Voz do Associado qui, 03 de setembro de 2020
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Por: Geórgia Teixeira Jezler Campello, ex-presidente da ANPM e procuradora do município de Salvador/BA, publicado no dia 01/09 pelo Conjur.

Em tempos nos quais renova-se, com pressa e fervor, o debate sobre uma reforma tributária sobre o consumo no Brasil, objeto das PECs 45/2019 e 110/2019, não custa lembrar que o tema não pode ser enfrentado com base em premissas puramente econômicas.

Toda mudança de governo acaba por encetar uma transformação fiscal. Imposto não é questão puramente técnica, mas político-filosófica, a escolha de como serão financiados os direitos dos cidadãos.

Nessa vertente, é preciso ter em conta alguns aspectos fundamentais que se prestam à atual discussão do tema, quais sejam: primeiro, que a tributação tem um papel relevante na distribuição de riquezas na sociedade, pois representa o instrumento de financiamento dos direitos fundamentais; é o que se paga para a realização dos valores da igualdade e da liberdade.

Segundo, não se deve demonizar a política, ou incentivar uma visão pejorativa do Estado e do poder, porque isso afasta, como bem observou Merquior [1], tanto as massas quanto as elites, de uma apreciação equilibrada do amplo potencial de utilização justa e beneficente desse mesmo poder. O poder é uma necessidade social.

Somos seres políticos inseridos numa sociedade, cujos acordos possibilitam vivermos, e onde o Estado é fundamental para garantir os nossos direitos e a paz social. O debate, portanto, deve ser participativo e levar em conta a necessidade do enfrentamento de questões de justiça; a tributação é a escolha prima.

Justiça é igualdade, mas apenas para aqueles iguais entre si, em conformidade com o clássico ensinamento de Aristóteles. Julgam mal aqueles que omitem a qualificação das pessoas a que elas se aplicam, pois julgam tomando-se a si mesmos e, quando se julga em causa própria, seguramente se julga mal [2].

Johnn Rawls, bem mais adiante, reconheceu que a tributação pode "corrigir gradual e continuamente a distribuição de riqueza e impedir a concentração de poder que prejudiquem o valor equitativo da liberdade política e da igualdade equitativa de oportunidade" [3], pois quando a desigualdade de riqueza atinge certo limite, as próprias instituições e as mesmas oportunidades de educação e cultura para pessoas de motivação semelhante são ameaçadas.

Nem mesmo o liberalismo econômico de Adam Smith é um princípio dogmático não intervencionista, como faz crer a vulgarização da ideologia liberal, pois para ele o Estado tem o seu papel na seara econômica, qual seja o de promover a defesa externa, a justiça, as obras públicas e a educação, que estão vinculadas à proteção da propriedade e riqueza dos capitalistas, dando condições à expansão do comércio e à formação da força de trabalho. No dever de educação, Smith preocupa-se com que o Estado ofereça formação moral aos cidadãos, ampliando seus ideais além das exigências imediatas do mercado de trabalho [4].

A alta carga tributária no Brasil não é novidade, o que tem relação com as amplas atividades do Estado. Os tributos devem ser compreendidos como componentes desse sistema. O ponto crítico, entretanto, é a sua não concentração em tributos diretos e progressivos, o que acaba por vulnerar a justiça tributária.

Segundo levantamento lançado pela Receita Federal em 2020, com relação à carga tributária de 2018, constata-se que, quando se compara a tributação por base de incidência, observa-se que para a base renda o Brasil tributa menos do que a média dos países da OCDE, enquanto que para a base bens e serviços tributa, em média, mais [5].

Como se vê, a base da arrecadação no Brasil é centrada no consumo. Não obstante ser uma escolha eficiente no aspecto da arrecadação, ela promove um aumento da desigualdade, dado o caráter regressivo desse tipo de tributação.

Contudo, ao invés de uma redução de impostos incidentes sobre o consumo, dois projetos em trâmite no Congresso Nacional (PEC 45/2019 e PEC 110/2019), fundamentados na unificação desses tributos, prevêem a convivência do novo imposto que instituem, sobre bens e serviços, com os tributos vigentes (ISS, ICMS, PIS, Cofins, IPI, IOF, CSLL, Pasep, Salário-Educação, Cide-Combustíveis), por muitos anos, aumentando obviamente a carga tributária e o custo de conformidade.

Outra vertente das mencionadas reformas unificadoras é que a conjunção proposta solapa o pacto federativo, violando a autonomia financeira e administrativa dos entes, especialmente dos municípios. Autonomia esta que é uma "garantia institucional produzida constitucionalmente pelo sistema federativo em proveito das comunidades" [6].

Alterações de competência tributária não podem ser realizadas diante da Constituição rígida que possuímos. Diferentemente, modificações relativas a obrigações acessórias, redução da carga tributária sobre o consumo e/ou o seu aprimoramento, ou mesmo o aumento da tributação da renda podem ser realizadas, inclusive em nível infraconstitucional.

O aperfeiçoamento da tributação do consumo pode ser implementado sem violar o pacto federativo e com o intuito realmente simplificador, a exemplo da junção dos atuais 27 ICMS num ICMS Nacional e dos 5.570 ISSs num ISS Nacional, evitando a guerra fiscal; com o melhoramento do IPI como imposto seletivo, com a unificação de PIS e Cofins numa Contribuição sobre o Valor Adicionado (CVA) federal e com a previsão da desoneração sobre a folha de pagamento, nos termos propostos pelo "Simplifica Já" [7].

Há focos reveladores dos problemas da política fiscal no Brasil como a isenção do Imposto de Renda dos lucros e dividendos distribuídos aos acionistas de empresas, o que representa que parcela da população que mais concentra renda é a menos tributada.

Essa referência adotada no país deita origem num paradigma em voga nos anos de 1980 e de 1990 fixado na tese de que, para a não introdução de distorções no sistema econômico, a política tributária deveria se abster de objetivos distributivos, transferindo-se ao gasto público essa missão da política fiscal. Contudo, esse modelo até hoje adotado no Brasil, requer revisão diante do esgotamento do gasto redistributivo [8].

O desenvolvimento do Estado fiscal ao longo do século XX corresponde em essência à constituição de um estado social, como destaca Piketty [9], evidenciando que a progressividade fiscal no topo da hierarquia das rendas e das heranças é parte dos motivos que contribuíram para uma menor concentração patrimonial de renda no período pós-guerras mundiais (1914-1945) [10], o que se afina, aliás, com o atual contexto pós-pandêmico.

Nos Estados Unidos e na Inglaterra, nos anos de 1940, as alíquotas máximas de IR foram altíssimas, chegando a ultrapassar 90%, o que ensejou uma virada conservadora sob o paradigma de que a progressividade do sistema tributário era um mal a ser eliminado por penalizar aqueles mais capazes e obstaculizar a prosperidade.

Essa reorientação se repetiu no mundo, em diversos países. O Brasil, a partir da década de 1990, passou a aplicar três faixas de tributação com alíquota máxima de 27,5% e isenção de dividendos, depois de possuir 12 faixas e alíquota máxima de pelo menos 50% durante quatro décadas [11].

Desde então, não houve no país uma preocupação com a redistribuição pela ponta da tributação.

Os tributos são necessários, pois não há propriedade ou mercado sem governo, assim como não há governo sem tributos [12]. Os tributos financiam um sistema jurídico garantidor dos direitos individuais e sociais. Sem impostos nos tornaríamos lobos hobbesianos [13].

Entretanto, qualquer tentativa de reforma tributária não pode desconsiderar a justiça e nem se afastar do modelo federativo arquitetado constitucionalmente, sobretudo sob a alegação utilitarista da ultracomplexidade do sistema tributário nacional, até porque as mudanças previstas nas PECs referidas gerariam novas distorções, complexidades e possíveis inconstitucionalidades.

O problema é que ainda não houve, no Brasil, nenhuma política efetiva de utilização do potencial redistributivo por meio da tributação, tributando-se verdadeiramente em escala superior aqueles com um potencial contributivo maior. Esse, sim, é um imperativo civilizatório. Não há mágica se quisermos ser menos desiguais.

 

[1] MERQUIOR, José Guilherme. O argumento liberal. São Paulo: É Realizações, 2019, p. 96.

[2] ARISTÓTELES. A Política. Brasília: UNB, 1985, Livro II, Cap. V,1280b.

[3] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008, pp345-346.

[4] SMITH, Adam. Riqueza das Nações. v. II, livro, V. São Paulo: Martins Fontes, 2003 e CORAZZA, Gentil. Estado e Teoria Econômica: de Quesnay e Keynes. Dissertação de Mestrado em Economia apresentado no Instituto de Pesquisas Econômicas (IEPE), Porto Alegre: 1984.

[5] Fonte: Receita Federal. Vide: https://receita.economia.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/ctb-2018-publicacao-v5.pdf/view.

[6] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 353.

[7] https://simplificaja.org.br/.

[8] GOBETTI, Sérgio Wulff; ORAIR, Rodrigo Otávio. Tributação e distribuição de rendas no Brasil: novas evidências a partir das declarações tributárias das pessoas físicas. Working paper número 136. Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo (IPC-IG). Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Brasília: fevereiro de 2016.

[9] PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. TRÁS: Monica Baumgarten de Bolle. Intrínseca. Rio de Janeiro: 2014, pp. 466, 482-483.

[10] PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. TRÁS: Monica Baumgarten de Bolle. Intrínseca. Rio de Janeiro: 2014, p. 483.

[11] GOBETTI, Sérgio Wulff; ORAIR, Rodrigo Otávio. Tributação e distribuição de rendas no Brasil: novas evidências a partir das declarações tributárias das pessoas físicas. Working paper número 136. Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo (IPC-IG). Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Brasília: fevereiro de 2016, p. 4.

[12] MURPHY, Liam e NAGEL, Thomas. O Mito da Propriedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

[13] Vide HOBBES, Thomas . Leviatã. Os Pensadores, vol. XIV. 1a Ed. São Paulo: Abril, 1974.

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