Voz do Associado ter, 28 de junho de 2022
Compartilhe:

Por: José Eduardo Martins Cardozo,

Advogado e ex-Procurador do Município de São Paulo. Professor da PUC/SP, UniCEUB/DF e da ESPM/SP. Ex-Ministro de Estado da Justiça e Ex-Advogado Geral da União. Publicado no Informativo Fórum Nacional.

Vivemos dias turbulentos do ponto de vista político e institucional. E é natural que, em dias como esses, questões importantes passem despercebidas ou deixem de ser debatidas com a devida atenção e profundidade.

É exatamente por isso que gostaria aqui de, brevemente, chamar a atenção de todos os que se dedicam ao estudo do Direito e da Administração Pública para o exame da Lei federal n. 14.341, de 18 de maio de 2022, recentemente sancionada pelo Presidente Jair Bolsonaro.

A finalidade desse diploma legal é a de instituir e disciplinar uma nova espécie jurídica de entidade paraestatal, a “associação de representação de Municípios”. Para tanto, ao lado de outras providências, introduz estranhas alterações no nosso Código de Processo Civil que exigirão reflexões em relação à sua exegese e acerca das suas consequências jurídicas, éticas e práticas.

Definida como uma “pessoa jurídica de direito privado” (art. 2, I, “a”), as “associações de representação dos Municípios” terão diversas finalidades institucionais, dentre as quais a de “representar judicialmente os Municípios” (arts. 3, I, e 13, que altera o art. 75 do CPC), embora seja a elas vedada a utilização das prerrogativas de direito material e de direito processual” próprias dessas pessoas de direito público (art.12). Custeadas pelos cofres públicos dos seus associados (art. 7), essas entidades poderão contratar advogados, pelo regime da CLT e sem concurso público, ou, ainda, sem licitação, contratar pessoas jurídicas privadas para a prestação de serviços advocatícios. Para aperfeiçoarem esses vínculos contratuais precisarão apenas realizar meros “procedimentos simplificados” previstos em seus “regulamentos próprios” (art. 6).

Note-se que, para que o Município possa lançar mão dessa curiosa e anômala possibilidade de representação judicial, bastará que discricionariamente o seu Prefeito, sem a necessidade de obter prévia autorização legislativa da Câmara Municipal, determine a sua inclusão nessa nova espécie de entidade paraestatal (art. 8), bem como que decida, igualmente com ampla liberdade, a ela delegar essa possibilidade. (art. 3, V). Em outras palavras: o Prefeito, livremente, poderá determinar o ingresso do seu Município nessa associação, a ela delegando a possibilidade de que possa atuar em juízo representando os interesses públicos municipais nas causas judiciais que bem entender. Tudo isso, naturalmente, valendo-se do poder de ingerência decisória que possuirá nessa associação, decorrente do fato de que é ele quem determina o repasse dos recursos financeiros necessários ao seu custeio e de que ainda participará da escolha dos seus dirigentes. Terão os Prefeitos, desse modo, um grande poder de “influência” na escolha dos causídicos que serão escolhidos como os “mais apropriados” para patrocinar essas causas.

Tenho como evidente que a discussão acerca das obvias inconstitucionalidades dessa lei será, em breve, uma tarefa a que se dedicarão juristas, o Ministério Público e os nossos próprios Tribunais. Seguramente os seus dispositivos serão questionados e dificilmente deixarão de ser revistos pelo STF.

Todavia, uma das questões que mais me chama a atenção nesse momento é a evidente desfaçatez com que esse diploma legal visa a possibilitar a “ambicionada” privatização das causas judiciais de entes públicos. Por meio de uma manobra legislativa ardilosa, torna possível que se retire dos Procuradores Municipais a sadia exclusividade de atuarem na defesa da dos interesses municipais em juízo. Advogados escolhidos pela “Associação” e por aqueles que nela mandarem ou sobre ela tiverem influência, atuarão privadamente para a defesa dos interesses públicos municipais, recebendo polpudos honorários pagos pelo povo. Com isso, restará aberta a porta para eventuais conluios, falcatruas, desvios, perdas de prazos, acordos espúrios, uma vez que estarão afastados os “incômodos” controles administrativos e as “perigosas” responsabilidades funcionais dos servidores públicos. A saudável inviolabilidade constitucional dos advogados poderá então ser abusivamente utilizada para acobertar interesses pouco republicanos. O patrocínio de causas públicas, enfim, deixará de ser controlado eficazmente na qualidade da defesa técnica dos seus interesses, na estratégia jurídica a ser perseguida, e, em certa perspectiva, em relação à própria probidade que deve orientar o seu exercício. A coisa pública será atingida e os interesses da coletividade completamente desatendidos

Fica aqui então o alerta. A lei n. 14.341/2022 abriu as portas não apenas para graves violações constitucionais, mas para uma nova perspectiva de imoralidades e escândalos dos quais certamente nos envergonharemos no futuro. Atingirão primeiro os Municípios. Mas os mesmos caminhos poderão ser abertos para que, no futuro, sejam criadas também as “Associações de Estados”, ampliando-se o descalabro e os desastres que desse tipo de situação certamente advirão.

Compartilhe: