Voz do Associado seg, 27 de abril de 2020
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Por: Eduardo de Souza Floriano, diretor de Eventos Científicos da ANPM e procurador do Município da Juiz de Fora/MG.

  1. INTRODUÇÃO

Temos observado, em alguns municípios Brasil a fora, a concessão de benefícios fiscais amplos e indiscriminados sob a justificativa de que os contribuintes dos impostos municipais (em especial IPTU e ISSQN) precisam de um alívio econômico neste momento de crise.

Em que pese a justificativa possa parecer adequada ou justa sob o prisma da necessidade de respostas rápidas à população, esta justificativa encontra entraves quando ponderada a situação de forma global e, em especial, quando avaliado à luz da finalidade do ato administrativo e o recente julgamento da ADI 6357MC pelo Ministro Alexandre de Moreas.

O presente estudo não pretende ser conclusivo sobre o tema mas apontar caminhos pouco desbravados ou comentados sobre a definicação das políticas de benefícios fiscais implementadas de forma quase imediatas ao anúncio da crise.

Em que pese o momento de crise e a necessidade de repostas rápidas aos anseios da população, a premissa principal deste estudo é apontar que eventual edição de ato normativo visando a concessão de benefícios fiscais pelos entes federados não afasta o dever de observância das formalidades essenciais, ainda que com a adoção de formas simples ou céleres, mas suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos princípios da probidade, transparência e publicidade.

Neste sentido, é importante que toda e qualquer política a ser implementada pelos entes federativos seja acompanhada pelo conjunto de documentos, requerimentos, atas de reunião, discussões prévias, pareceres e informações instrutórias necessárias à decisão do gestor público.

O atual cenário de anormalidade não pode ser visto como uma carta branca para a adoção de medidas sem a observância de formalidades mínimas, dados confiáveis, critérios técnicos bem como de razoabilidade e proporcionalidade.

O caminho mais fácil nem sempre é o melhor caminho para se atingir os legitimos interesses da sociedade. Embora penoso, é necessário amplo estudo do atual quadro que vivenciamos. Isto porque ao Município, ao fim e ao cabo, compete o atendimento direto e mais próximo ao cidadão. Mas, em que pese essa grande responsabilidade, o Município é o ente federativo com menor parcela do bolo tributário e grandes entraves para o crescimento ou incremento de receitas próprias ficando, salvo raras exceções, a mercê das transferências constitucionais. (Fonte: http://temas.folha.uol.com.br/remf/ranking-de-eficiencia-dos-municipios-folha/70-dos-municipios-dependem-em-mais-de-80-de-verbas-externas.shtml).

Assim, a concessão de benefícios fiscais amplos e irrestritos, que acarretam renúncia ou postergação de recebimento de receita própria em tempos de aumento significativo de despesas, em especial na área da saúde, devem ser profundamente debatidos e avaliados.

  1. DESENVOLVIMENTO

Como é curial, o ato administrativo possui requisitos (elementos ou pressupostos) de validade, quais sejam: competência, finalidade, forma, objeto e motivo[1]. Para o caso específico deste estudo, avaliar-se-ão a finalidade e o motivo.

A Finalidade é o resultado que a Administração deve alcançar com a prática do ato. É aquilo que se pretende com o ato administrativo.

O Motivo, por sua vez, consiste na situação de fato (circunstancias, situações, acontecimentos, que levam a Administração a praticar o ato) e de direito (conjunto normativo) que gera a necessidade da Administração em praticar o ato administrativo.

Feitas essas considerações iniciais, é importante destacar que o Presidente da República, em Medida Cautelar no Bojo da ADI 6357 solicitou ao STF a não aplicação, neste momento de severa crise, de diversos dispositivos da LRF que poderiam, na visão da União, impedir ou dificultar a resposta mais eficaz à grave crise que vivenciamos. A medida foi deferida e sua aplicação foi extendida aos Estados Membros e Municípios.

O dispositivo da decisão monocrática do Ministro do STF Alexandre de Moraes foi assim relatada:

Diante do exposto, CONCEDO A MEDIDA CAUTELAR na presente ação direta de inconstitucionalidade, ad referendum do Plenário desta SUPREMA CORTE, com base no art. 21, V, do RISTF, para CONCEDER INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO FEDERAL, aos artigos 14, 16, 17 e 24 da Lei de Responsabilidade Fiscal e 114, caput, in fine e § 14, da Lei de Diretrizes Orçamentárias/2020, para, durante a emergência em Saúde Pública de importância nacional e o estado de calamidade pública decorrente de COVID-19, afastar a exigência de demonstração de adequação e compensação orçamentárias em relação à criação/expansão de programas públicos destinados ao enfrentamento do contexto de calamidade gerado pela disseminação de COVID-19.

 

Ressalto que, a presente MEDIDA CAUTELAR se aplica a todos os entes federativos que, nos termos constitucionais e legais, tenham decretado estado de calamidade pública decorrente da pandemia de COVID-19.

 

Intime-se com urgência.

Publique-se.

Brasília, 29 de março de 2020.

Observa-se, com clareza que o Ministro Alexandre de Moraes:

1) CONCEDEU INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO FEDERAL, aos artigos 14, 16, 17 e 24 da Lei de Responsabilidade Fiscal e 114, caput, in fine e § 14, da Lei de Diretrizes Orçamentárias/2020 (da União, autora da ação);

2) AFASTOU  "exigência de demonstração de adequação e compensação orçamentárias em relação à criação/expansão de programas públicos destinados ao enfrentamento do contexto de calamidade gerado pela disseminação de COVID-19".

Nota-se que o dispositivo da decisão relacionou o “afrouxamento” das regras da Lei de Responsabilidade Fiscal - LRF relacionada a “...criação/expansão de programas públicos...”, o que aponta um viés majoritariamente PROPOSITIVO na atuação Estatal, isto é, afasta-se a aplicação de determinados dispositivos visando retirar dos entes federativos diversas amarras previstas na LRF, para que a União, Estados e Municipios possam efetuar gastos com políticas públicas necessárias para enfrentamento da crise. A decisão não impede, contudo, outras ações, como a concessão de benefícios fiscais, que são citadas no corpo da decisão, já que desta ação pode decorrer o efeito desejado de melhoria da situação do país.

Importante destacar o que se pode entender como o núcleo do pensamento do Ministro Alexandre de Moraes durante o julgamento da Medida Cautelar na da ADI 6357:

"O excepcional afastamento da incidência dos artigos 14, 16, 17 e 24 da LRF e 114, caput, in fine, e § 14, da LDO/2020, durante o estado de calamidade pública e para fins exclusivos de combate integral da pandemia de COVID-19, não conflita com a prudência fiscal e o equilíbrio orçamentário intertemporal consagrados pela LRF, pois não serão realizados gastos orçamentários baseados em propostas legislativas indefinidas, caracterizadas pelo oportunismo político,  inconsequência, desaviso ou improviso nas Finanças Públicas; mas sim, gastos orçamentários destinados à proteção da vida, saúde e da própria subsistência dos brasileiros afetados por essa gravíssima situação; direitos fundamentais consagrados constitucionalmente e merecedores de efetiva e concreta proteção."

O cerne do pensamento do Ministro Alexandre de Moraes, como visto, é a adoção de medidas que garantam os dirietos fundamentais da população brasileira.

A União, como definidora das políticas macro-econômicas, da política monetária e, ainda, como definidora das relações de trabalho, vem apresentando inúmeras ações[2] visando contornar essa grave crise. Estados, de forma complementar, também vêm tomando diversas ações visando o enfrentamento da crise.

Os municípios, por sua vez, atuam mais pontualmente na gestão da crise, atendendo aquele cidadão que, mesmo diante o conjunto de ações coordenadas tomadas pelo Governo Federal e pelos Governos Estaduais, ainda necessita de  benefícios adicionais (de qualquer espécie) “destinados à proteção da vida, saúde e da própria subsistência dos brasileiros afetados por essa gravíssima situação”. Esta subsidiariedade decorre não só da baixa capacidade do município em lidar com situações extremas que afetam a economia nacional como um todo, mas da própria incapacidade de gestão da política econômica. Ao município, como já foi dito, compete, prioritariamente, o atendimento direto ao cidadão, em especial nesta crise, na área da saúde.

A realidade tem nos mostrado, contudo, que muitos prefeitos são diariamente cobrados pela população, que vê postos de trabalhos serem diariamente extintos, e pelo empresariado local a atuar não só na crise de saúde, mas também na crise econômica decorrente daquela primeira. Por serem os mais próximos aos cidadãos e, ainda, por serem tidos como responsáveis pelo fechamento ou restrição da atividade econômica, muitos prefeitos estão adotando políticas fiscais (concessão de benefícios ou postergação de recebimentos de impostos) visando uma tentativa de frear ou arrefecer a crise econômica que bate à nossa porta.

Contudo, o gestor municipal deve ter em mente, prioritariamente, a concentração de esforços para atingir o interesse público (finalidade) de forma mais eficaz e adequada ao seu papel dentro da federação brasileira. O Município deve, conforme dispõe o núcleo da decisão do ministro Alexandre de Moraes, focar seus recursos na realização de "GASTOS ORÇAMENTÁRIOS DESTINADOS À PROTEÇÃO À VIDA, À SAÚDE e À PRÓPRIA SUBSISTÊNCIA DOS BRASILEIROS AFETADOS".

Muitos Municípios adotaram como primeira linha de atuação a concessão de benefícios fiscais amplos e irrestritos a todos os contribuintes, mesmo antes de conseguir avaliar os verdadeiros afetados economicamente pela crise, bem como antes de ter ciência sobre a  profundidade da crise de saúde que assola o país. Decidiram, precocemente, abrir mão de receitas públicas que poderiam ser vitais para a prestação adequada das políticas de saúde no Município.

Ante a velocidade da tomada de decisão dos gestores municipais, ainda no mês de março e mesmo antes da avaliação do impacto dessa decisão nas contas públicas e da implementação ainda gradativa das medidas emergenciais no âmbito federal e estadual, fica evidente que tais medidas, salvo raras exceções, não se basearam em estudos técnicos e avaliações de impacto orçamentário-financeiro, nem mesmo em estudos sobre as verdadeiras demandas que o município enfrentará na área de saúde. Muitos prefeitos, em verdade, contam que esses benefícios concedidos de forma indiscriminada, como reposta aos anseios da população, poderão ser compensados com uma futura ajuda da União e do Estado para superar a crise. Abrem mão da receita própria agora na espera de uma ajuda que não sabem quando nem como virá.

Ao suspender o pagamento dos impostos de forma ampla geral e indiscriminada, os Municípios terão, por óbvio, grande perda de arrecadação neste momento agudo de crise e, consequentemente, menor capacidade de arcar com as crescentes despesas inerentes à Pandemia, em especial na área da saúde.

Ao contrário de abrir mão de receitas de forma indiscriminada, (mesmo de contribuintes pouco afetados pela crise) deveria o gestor municipal preocupar-se, prioritariamente, com a adoção de medidas efetivas e propositivas visando a proteção à vida, à saúde e à subsistência dos brasileiros afetados. Dentre as condutas, podemos citar:

  1. Para enfrentamento da emergência em Saúde Pública:

1.1. Aumento de leitos de UTI da rede pública;

1.2. Contratação de profissionais de saúde em caráter temporário e emergencial;

1.3. Aquisição de insumos e medicamentos específicos para o tratamento das moléstias causadas pelo CORONAVÍRUS;

1.4. Aquisição de equipamentos de proteção individual aos profissionais de saúde;

1.5. Treinamento das equipes de profissionais de saúde; entre outros

  1. Para enfrentamento dos efeitos sociais e econômicos decorrentes da paralisação da economia em âmbito nacional:

2.1. Aumento de concessão de benefícios sociais diversos, após identificação dos mais necessitados e afetados pela crise;

2.2. Aumento da prestação de serviços públicos essenciais;

2.3. Trabalho de identificação, análise e avaliação das pessoas e empresas afetadas pela crise social e econômica e consequente determinação da melhor forma de auxílio;

2.4. Melhoria e racionalização do gasto público mediante medidas de redução de despesas não essenciais, entre outros.

Veja que a finalidade precípua do gestor Municipal deve ser: realizar “gastos orçamentários destinados à proteção à vida, à saúde e à subsistência dos brasileiros afetados”. A ação Estatal se justificará (interesse público) após identificação, análise e avaliação das pessoas (físicas e jurídicas) mais afetadas pela crise de saúde, social e econômica e consequente determinação da melhor forma de auxílio a estas pessoas.

É certo que toda a população encontra-se afetada, em diferentes intensidades, pela crise, mas o Estado deve agir com seletividade, a fim de que seus escassos recursos sejam destinados aos cidadãos mais afetados que se encontram em situação de risco social, e não a todos os cidadãos indistintamente. Auxiliar a todos indistintamente impede uma ação efetiva a quem verdadeiramente precisa.

Assim, observa-se que a proposta de concessão de benefício geral, amplo e indiscriminado a toda a população, sem a realização de amplo estudo técnico e em detrimento às ações propositivas exemplificativamente descritas acima, não atende ao requisito da finalidade do ato administrativo.

Ressalto que tem-se apontado como mais efetivo para o momento o incremento das políticas estatais que tenham efeito concreto sobre os brasileiros afetados (pessoas com risco à existência digna) pela crise, em especial a concessão de benefícios sociais (que pode ser efetiva entrega de dinheiro ou bens materiais) aos desempregados, trabalhadores informais, população de rua, e demais cidadãos mais severamente afetados pela crise econômica (fonte: http://anesp.org.br/todas-as-noticias/2020/3/26/pases-reagem-crise-da-covid-19-com-mais-polticas-pblicas-veja-medidas), não se vislumbrando a suspensão ampla e irrestrita de pagamento de impostos e parcelamentos por toda a sociedade como meio mais eficaz para a solução do problema posto.

Por certo, não se discute a necessidade de o Município, em alguns momentos,  agir célere e preventivamente, especialmente em casos de calamidades como a que enfrentamos. Mas certamente essa atuação preventiva é ligada ao atendimento de demandas URGENTES e VITAIS, o que não é o caso da concessão ampla e indiscriminada de benefício fiscal, que não age IMEDIATAMENTE sobre os mais afetados.

Não se discute aqui a eficácia de benefícios tributários específicos a determinados seguimentos, que pode, sim, auxiliar a população vulnerável neste momento. A crítica refere-se à concessão à toda a população, independentemente do grau que cada pessoa tenha sido afetada pela crise.

Não é demais ressaltar que, até mesmo na hipótese do cidadão estar privado de condições econômicas e caso tenha que optar pelo pagamento do imposto ou da aquisição de bens indispensáveis para a sua subsistência, por certo ele deixará de pagar o imposto, calcado em seu instinto básico de sobrevivência. O não pagamento do imposto gerará CONSEQUÊNCIAS as quais ele lidará em momento futuro. Neste ponto, contudo, o Estado poderá agir, perdoando, por exemplo, os consectários legais do inadimplemento (anistia), ou mesmo o imposto em si (remissão) como medida de JUSTIÇA TRIBUTÁRIA E SOCIAL. Mas note-se que esta é uma análise a posteriori, baseada em dados concretos da real extensão do dano à sociedade.

Por fim, não é demais observar que o orçamento é uma operação de resultado ZERO (receitas – despesa = zero). A diminuição de receita de um lado gera a não realização das ações e políticas públicas do outro lado (despesa). Assim, optar pela concessão de beneficios não apenas aos cidadãos ou empresas mais afetas pela crise, mas de forma apla e indiscriminada, ainda mais em um contexto de crise, deve ser um ato de extrema e cuidadosa avaliação[3], já que as depesas neste momento só tendem a aumentar.

3 - CONCLUSÃO

Como visto, este estudo aponta pela impropriedade da concessão ampla e irrestrita de benefícios fiscais tais como suspensão do pagamento de tributos pelos Munícipes, ante a generalidade do benefício – que atinge a todos os cidadãos e não apenas aos mais vulneráveis.

Lado outro, nada impede a concessão destes mesmos benefícios fiscais direcionados aos cidadãos e empresas efetivamente afetados pela crise, desde que realizado um levantamento de dados e estudo técnicos (que não precisa ser amplo, mas que deve atender a requisitos mínimos de transparência e confiabilidade) que visem demonstrar a viabilidade do procedimento em detrimento de ações propositivas, as quais são apontadas como mais eficazes, como a adoação de políticas públicas de assistência social, que podem se concretizar mediante a entrega de dinheiro, bens móveis, alimentação e, especialmente, a adoção de políticas públicas para a manutenção dos empregos, fator essencial à manutenção da vida digna dos cidadãos.

Não obstante o exposto, o Gestor Público pode, ainda, adotar mecanismos e benefícios tributários com idêntico objetivo (justiça tributária e social) de forma subsequente, isto é, uma análise a posteriori dos casos de inadimplemento dos impostos pelos cidadãos afetados pela crise. É o caso de adoção, após ampla análise dos afetados e determinação do quantum que o Municipio pode dispor para essa política fiscal, da adoção de anistia ou mesmo remissão de impostos aos cidadãos mais afetados pela presente crise econômica.

[1] A lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965, que regula a ação popular, dispõe expressamente sobre estes elementos.

[2] https://www.gov.br/economia/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/covid-19/timeline

[3] Importante destacar que as exigências e requisitos fiscais previstos na própria Constituição de 1988 e que não foram objeto de revisão ou interpretação pela decisão da ADI6357MC, continuam válidas em especial aquela prevista no art. 113, do ADCT.

Art. 113. A proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 95, de 2016).

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