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Por: Ravi Peixoto,
Procurador do Município do Recife, doutor em Direito Processual pela Uerj, mestre em Direito pela UFPE. Publicado pelo Conjur no dia7 de março.

Historicamente, um tema que sempre suscitou problemas em relação à litigância que envolve a Fazenda Pública são os juros e correção monetária. Várias eram as discussões, tais como o período em que incide um ou o outro, em que ambos incidem. Por vezes o grande problema era a taxa de juros aplicável ou de correção monetária.

Vários precedentes obrigatórios objetivaram resolver esses problemas, tais como o tema 905 do STJ e as decisões do STF no tema 810 da repercussão geral e nas ADINs 4.357 e 4.425. Em relação aos precatórios, chegamos a ter a edição da Súmula Vinculante nº 17 que objetivava resolver em quais períodos incidia a correção monetária e em quais também haveria a incidência dos juros [1]. Até hoje, todas essas temáticas reaparecem e divergências ocorrem em decisões judiciais.

Até que veio a Emenda Constitucional n. 113/2021 que, em seu artigo 3º, previu o seguinte:

"Artigo 3º Nas discussões e nas condenações que envolvam a Fazenda Pública, independentemente de sua natureza e para fins de atualização monetária, de remuneração do capital e de compensação da mora, inclusive do precatório, haverá a incidência, uma única vez, até o efetivo pagamento, do índice da taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), acumulado mensalmente".

Em resumo, o texto normativo impôs que a Selic passasse a ser utilizada como taxa substitutiva da correção monetária e juros moratórios dos processos que envolvam a Fazenda Pública. Não importa se em dado momento do processo incide correção monetária de forma isolada ou em conjunto com os juros. Incidirá a Selic, que substitui ambos. Não importa a natureza do crédito, que tantas discussões judiciais gerou, como se verifica no tema 905 do STJ: incidirá a Selic. Essa unificação facilitará bastante o pagamento dos precatórios, por tornar irrelevante as discussões dos momentos em que incide apenas correção monetária ou também juros moratórios.

Um adendo é importante: a Selic já era utilizada para as causas tributárias, a diferença é que agora foi estendida para todas e quaisquer causas que envolvam a Fazenda Pública.

A Selic, tal como prevista na EC nº 113/202 deve ser a única taxa a incidir nas condenações que envolvam a Fazenda Pública, excluindo quaisquer outras que poderiam em tese com ela ser cumuladas. É uma taxa que pode variar mês a mês.

A Emenda Constitucional nº 113/2021 entrou em vigor na data de sua publicação (9/12/2021), tal como previsto pelo seu artigo 7º. Desse momento em diante, a única taxa a incidir nas condenações que envolvam a Fazenda Pública será a taxa Selic, com uma provável diminuição de todas as discussões judiciais que envolvem a questão.

Ocorre que ainda existem diversos temas que precisam de um breve esclarecimento, em especial as questões de direito intertemporal. Para tanto, algumas premissas devem ser estabelecidas:

No Brasil, historicamente aplica-se a regra da irretroatividade das leis [2]. Atualmente, a Constituição de 1988 estabelece em seu art. 5º, XXXVI, que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada". Texto normativo bem similar já constava do artigo 6º da LINDB.  As emendas constitucionais seguem essa mesma regra.

A Emenda Constitucional nº 113/2021, ao alterar o regime jurídicos dos juros e da correção monetária nos casos que envolvem a Fazenda Pública não é exceção à regra. Em outros termos, a taxa Selic não pode ter eficácia retroativa, incidindo em período anterior a 09 de dezembro de 2021.

Uma outra premissa importante é a de compreender que, tanto os juros moratórios, como a correção monetária em relação aos créditos nos quais incidem, consistem em relações de trato sucessivo. Ou seja, elas incidem mês a mês e podem ter seus índices alterados no decorrer dessa relação [3]. Não se trata de nenhuma novidade, mas de tema corriqueiro no direito brasileiro.

A título de exemplo, é possível trazer uma das teses relativas aos juros de mora e correção monetária fixados pelo STJ no tema 905:

"As condenações judiciais de natureza administrativa em geral, sujeitam-se aos seguintes encargos: a) até dezembro/2002: juros de mora de 0,5% ao mês; correção monetária de acordo com os índices previstos no Manual de Cálculos da Justiça Federal, com destaque para a incidência do IPCA-E a partir de janeiro/2001; b) no período posterior à vigência do CC/2002 e anterior à vigência da Lei 11.960/2009: juros de mora correspondentes à taxa Selic, vedada a cumulação com qualquer outro índice; c) período posterior à vigência da Lei 11.960/2009: juros de mora segundo o índice de remuneração da caderneta de poupança; correção monetária com base no IPCA-E".

É perceptível que, com as diferentes alterações da legislação, juros e correção incidem mês a mês, com a contínua mora e a demora para o pagamento do crédito. Imagine-se uma condenação contra a Fazenda Pública originada em 2001 e paga em 2010: até dezembro de 2002, incidirá juros de mora de 0,5% ao mês; iniciada a vigência do CC/2002, haverá aplicação da taxa Selic e, após a entrada em vigor da Lei 11.960/2009, o índice de remuneração da caderneta de poupança.

Com a EC nº 113/2021 não será diferente, incidindo a partir do início de sua vigência. Estabelecidas as premissas da irretroatividade e da relação de trato sucessivos dos juros e correção monetária com os respectivos créditos, vamos aos possíveis encaminhamentos:

1) Os créditos que envolvam a Fazenda Pública, independentemente de qual era a taxa aplicável até 8 de dezembro de 2021, terão sua taxa alterada para incidência da Selic a partir de 9 de dezembro de 2021. A aplicação da taxa Selic não pode ocorrer para períodos anteriores a 9 de dezembro de 2021, dada a vedação da retroatividade [4].

Melhor explicando: se no ano de 2022 a Fazenda Pública for condenada a pagar dívida relativa ao ano de 2020, os juros e a correção monetária serão aplicados da seguinte forma: correção monetária pelo IPCA-E e juros moratórios com base na remuneração da caderneta de poupança até 08 de dezembro de 2021. A partir de 09 de dezembro de 2021, a atualização do valor devido deve ser realizada pela taxa Selic para todos os créditos que ainda estiverem em mora.

2) Para as decisões que transitaram em julgado até 8 de dezembro de 2021, ainda assim, poderá incidir a nova taxa.

Aqui é preciso fazer uma distinção.

Consoante estabelecido pelo STJ no tema 905, "não obstante os índices estabelecidos para atualização monetária e compensação da mora, de acordo com a natureza da condenação imposta à Fazenda Pública, cumpre ressalvar eventual coisa julgada que tenha determinado a aplicação de índices diversos, cuja constitucionalidade/legalidade há de ser aferida no caso concreto". Em outros termos, se a decisão transitou em julgado afirmando que incide juros de 0,5% ao mês, mas o correto era o índice da caderneta de poupança, não pode ocorrer alteração dessa decisão por força da coisa julgada. Note-se: a decisão transitou em julgado violando o precedente do STJ, no tema acima mencionado.

A situação, no caso da nova Selic é diferente. Não se pretende alterar o conteúdo da coisa julgada, mas simplesmente há incidência de uma nova taxa no decorrer do tempo. Como mencionado acima, tem-se uma relação de trato sucessivo e, havendo alteração do direito, ele deve ser aplicado imediatamente. A decisão não estava incorreta: ela seguiu o regime jurídico do seu período e precisa ser atualizada pela nova taxa, alterada após o trânsito em julgado.

Há autorização no ordenamento para tal interpretação no artigo 505, I, do CPC, que permite a revisão do que foi estatuído na sentença, caso haja modificação no estado de direito em relações de trato continuado – como é exatamente o caso da incidência da Selic. Houve alteração do estado de direito, que consiste na mudança da taxa que incidirá a título de juros e correção monetária.

A título de reforço dessa conclusão, afirma a própria EC nº 113/2021, em seu artigo 5º, que "as alterações relativas ao regime de pagamento dos precatórios aplicam-se a todos os requisitórios já expedidos". Por mais que seu objetivo seja o de regular outras alterações da própria EC no regime de precatórios, ela também atua em relação à incidência da Selic, que passa a incidir em todos os precatórios. Recorde-se que só há precatório após o trânsito em julgado e ele seria irrelevante para impedir a nova taxa.

3) Em relação às decisões proferidas a partir de 08 de dezembro de 2021 com o trânsito em julgado, alguns problemas podem ocorrer. Isso porque, a partir de 09 de dezembro, como mencionado, já estaria incidindo a Selic. No entanto, se a decisão transitar em julgado afirmando, por exemplo, que deve incidir o IPCA-E a título de correção monetária e o índice da caderneta de poupança a título de juros moratórios no período em que já se encontra vigente a EC nº 113/2021, a decisão é inconstitucional.

A decisão é inconstitucional porque determina a aplicação de índice já revogado pela EC 113/2021, para o período a partir de 09 de dezembro de 2021. Ocorre, nessa situação, o problema destacado pelo STJ no tema 905: o índice fixado pela decisão é incorreto, pois desrespeita a lei em vigor no momento de sua prolação, mas, ainda assim, houve trânsito em julgado. Durante o cumprimento de sentença, o juiz não poderá alterá-lo, por força da coisa julgada. Para tanto, haverá necessidade de ajuizamento de ação rescisória, tendo por base a violação de norma jurídica (artigo 966, V, CPC), que seria exatamente o artigo 3º da EC 113/2021.

4) Em relação às decisões proferidas após 09 de dezembro de 2021, há apenas uma diretriz a ser seguida. Como já apontado, dada a relação de trato sucessivo com o crédito, passa a incidir a taxa Selic e tal situação deve ser fixada na sentença.

Utilizando o mesmo exemplo do tema 905 do STJ, para um crédito contra a Fazenda Pública surgido em 2015, uma decisão proferida em 15 de dezembro de 2021 deve estabelecer que deve incidir juros de mora segundo o índice de remuneração da caderneta de poupança, com correção monetária com base no IPCA-E desde o surgimento do crédito e, a partir de 09 de dezembro de 2021, substituindo os índices de correção e de juros moratórios anteriores, passa a incidir a taxa Selic.

Em um exemplo mais concreto, com o cuidado em relação ao direito intertemporal, já há decisões aplicando esse raciocínio, como a sentença proferido no processo 0032224-20.2020.8.25.0001, pela 18ª Vara Cível de Aracaju, em 20 de fevereiro de 2022:

 para a solução do caso dos autos, considerando que se trata de demanda com Condenações judiciais de natureza administrativa em geral, há que se aplicar, quanto a correção monetária e aos juros moratórios os seguintes encargos: correção monetária pelo INPC, desde o inadimplemento, nos termos da cláusula 4.9 do contrato administrativo e, quanto aos juros, considerando que o inadimplemento se deu no período posterior à vigência da Lei 11.960/2009, deve se o índice de remuneração da caderneta de poupança; e, ainda, no período posterior à vigência da EC n.º 113/2021 (09/12/2021), a atualização monetária (correção e juros moratórios) será pela taxa Selic.

A título de conclusão, a inserção da Selic como taxa única tende a simplificar consideravelmente as discussões que envolvem juros moratórios e correção monetária nos casos que envolvem a Fazenda Pública. No entanto, como muitas vezes ocorre, e ainda mais em relações de trato sucessivo, a alteração das taxas antes incidentes tende a trazer alguns problemas de direito intertemporal, que precisam de uma maior atenção, para não haver a necessidade de novas discussões judiciais sobre a temática.

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