis de fiscalização pelos respectivos cidadãos (REIS; VITÓRIA, 2020).
E mais, como dito, o nosso federalismo é pautado pelo princípio da predominância do interesse, tendo a norma local capacidade de atender melhor às legítimas pretensões da coletividade naquela área territorial, visto que o que é peculiar de uma localidade, pode não ser de outra localidade (CORREIA; MACEDO, 2020), daí emergindo a importância do município na crise sanitária, identificando de forma assertiva as necessidades e demandas locais, prestando o serviço público de modo personalizado.
Necessário dizer que se busca um serviço público que efetivamente garanta os interesses públicos numa política jurídica democrática e acessível (ROSSI, 2003), sendo o Município o nível primário e mais importante de resposta à saúde pública.
No Brasil, os governos municipais foram precursores na adoção de isolamento social, recomendado pela OMS e apontado como boa prática capaz de conter a velocidade da disseminação do Covid-19 (GRIGOLETTO; MUNIZ, 2020, p. 365).
No espaço local se principia a implementação concreta do direito ao desenvolvimento. Nesses termos, cidades sustentáveis devem assumir responsabilidades globais pela paz, justiça, equidade, proteção ao clima e à biodiversidade; integrar a política de proteção climática nas políticas de energia, de transportes, de consumo, de resíduos, de agricultura e de florestas, e reforçar a cooperação regional, nacional e internacional entre cidades, desenvolvendo respostas locais para problemas globais – entre os quais se insere o enfrentamento à Covid-19 (GRIGOLETTO; MUNIZ, 2020, p. 362).
Desenvolver a autonomia municipal é desenvolver a própria prestação de serviço mais efetiva ao munícipe, ao cidadão, pela própria exigência constitucional, não podendo o Brasil se furtar a tais metas, sendo o direito ao desenvolvimento necessário para o alcance efetivo da própria dignidade humana – fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro, nos termos do artigo 1º, III, da Constituição Federal (GRIGOLETTO; MUNIZ, 2020).
Restou evidente com a pandemia vivenciada nos dias atuais, a incapacidade da União em resolver problemas sistêmicos que afetam as inúmeras regiões e localidades do país. Um país com proporções continentais como o Brasil reivindica ações públicas específicas em consonância com as demandas de cada localidade, o que somente pode ser feito mais eficazmente pelos poderes públicos estaduais e municipais (REIS; VITÓRIA, 2020).
No entanto, a posição dos entes federativos em relação à União não pode ser de dependência subordinada, e sim de forte autonomia, seja no âmbito de competências legislativas, seja no âmbito de competências materiais, o que somente poderia ser alcançado através de uma maior descentralização de poderes, não significando, porém, violar a soberania da União ou uma ameaça à forma federativa de Estado, pelo contrário, representaria uma revitalização do federalismo no país e um fortalecimento dos laços federativos, o que, em última análise, propiciaria maior eficiência na articulação de políticas públicas em geral e, especialmente, em situações de crise como a experimentada na crise sanitária mundial com o novo coronavírus (REIS; VITÓRIA, 2020).
Cabe ao Poder Público desenvolver-se para atender de modo mais efetivo os anseios sociais, apresentando-se a crise sanitária global como uma excelente oportunidade para esse desenvolvimento, melhorando e aprimorando o Estado Brasileiro.
Diante da calamidade em curso, Estados, DF e municípios têm atuado como importantes protagonistas na reação à pandemia, com o consequente surgimento de conflitos entre os mesmos, como visto, tendo o STF decidido nos casos postos à sua apreciação a favor da vida, da saúde pública, do federalismo e de maior autonomia aos Estados e municípios.
Como consequência, um primeiro prognóstico que talvez seja possível fazer acerca do Direito Constitucional pós Covid-19 (ou, mais precisamente, na nova normalidade que se seguirá à crise atual) é o de que possivelmente a produção normativa de Estados, Distrito Federal e Municípios se torne mais relevante e seja mais respeitada pelo STF (BARCELLOS, 2020).
Alguns autores argumentam que o STF decidiu de modo descentralizador, contrariando histórica jurisprudência, tão somente porque a posição que valorizava a vida e a saúde pública era a dos Estados e municípios que, se fosse o contrário, o STF teria mantido sua posição em defesa da centralização dos atos na União. Ainda que assim se afirme, é inegável a demonstração, durante o período pandêmico, da importância da atuação local e descentralizada e esta reflexão deve ser feita com relação ao federalismo do porvir.
Há quem sustente, como a constitucionalista Ana Paula de Barcellos (2020), que não é ainda possível saber se esse novo entendimento do STF acerca das competências concorrentes e comuns dos Estados, DF e Municípios irá extrapolar esse momento de crise para se transformar no novo padrão hermenêutico da Corte, estimulando assim a produção normativa desses entes. Mas se essa tendência se confirmar, será preciso aprofundar o conhecimento acerca das normas constitucionais que distribuem competências entre os entes e dos critérios para solucionar conflitos entre essas normas, bem como aprender a lidar com a realidade de uma federação menos centralizada e, por consequência, com um ambiente normativo menos uniforme nacionalmente e mais plural.
A atuação articulada entre os entes federativos se apresenta como o ideal, necessária ao sistema constitucional de repartição de competências e de distribuição de função entre os poderes, fazendo-se escolhas políticas compatíveis com a ciência, principalmente com observância das demandas sociais locais, mais próximas da população, com maior eficiência.
A redução da complexidade é para Luhmann a principal característica de um meio que busca o seu desenvolvimento. A busca pela ordem deve ser a pauta de um sistema social (TRINDADE, 2008, p. 17).
Uma crise federativa que descortina desigualdades sociais impõe um dever de desenvolvimento do Estado Social e capacidade do mesmo de reagir à solução de demandas novas e urgentes da população.
Há o anseio popular de redução da complexidade, de desburocratização. Não é do interesse do munícipe saber que ente federativo irá atuar, se União, Estado ou Município, o anseio é de que o faça, na maior qualidade e velocidade possíveis, a fim de responder às suas necessidades, cada vez maiores decorrentes do fortalecimento do Estado de Bem-Estar Social (Welfare State).
Afinal, a função das instituições políticas é a de dar respostas às demandas provenientes do ambiente social ou, segundo uma terminologia corrente, de converter as demandas em respostas (Bobbio, 2007, p.60).
Nesse sentido, SOARES (2016), ao analisar a Teoria dos Sistemas Sociais e o Direito (como integrante do sistema social), além de tópicos para o estudo do pensamento de Niklas Luhmann, admoesta que o sistema jurídico deve se propor a reduzir a complexidade do ambiente, absorvendo a contingência da intersubjetividade humana e garantindo a generalização congruente de expectativas comportamentais, a fim de fornecer uma imunização simbólica de expectativas contra outras possibilidades sociais de conduta humana (SOARES, 2016. p.20).
A invocação do princípio da solidariedade na condução da res pública e dos serviços públicos adjacentes nunca foi tão atual e necessária. Um dos principais legados decorrentes da pandemia deve ser a capacidade de inovar, dentro dos limites legais e orçamentários, para superação da crise, embora o terreno seja de incertezas de toda ordem e exija grande esforço, principalmente do Estado, em conduzir a transição para um novo padrão de normalidade, com questionamentos acerca do papel do Estado na condução de serviços públicos (LOBATO, 2020, p. 139).
Nas lições de Bernardi e França (2020), nem sempre o caos significa algo negativo, pode ser o caminho para a mudança.
Sem dúvida, uma das principais lições que a pandemia deixa para as esferas política e jurídica brasileiras tenha sido evidenciar a importância do federalismo para a desconcentração de poder, desconcentrando em esferas central, regional e local que acolha as diferenças e reafirmando os valores democráticos (MELO, 2020).
Não havendo uma participação cooperativa e compartilhada, dificilmente se consegue reverter as condições estruturais que impõem entraves ao desenvolvimento (GRIGOLETTO; MUNIZ, 2020).
Conforme prelecionam os autores Grigoletto e Muniz (2020), a responsabilidade de gestão sobre os interesses locais dos cidadãos, de inegável impacto reflexo nos interesses estadual e nacional, com a adoção da Agenda 2015-2030, passa a igualmente refletir no contexto global, alçando os municípios ao patamar de polos de desenvolvimento sustentável. O que, com a pandemia global do Covid-19, ganhou especial relevo dando protagonismo a essas entidades no seu enfrentamento.
Por conseguinte, o desenvolvimento sustentável, que impõe o estabelecimento de uma inter-relação virtuosa entre processos democráticos, desenvolvimento socioeconômico e respeito aos direitos humanos, para além da promoção à saúde e ao bem-estar, pressupõe a construção de instituições eficazes em todos os níveis (ODS-16). O enfoque que o desenvolvimento dá à responsabilidade institucional elucida que a autonomia municipal e judicialização constitucional da crise possibilitam material e conjunturalmente um movimento de afirmação de direitos humanos, mesmo que em meio a pandemia (GRIGOLETTO; MUNIZ, 2020).
O reconhecimento judicial da autonomia municipal no combate efetivo ao cenário pandêmico decorre do fortalecimento de processos democráticos e do desenvolvimento sustentável. Afinal, o não esvaziamento do direito ao desenvolvimento frente à Covid-19 implica em uma metodologia que atue localmente para efetivar o que foi pensado globalmente (GRIGOLETTO; MUNIZ, 2020).
Ainda que as decisões do STF no período da pandemia não signifiquem futuramente uma virada na jurisprudência da Corte acerca do federalismo e distribuição das competências e autonomia dos entes federativos, como os constitucionalistas esperam, faz-se necessária a reflexão e, sim, progredir para uma releitura do federalismo no país pós-pandêmico, atendendo às transformações sociais. Restou claro que Estados e municípios trabalham melhor quando consorciados, quando articulados na busca de solução das demandas sociais, bem como quando com maior autonomia para atender aos anseios dos cidadãos ali residentes.
Fortalecer a autonomia municipal é fortalecer o próprio federalismo e o fim constitucional. A Constituição Federal prevê, além da forma federativa de governo, muitos mecanismos de participação popular (além do voto, referendo, plebiscito, iniciativa popular, dentro outros), para que o governo esteja próximo ao cidadão e atento aos seus anseios. Uma gestão próxima do cidadão é o desejo constitucional, podendo ser aprimorada com um federalismo fortalecido, decorrente da desconcentração do poder.
Não há futuro que se possa prever integralmente, mas um mundo de incertezas. A única certeza é de que nada será como antes (JUNQUEIRA; PINTO, 2020) e, espera-se que, após a total excepcionalidade da pandemia do novo coronavírus, esta seja a oportunidade de aperfeiçoamento do Estado Social e da atuação mais eficiente dos entes federativos, mais fortalecidos e autônomos, resultando em melhor implementação dos direitos fundamentais, atendendo ao fim constitucional.
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[5] «Falta de oxigênio mata ao menos 24 pacientes em cidades do interior do Amazonas e do Pará - Saúde». Estadão. Consultado em 22 de janeiro de 2021.
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[7] Nota técnica da Universidade de Brasília – UNB. Disponível em: https://noticias.unb.br/117-pesquisa/ 4030-coronavirus-pesquisadores-da-unb-ufrj-e-usp-emitem-nota-tecnica. Acesso em 25 de abril de 2020.
[8] https://www.cnnbrasil.com.br/politica/justica-federal-proibe-estado-da-bahia-de-medir-temperatura-em-aeroportos/. Acessado em 24 de junho de 2022.
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[11] https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/salvador-vai-usar-vacinas-da-janssen-em-populacao-de-rua-e-por-idade/. Acesso em 22 de junho de 2022.
[12] https://atarde.com.br/bahia/bahiasalvador/paredao-na-pandemia-pode-render-prisao-de-ate-um-ano-diz-promotor-1126175. Acesso em 26 de junho de 2022.
[13] Mais informações em http://www.consorcionordeste-ne.com.br/o-consorcio/. Acesso em 26 de junho de 2022.
[14] https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2020/07/03/comite-cientifico-do-consorcio-nordeste-sugere-lockdown-em-salvador-feira-de-santana-itabuna-e-teixeira-de-freitas.ghtml. Acesso em 22 de junho de 2022.
[15] https://www.poder360.com.br/opiniao/um-exemplo-do-nordeste-nao-ao-negacionismo-da-ciencia-por-sergio-rezende/. Acesso em 22 de junho de 2022.
[16] https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2021/05/22/reuniao-entre-rui-costa-e-prefeitos-da-regiao-metropolitana-de-salvador-define-novas-restricoes-contra-a-covid-19-na-regiao.ghtml. Acesso em 22 de junho de 2022.
[17] https://consid.ba.gov.br/2020/03/19/consid-reune-municipios-do-oeste-da-bahia-para-se-unirem-ao-combate-do-coronavirus/. Acesso em 22 de junho de 2022.
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