Por: Débora Sotto,
Procuradora do Município de São Paulo. Publicado pela Revista Direito da Cidade.
RESUMO
O abandono de imóveis é um fenômeno global com grande variação local quanto às suas causas, forma e intensidade. Nas grandes cidades brasileiras, o abandono de imóveis associa-se à decadência econômica dos centros históricos e atinge de maneira significativa as edificações tombadas. Nesse contexto, este estudo buscou analisar o instituto da arrecadação de imóveis abandonados sob o prisma do direito urbanístico, no intuito de identificar oportunidades de implementação orientadas pelos princípios da função social da propriedade e da cidade. Partindo da análise das normas gerais federais sobre a matéria, realizou-se um estudo de casos múltiplos, abrangendo 5 cidades brasileiras, selecionadas à razão de uma capital de Estado por região, de modo a compor um panorama do tratamento jurídico conferido à arrecadação por abandono pelos Municípios brasileiros. Os resultados apontaram que as recentes alterações no regime jurídico da arrecadação por abandono, orientadas mais a finalidades econômicas, acabaram por estimular a regulamentação do instituto em âmbito local, mas de maneira orientada à concretização de objetivos de política urbana. Conclui-se que avanços futuros poderão ser obtidos por meio da maior coordenação entre a arrecadação por abandono e o parcelamento, edificação e utilização compulsórios de imóveis ociosos, dada a complementaridade dos dois instrumentos.
Palavras-chave: arrecadação de imóveis abandonados; função social da propriedade; política urbana; propriedade imobiliária urbana; requalificação urbana
The collection of abandoned properties in Brazilian municipalities: opportunities, challenges, and perspectives.
ABSTRACT
Property abandonment is a global phenomenon whose causes, spatial presentation and intensity vary greatly from city to city. In large Brazilian cities, the abandonment of properties is associated with the economic decline of historic centres and significantly affects historical heritage. In this context, this study aimed to analyse the collection of abandoned properties under the prism of urban law, to identify opportunities for implementation guided by the principles of progressive property and the social function of the city. Taking the analysis of the national general rules on the matter as a starting point, we carried out a multiple case study covering 5 Brazilian cities, selected on the ratio of a state capital per region, to set up an overview of the recent municipal regulations on the collection of abandoned property. The results showed that the recent legal regime changes made by the Federal Union, mostly oriented towards economic purposes, ended up stimulating Municipalities to regulate the collection of abandoned properties as an urban policy tool, oriented to the achievement of urban development objectives. We conclude that future advances can be obtained by integrating the collection of abandoned property with the notification for compulsory parcelling, building and use of idle urban properties, as both legal tools are essentially complementary.
Keywords: collection of abandoned properties; social function of property; urban policy; urban property; urban requalification
Imóveis urbanos abandonados, ou seja, desocupados, em desuso e desprovidos de medidas mínimas de conservação, são uma ocorrência comum em cidades de todo o mundo. Entretanto, de localidade para localidade, há significativas variações não só quanto às causas mas também quanto à forma e à intensidade com que esse fenômeno urbano se apresenta. As causas do abandono de imóveis urbanos são diversas e complexas (Newman et al, 2018 – p. 7). Decorrem, principalmente, da situação econômica e social e das dinâmicas da estruturação do território urbano e do mercado imobiliário. Os efeitos observados são diversos: degradação da paisagem urbana, riscos para a saúde pública pela acumulação de lixo e multiplicação de vetores como insetos e roedores, aumento da insegurança e violência e prejuízos à preservação do patrimônio histórico e cultural.
Na Europa, nos anos 1990, a literatura consagrou a expressão shrinking cities, ou “cidades que encolhem”, para descrever o esvaziamento populacional e o abandono de edificações em cidades da antiga Alemanha Oriental, após o processo de reunificação do país (Bontje, 2004 – p. 14; SHeTcke e Haase, 2008 – P. 484 - 485). Ao final dos anos 2000, o abandono de imóveis ganhou contornos de fenômeno mundial, ligado à crise financeira de 2007 (Crump et al, 2008 – p. 769).
Cunhou-se na literatura o termo urban blight, ou praga urbana, expressão complexa e com múltiplas dimensões, utilizada sobretudo em cidades estadunidenses para descrever desde o lixo acumulado em terrenos baldios até estruturas dilapidadas e casas abandonadas, gerando riscos de saúde pública e violência urbana (De Leon e Schilling, 2017 – p. 11-13; Stern e Lester, 2021 – p. 3). A expressão descreve, sobretudo, o efeito “contaminante” que imóveis degradados produzem em sua vizinhança, desvalorizando os imóveis do entorno e desencorajando os proprietários a investir na sua manutenção e recuperação (Cotelo e Moita, 2018 – p. 9).
As chamadas legacy cities, antigas potências industriais e centros de negócios, varejo e serviços, espalhadas pela Nova Inglaterra, Meio-Atlântico e Meio-Oeste dos Estados Unidos, vêm perdendo empregos e população por uma série de fatores socioeconômicos conjugados, ligados à saída ou fechamento de indústrias e a migração regional e fuga das elites para subúrbios (Mallach e Brachman, 2013). A espiral de empobrecimento levou à redução do mercado imobiliário e à diminuição de preços dos imóveis, culminando com o abandono das propriedades, residenciais e comerciais, em quadras e por vezes setores inteiros (Hackworth, 2014 – p. 3).
Em resposta, as administrações municipais, bastante abaladas em sua capacidade de investimento pela drástica perda de arrecadação, têm investido em um modelo de planejamento pautado pelo “não-crescimento”, do qual a cidade de Youngstown foi a pioneira (Rhodes e RusseL, 2013 – p. 309). Esse modelo de planejamento, denominado pelos círculos acadêmicos de smart-shrinkage (encolhimento inteligente) ou smart-decline (declínio inteligente), propõe uma importante alteração de paradigma, desvinculando o desenvolvimento urbano de um ideal de crescimento ou expansão ininterrupta. Não obstante, tem sido bastante criticado, não só pelo risco de reforçar estigmas territoriais, mas também pelos impactos negativos produzidos sobre as comunidades mais pobres e de minorias étnicas (Audirac, 2018 – p. 7).
Detroit, no estado de Michigan, antigo centro da indústria automobilística e sede da gravadora Motown, ganhou grande destaque na mídia com suas impressionantes imagens de decadência urbana, com edifícios residenciais e comerciais abandonados e em ruínas (Fraser, 2018 – p. 3). Com uma dívida acumulada de cerca de 20 bilhões de dólares americanos, a cidade declarou falência no ano de 2013, sofrendo intervenção do governo estadual até 2014.
Em 2015, Detroit aderiu ao programa City of Design da UNESCO (Arnaud, 2017), investindo em ações de renovação urbana na área central e em bairros ocupados por millenials, pautada por ações no campo das artes, entretenimento e turismo. A inauguração de uma linha de bonde, a Qline, na Woodward Avenue, uma das principais avenidas da cidade, tornou-se um símbolo da reconstrução de Detroit. O processo de renovação urbana, orientado pelo Plano Detroit Future City, fortemente pautado pelo conceito de não-crescimento (Schindler, 2016- p. 831) tem sido bastante criticado por promover a gentrificação dos bairros ocupados pela população mais pobre, de negros e imigrantes (Safransky, 2014 – p. 238; Doucet, 2020 – p. 11).
Outras cidades como Flint, também no estado de Michigan, têm investido em greening programs, ou “programas de ecologização”, para combater e mitigar o urban blight (Carlet et al, 2017; Frazier e Bagchi-Sen, 2015). Dado o processo de empobrecimento e diminuição populacional, a destinação dos imóveis abandonados a atividades residenciais e comerciais mostra-se muitas vezes inviável, sobretudo nas cidades menores. Assim, o governo reúne os imóveis abandonados, arrecadados em execuções, em bancos de terras, que por sua vez repassam os imóveis a entidades comunitárias. Estas entidades implementam os chamados greening programs em conjuntos de lotes vazios, desenvolvendo ações de manutenção, limpeza, paisagismo e agricultura urbana como forma de remediar a degradação urbana, valorizar a paisagem, ampliar espaços de lazer e fortalecer a comunidade local (Morckel, 2017; Sadler e Pruett, 2017).
No Brasil, o abandono de imóveis também ocorre, embora não na escala observada nas cidades da antiga Alemanha Oriental ou nas legacy cities estadunidenses. Não há dados nacionais atualizados sobre imóveis vazios nas cidades brasileiras desde o levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE no Censo Populacional de 2010, que estimava em 6,07 milhões o número de domicílios vagos, incluindo aqueles ainda em construção (Konchinsky, 2010)[1]. Imóveis vazios e em más condições de conservação podem ser encontrados na maioria das grandes e médias cidades brasileiras[2], sobretudo nos seus centros históricos.
A decadência econômica das áreas centrais das cidades brasileiras, ainda que originalmente bem servidas de infraestrutura e serviços urbanos, ocorre em função do deslocamento da residência das classes sociais mais abastadas e das atividades produtivas de ponta para outras áreas do território urbano, o que conduz à desmobilização dos investimentos do poder público municipal na manutenção dos espaços públicos e à progressiva desvalorização do estoque imobiliário existente (Rolnik, 2006; Villaça, 2011; Bernardino e Lacerda, 2015).
Pela sua importância histórica e cultural, os centros históricos concentram um maior número de imóveis tombados do que outras regiões da cidade, imóveis estes especialmente vulneráveis à degradação e ao abandono (DO NASCIMENTO et al, 2019 – p. 122 a 123). A perda de interesse dos proprietários em razão das limitações de aproveitamento decorrentes do tombamento, os altos custos de atualização para adaptação a novos usos (Finger e Cella, 2020 – p. 30; COTELO – p. 622), a falta de fiscalização efetiva pelos órgãos de preservação (Losnak e Lopes, 2015 – p. 245) e a desarticulação entre a política de preservação e o planejamento urbano (Azcona e Zanirato, 2005; Cymbalista e Cardoso, 2014), são alguns dos fatores que concorrem para a maior vulnerabilidade das edificações tombadas ao abandono e à subutilização.
Apesar das suas fragilidades e vulnerabilidades e ainda que apresentem uma densidade populacional menor do que potencialmente poderiam comportar, os centros históricos são territórios multifacetados e povoados. A poucos metros de áreas degradadas e de fato esvaziadas, estendem-se quadras dotadas de peculiar dinamismo e atividade, ocupadas por negócios populares vibrantes e residências formais de classe baixa e média baixa.
Apesar da sua realidade complexa, a qualificação uniforme dos centros históricos das cidades brasileiras como vazios urbanos é veiculada pelos discursos oficiais no intuito de legitimar a implementação de projetos de requalificação urbana ou, em outros termos “grandes projetos urbanos” (VANIN, 2020 - p. 13 e 14), dado o “elevado potencial de valorização” dessas áreas (DE OLIVEIRA, 2013 – p. 162).
Nesses territórios, coloca-se em disputa o direito à cidade, compreendido como o poder de moldar os processos de urbanização, ou de influenciar os modos como as cidades se fazem e se refazem (HARVEY, 2012 - p. 5). Assim, em garantia do direito a cidades sustentáveis, consagrado pelo artigo 2º, inciso I do Estatuto da Cidade, qualquer intervenção do Poder Público local deverá necessariamente envolver “os atores sociais historicamente excluídos, no processo de deliberação e implementação em uma eventual política pública” (HERMANY e GIACOBBO, 2018 – p. 830).
Nos centros históricos, parte dos imóveis acaba inserida no mercado imobiliário informal, na forma de pensões e cortiços, ou ocupada por movimentos sociais de moradia. Como explica ABRAMO (2007 – p. 42), em áreas urbanas consolidadas, o mercado informal “causa uma precarização do habitat popular com o aumento de densidade (predial e domiciliar) e verticalização com todas as implicações nos indicadores de habitabilidade (escassez de ar, sol, etc.)”. Ou seja, a compartimentação de espaços internos e máxima exploração do espaço disponível gera formas densas de ocupação, com condições de habitabilidade bastante precárias.
Outra parte dos imóveis localizados nas áreas centrais permanece desocupada, à espera de oportunidades de investimento, sujeitando-se, se presentes os requisitos legais, à incidência da notificação para utilização compulsória por descumprimento da função social da propriedade. Apenas uma porção muito pequena dos imóveis totalmente desocupados caracteriza propriamente a renúncia aos poderes inerentes ao domínio pelos seus proprietários, característica de típico abandono, e portanto, passível de arrecadação pelos Municípios.
Nesse contexto, este breve estudo objetiva explorar o instituto da arrecadação de imóveis abandonados sob o prisma do direito urbanístico, no intuito de identificar alternativas que orientem a sua aplicação em favor das funções sociais da propriedade e da cidade. Para tanto, partindo da análise das normas gerais que configuram o regime jurídico básico do instrumento, contidas no Código Civil Brasileiro de 2002 e na Lei Federal nº 13.465/2017, realizou-se um estudo de casos múltiplos abrangendo cinco cidades brasileiras, todas capitais de Estado, selecionadas à razão de uma por região, para construir um panorama do tratamento jurídico conferido à arrecadação por abandono pelos Municípios brasileiros e, ao final, apontar algumas vias possíveis para o aprimoramento da aplicação do instrumento.
2.1. Pressupostos
A compreensão do regime jurídico da arrecadação de imóveis por abandono demanda o exame de alguns pressupostos atinentes ao regime jurídico da propriedade imobiliária urbana, que no Brasil tem fundamento constitucional.
A propriedade é contemplada pela Constituição Federal de 1988 como um direito fundamental de primeira geração (artigo 5º, inciso XXII), garantido na medida em que atenda a sua função social (inciso XXIII). A propriedade privada, assim como a função social da propriedade, também é prevista pelo texto constitucional como princípio da Ordem Econômica (CF/88, artigo 170, incisos II e III), destinando-se, desse modo, a assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social (artigo 170, caput).
A função social da propriedade não limita, mas antes confere fundamento jurídico ao próprio direito de propriedade, qualificando juridicamente os modos de aquisição, uso e gozo dos bens, de maneira que a propriedade não só concede direitos ao seu titular mas também lhe impõe obrigações positivas e negativas, voltadas à realização do bem comum (Silva, 2010 - p. 74).
Entre as diferentes espécies de propriedade trazidas pela Constituição da República, a propriedade imobiliária urbana possui um regime jurídico-constitucional próprio, consubstanciado nos artigos 182 e 183 da Carta Constitucional, pelo qual o cumprimento da sua função social se dá quando atendidas as exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor, instrumento básico de execução da política de desenvolvimento urbano no Brasil.
Nesse contexto, a manutenção de um imóvel urbano sem uso, apesar de localizado em área provida de infraestrutura e serviços urbanos, ou seja, a chamada “retenção em especulação”, constitui uma violação ao princípio da função social da propriedade, sendo facultado ao Município coibi-la por meio do manejo dos instrumentos constitucionais previstos no artigo 182, §4º da Constituição da República, comumente conhecidos sob o acrônimo PEUC - parcelamento, edificação ou utilização compulsórios (Denaldi et al, 2017 – p. 173). Como afirma BAZOLLI (2016 – p. 1259), a especulação imobiliária derivada da retenção fundiária “objetiva a valorização viciosa do imóvel e, em regra, é provocadora dos vazios urbanos nas regiões centrais das cidades”.
Segundo as normas gerais fixadas pelo Estatuto da Cidade no seu artigo 5º e seguintes, lei municipal específica para área incluída no plano diretor poderá determinar o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios de imóveis não edificados, subutilizados ou não utilizados, devendo fixar as condições e prazos para implementação da referida obrigação. Em linhas bastante gerais, se o proprietário, uma vez notificado, mantém-se inerte, passa a incidir o Imposto Predial e Territorial Urbano progressivo no tempo, sendo facultado ao Município, após o prazo de cinco anos de tributação progressiva, proceder à desapropriação-sanção do imóvel notificado.
A não-utilização e a não-construção que ensejam a incidência do PEUC são ocorrências próximas ao abandono, mas não são totalmente coincidentes. Na retenção especulativa de imóveis urbanos não-utilizados ou não-construídos, o proprietário do imóvel adota ativamente as medidas necessárias a manter o imóvel na ausência da posse de outrem, à espera de uma oportunidade de investimento. No abandono, o imóvel mantém-se em desuso, vazio, como uma expressão do desejo do proprietário de não mais conservar e manter a coisa sob o seu domínio (Fernandes e Queiroz, 2019 – p. 14). Assim, abandonado o imóvel, a sua não-ocupação decorre de fatos alheios à vontade ou à intenção do proprietário, como por exemplo a vigilância de vizinhos ou a atuação das forças de segurança pública.
2.2. A arrecadação por abandono como instituto de direito civil
Diversamente do PEUC, que possui estatura constitucional e natureza jurídico-urbanística desde a sua origem, a arrecadação por abandono surge no ordenamento jurídico brasileiro como um instituto de direito civil, voltado a regular o destino dos imóveis que configurem res derelictae, ou bens vagos, abandonados pelo seu dono (Feloniuk, 2019 – p. 109 a 110), reservando-os ao domínio municipal como forma de privilegiar o interesse público sobre o interesse privado na destinação desses bens, mas sem conectá-los explicitamente a objetivos de política urbana.
De acordo com o Código Civil Brasileiro de 2002, o abandono é uma forma de perda da propriedade, que se aplica tanto a imóveis urbanos quanto a imóveis rurais (artigo 1275, inciso III). Segundo o artigo 1276, o imóvel urbano que o proprietário abandonar, com a intenção de não mais o conservar em seu patrimônio e que se não encontrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade do Município em que está localizado, ou à do Distrito Federal. O Código Civil Brasileiro de 1916 já contemplava o abandono como forma de perda da propriedade (artigo 520, inciso II) e modo de extinção do domínio (artigo 589, inciso III). Entretanto, fixava o prazo de 10 anos para que o imóvel arrecadado como bem vago passasse ao domínio do Estado, ou da União Federal, se localizado no Distrito Federal ou em território não constituído em Estado.
Como observam BUSCAR e PIRES (2019, p. 322 e 323), a destinação dos bens vagos ao Município e não mais ao Estado alinha-se ao princípio da função social da propriedade, pois objetiva promover o “retorno das riquezas à comunidade próxima, de onde o ex-titular extraiu sua economia”. O Código Civil de 2002 estabelece, ainda, a presunção absoluta de abandono para o caso em que, cessados os atos de posse, o proprietário deixar de satisfazer os ônus fiscais. Ou seja, neste caso, presume-se verdadeira a ocorrência do abandono, por ficção legal, desconsiderando-se qualquer prova em contrário quanto à vontade ou a intenção do proprietário.
O abandono não deve ser confundido com o instituto da herança vacante. Segundo o artigo 1822 do Código Civil de 2002, a herança vacante não é forma de perda de propriedade, mas sim modo de transmissão dos bens da herança ao domínio do Município ou Distrito Federal, uma vez decorridos cinco anos da abertura da sucessão sem que quaisquer herdeiros tenham se apresentado. Na vigência do Código Civil de 1916, a herança vacante passava à propriedade dos Estados, ou da União Federal, entes aos quais também incumbia a arrecadação por abandono. Assim, com a edição do Código Civil de 2002, os Municípios tiveram de se organizar e gerar mecanismos de governança para absorver tanto a administração da herança vacante quanto a arrecadação por abandono na gestão do patrimônio imobiliário municipal.
2.3. A arrecadação por abandono como instrumento de política urbana
O regime jurídico da arrecadação por abandono foi substancialmente alterado pelo advento da Lei Federal nº 13.465/2017, que o enumerou como um dos institutos jurídicos a serem aplicados no âmbito da regularização fundiária.
Fruto da conversão em lei da Medida Provisória nº 759/2016, a chamada Lei da REURB ocupou-se principalmente da regularização fundiária de imóveis urbanos e rurais, privilegiando a titulação da propriedade privada e sua inserção no mercado imobiliário e de capitais (Alfonsin et al, 2019 – p. 187 a 188), em detrimento da regularização fundiária plena dos assentamentos informais, preconizada pelo Estatuto da Cidade e proposta até o momento pela Lei Federal nº 11.977/2009 (HERMANY e VANIN – p. 507 e seguintes).
Nessa mesma linha, no que tange à arrecadação por abandono, a lei federal acentuou o potencial arrecadatório de tributos municipais do instrumento, embora também tenha aberto possibilidades de aproximação a objetivos de política urbana pela via oblíqua da destinação dos imóveis arrecadados.
Partindo da base jurídica proporcionada pelo Código Civil de 2002, a Lei da REURB estabeleceu, em seu artigo 64, §2º, as bases do procedimento da arrecadação por abandono, com quatro fases essenciais, a serem oportunamente detalhadas pelos Municípios por meio de regulamento: abertura de processo administrativo; notificação dos proprietários, com prazo de trinta dias para impugnação, presumindo-se a sua concordância com a arrecadação em função do seu silêncio; arrecadação do bem abandonado, podendo o Município iniciar imediatamente os investimentos necessários para a destinação do imóvel, que passa, finalmente, ao domínio municipal ao final de um período de 3 anos.
O proprietário que comparecer antes do término do prazo de 3 anos pode retomar o imóvel, sob a condição de ressarcimento integral ao Município das despesas incorridas e quitação dos tributos incidentes no período. Com isso, a Lei da REURB criou uma espécie de direito de arrependimento para o proprietário, não prevista no Código Civil de 2002, e que privilegia o manejo do instituto como ferramenta arrecadatória de tributos, mais do que instrumento indutor da função social da propriedade.
A Lei da REURB também alterou os requisitos para aplicação da presunção da intenção de abandono. Condicionou a configuração da cessação dos atos de posse pelo inadimplemento dos ônus fiscais instituídos sobre a propriedade predial e territorial urbana à decorrência de um prazo mínimo de 5 anos (artigo 64, §1º). Esse prazo mínimo de 5 anos posterga sobremaneira a arrecadação do imóvel e tem o efeito colateral de possibilitar a sua sobreposição com o PEUC, como demonstra-se a seguir.
Tome-se, por exemplo, um imóvel vazio, com débitos acumulados de IPTU há menos de 5 anos, para o qual foi expedida a notificação para construção ou utilização compulsória da propriedade por descumprimento da sua função social. Suponha-se que, no curso de aplicação dos instrumentos do PEUC, já na fase de cobrança do IPTU progressivo no tempo, a Administração Municipal constate que o imóvel, que permanece vazio e sem uso, não acusa o pagamento dos ônus fiscais há 5 anos. Neste caso, não faz sentido prosseguir com a cobrança do IPTU progressivo no tempo para, no futuro, proceder à desapropriação-sanção. Deve o Município converter ou redirecionar o procedimento administrativo para formalizar a arrecadação do imóvel por abandono e possibilitar a imediata destinação do imóvel notificado ao cumprimento da sua função social.
Ocorre que as normas gerais, trazidas tanto pela Lei da REURB para a arrecadação por abandono, quanto pelo Estatuto da Cidade para o PEUC, não vislumbraram essa possibilidade. Apesar do seu caráter eminentemente complementar, os dois instrumentos receberam tratamento jurídico estanque. Cabe assim aos Municípios, atentos a essa complementaridade, promover a integração dos dois instrumentos, prevendo na legislação municipal específica soluções procedimentais que permitam e facilitem uma transição expedita do PEUC para a arrecadação por abandono, como medida de eficiência e salvaguarda do devido processo legal.
Por fim, o artigo 65 da Lei da REURB elencou possíveis destinações dos imóveis arrecadados por abandono, conforme o interesse do Município ou do Distrito Federal: programas habitacionais, prestação de serviços públicos, fomento da regularização fundiária urbana de interesse social (REURB-S) ou concessão de direito real de uso a entidades civis que comprovadamente tenham fins filantrópicos, assistenciais, educativos, esportivos ou outros. Trata-se de rol meramente exemplificativo, não taxativo.
Considerando o princípio da autonomia municipal (CF, art. 34, inciso VII, c) e a competência privativa dos Municípios para legislar sobre assuntos de interesse local (CF, art. 30, inciso I), incumbe exclusivamente aos Municípios deliberar quanto à destinação de imóveis integrantes do seu patrimônio. Entretanto, há outra justificativa para o caráter exemplificativo do rol de destinações apontado pelo artigo 65. Ao indicar possíveis destinações para os imóveis arrecadados por abandono, a Lei da REURB adentrou matéria típica de direito urbanístico, de competência concorrente dos entes federativos (CF, art. 24, inciso I e art. 30, inciso II), diferenciando-se das normas jurídicas veiculadas pelo artigo 64 da mesma lei, estas sim de natureza civilista e portanto de competência privativa da União Federal (CF, art. 22, inciso I).
Desse modo, há que se reconhecer que os Municípios não estão limitados às finalidades indicadas pela Lei da REURB, pois são competentes para eleger outras possíveis destinações para os imóveis arrecadados por abandono, articulando-as com os objetivos de política urbana indicados por seus respectivos Planos Diretores e demais leis urbanísticas, em cumprimento ao princípio da função social da propriedade, que também alcança os imóveis públicos (Rocha, 2005). A questão é de suma importância, pois é pela via da destinação dos imóveis arrecadados que a arrecadação por abandono ganha força de típico instrumento de política urbana (Jardim et al, 2020 – p. 22), aproximando-se de outros mecanismos, previstos no Estatuto da Cidade, voltados à aquisição de terras para finalidades urbanísticas, tais como o direito de preempção, a transferência do direito de construir com doação e a desapropriação.
Para melhor examinar o instituto da arrecadação por abandono, realizou-se um breve levantamento da legislação específica sobre a arrecadação de imóveis abandonados em cinco Municípios, todos capitais de Estado, com Planos Diretores adequados ao Estatuto da Cidade, selecionados à razão de um por região do país, o que nos permitiu construir um panorama aproximado do estágio de implementação do instrumento nas cidades brasileiras de maior porte.
Considerando essas premissas, foram selecionadas: na região Centro-oeste, a cidade de Cuiabá, capital do Estado de Mato Grosso; na região Norte, a cidade de Manaus, capital do Estado do Amazonas; na região Sul, a cidade de Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul; na região Nordeste, a cidade de Salvador, capital do Estado da Bahia e, por fim, na região Sudeste, a cidade de São Paulo, capital do Estado de São Paulo.
A análise restringiu-se apenas ao aspecto formal, de regulação, pois em todas as cidades investigadas faltam indicadores oficiais, tanto quanto ao número e localização de imóveis abandonados, quanto à implementação do instrumento. A coleta de legislação foi realizada no mês de novembro de 2020, abrangendo, assim, a regulamentação editada até este período.
3.1. Cuiabá
O Plano Diretor de Cuiabá, aprovado pela Lei Complementar nº 150, de 29 de janeiro de 2007, não trata da arrecadação por abandono. Estudo realizado por MASCARO e TORRES (2019) identificou 96 imóveis vazios entre o total de 527 imóveis existentes no polígono do tombamento do centro antigo, tombado pelo IPHAN em 2012. O Município regulamentou o instrumento da arrecadação de imóveis abandonados por meio da Lei Municipal nº 6.425/2019, seguindo as normas gerais postas pela Lei da REURB mas postergando ao máximo possível a imissão do Município na posse dos imóveis arrecadados, como se verá a seguir.
Segundo a regulamentação municipal, o procedimento para apuração do abandono de imóveis pode ser iniciado de ofício ou mediante o recebimento de denúncia. Após a realização de diligências e mediante o oferecimento de um relatório circunstanciado, constatado o abandono, determina-se a abertura do pertinente processo administrativo, seguida da publicação de um Decreto de Arrecadação, dando-se ao titular do imóvel a oportunidade de apresentar defesa e realizar provas em contrário. Com o silêncio do titular ou indeferimento da defesa, o imóvel passa à guarda do Município, devendo assim ser conservado pelo prazo de 3 anos.
Diversamente do que dispõem o Código Civil e a Lei da REURB, somente após o esgotamento deste período de 3 anos, sem que o proprietário compareça a reivindicar o imóvel, procede-se à imissão do Município na posse do imóvel, seguida pela regularização do domínio junto ao Registro Imobiliário pela Procuradoria Municipal e, por fim, destinação a uma das finalidades previstas na lei municipal: prioritariamente, utilização em programas habitacionais ou para a prestação de serviços públicos e, alternativamente, a concessão do direito real de uso a entidades civis com fins filantrópicos, assistenciais, educativos e esportivos.
3.2. Manaus
Manaus, a antiga metrópole da borracha, teve seu centro histórico tombado no ano de 2012 pelo IPHAN, com cerca de dois mil imóveis abrangidos no perímetro, incluindo o Porto de Manaus. A importância da preservação do patrimônio edilício da cidade foi reconhecida pelo seu Plano Diretor, aprovado pela Lei Complementar nº 2, de 16 de janeiro de 2014, o qual prevê a arrecadação de bem tombado abandonado como uma das medidas voltadas a proteger os bens que integram o patrimônio cultural urbano, nos moldes de legislação específica ainda pendente de edição pelo Município.
Não obstante, um número expressivo de edificações encontra-se em situação de abandono na cidade de Manaus, o que motivou a instauração de um Inquérito Civil pela Promotoria de Justiça Especializada na Proteção e Defesa da Ordem Urbanística de Manaus no ano de 2012. Constatou-se no referido inquérito a existência de ao menos 60 imóveis abandonados na cidade, que estariam oferecendo ameaças à segurança e à saúde pública. As ações adotadas pela Municipalidade restringiam-se à imposição de multas e demais penalidades administrativas em razão das más condições de conservação dos imóveis, sem avançar para o manejo dos instrumentos indutores da função social da propriedade ou da arrecadação por abandono, em que pese ambos estivessem contemplados em seu Plano Diretor.
A ação civil pública ajuizada contra o Município de Manaus pela Promotoria de Justiça em 2016, distribuída sob nº 0621190-23.2016.8.04.0001, veio a ser julgada procedente em primeira instância no ano de 2018 (Ministério Público do AmazonaS, 2018). Em sede de cumprimento provisório de sentença, pendentes de julgamento os recursos de apelação e de ofício em 2ª instância, o Município de Manaus foi intimado, em junho de 2020, a arrecadar 12 imóveis abandonados apontados em relatório datado de 2019 como bens vagos, além de proceder à cobrança do IPTU progressivo no tempo sobre os imóveis urbanos não edificados, subutilizados ou não utilizados listados no mesmo relatório. Embora ainda não transitada em julgado, a ação civil pública em referência é um precedente importante, que deve acelerar a implementação dos instrumentos de política urbana indutores da função social da propriedade na cidade de Manaus.
3.3. Porto Alegre
O Plano Diretor de Porto Alegre, aprovado pela Lei Complementar nº 434/1999, não contempla disposições sobre a arrecadação por abandono. Não obstante, o Município foi um dos primeiros no país a regulamentar a arrecadação de imóveis urbanos, como medida auxiliar à cobrança da dívida ativa municipal, por meio da edição do Parecer da Procuradoria do Município nº 1175 no ano de 2012. Referido parecer autorizou a aplicação direta das disposições do Código Civil de 2002, independentemente da edição de lei ou regulamentos municipais específicos.
Atualmente, vige no Município o Decreto nº 19.622, de 28/12/2016, atualizado em 2019, que regulamentou o procedimento administrativo para arrecadação de imóveis urbanos abandonados de acordo com as normas gerais postas pela Lei da REURB. O procedimento inicia-se de ofício ou por meio de denúncia, atuando-se o pertinente processo administrativo para realização de diligências de instrução, inclusive fotográficas. Constatada a cessação dos atos de posse e a inadimplência de ônus fiscais, o proprietário constante do cadastro de contribuintes é notificado para impugnar a pretensão de arrecadação do Município em 30 dias. Com o silêncio do proprietário ou indeferimento da impugnação, é expedida uma Declaração Municipal de Vacância de Imóvel Abandonado, publicada no Diário Oficial do Município e em um jornal de grande circulação.
O imóvel é imitido na posse do Município pela Procuradoria Geral e disponibilizado para imediata destinação entre uma das seguintes possibilidades: instalação de equipamentos públicos, concessão de direito real de uso para habitação social, renovação, requalificação e revitalização de área urbana ou consórcio imobiliário. Com o término do prazo de 3 anos contados da arrecadação sem o comparecimento dos proprietários, cabe à Procuradoria do Município providenciar a transferência da propriedade ao domínio municipal junto ao Registro de Imóveis. A regulamentação municipal autoriza, ainda, a alienação do imóvel arrecadado a particulares, nos termos da lei de licitações, caso nenhuma das formas de utilização direta seja viável ou conveniente ao Município.
A análise e condução do processo administrativo ficam a cargo da Comissão de Análise e Gerenciamento dos Imóveis Abandonados - CAGIM, integrada por um procurador municipal, um servidor da Fazenda, dois arquitetos da secretaria de planejamento urbano e um servidor do departamento municipal de habitação. Segundo notícia publicada no site da Procuradoria do Município de Porto Alegre (Denardin e Mendonça, 2019), desde a instauração da CAGIM no ano de 2017, já foram analisados cerca de 50 processos de abandono de imóveis, sendo que apenas um reunia os requisitos do abandono, tendo sido instaurado o procedimento para arrecadação.
3.4. Salvador
A cidade de Salvador, antiga capital do Brasil colonial, enfrenta problemas significativos com imóveis vazios. Estudo publicado por MACHADO et al (2020) com base em dados do Censo do IBGE de 2010 estima em 77.852 o total de imóveis vazios na cidade, concentrados principalmente na orla marítima e no subúrbio ferroviário da cidade. Na década de 1990, o Governo do Estado da Bahia desapropriou os imóveis abandonados, alguns deles já em ruínas, localizados no bairro do Pelourinho, no contexto do programa de requalificação do centro histórico de Salvador, classificado como Patrimônio Cultural da Humanidade em 1985 pela UNESCO.
A requalificação urbanística do Pelourinho se deu mediante a remoção forçada da população residente, preta e pobre, para outras áreas da cidade, assumindo o Governo do Estado a administração de todo o perímetro, dedicando-o quase que exclusivamente a atividades turísticas (AZCONA e ZANIRATO, 2005 - p. 162). A resistência das comunidades residentes no centro histórico de Salvador só encontrou algum amparo institucional após a edição do Estatuto da Cidade, por meio da atuação dos movimentos sociais e do Ministério Público Estadual (Gledhill e Hilda, 2018 – p. 52 a 53).
O Plano Diretor de Salvador, aprovado pela Lei Municipal nº 9.069, de 30 de junho de 2016, não trata da arrecadação por abandono. O Município editou a Lei Municipal nº 8.553 de 2014, dispondo sobre a arrecadação e a encampação de imóveis urbanos abandonados na cidade, alterada em 2019 pela Lei Municipal nº 9438/2019 e regulamentada pelo Decreto Municipal nº 25.922/2015.
O procedimento da arrecadação de imóveis abandonados em Salvador apresenta várias peculiaridades em relação ao disposto pela Lei da REURB, uma vez que o legislador optou por qualificar o abandono de imóveis como uma infração administrativa municipal. Consequentemente, o procedimento administrativo para a arrecadação por abandono adquire contornos de típico processo sancionatório, inaugurado pela lavratura de um Auto de Infração, seguido da publicação de um Decreto de Arrecadação, ingressando o imóvel imediatamente na posse do Município. O proprietário é comunicado, pessoalmente ou por meio de edital, sendo-lhe concedido o prazo de 10 dias para manifestação. Após três anos na posse do Município sem reivindicação pelos proprietários, dá-se a encampação do imóvel, que passa assim ao domínio municipal.
A lei municipal também inovou ao incluir o exercício dos poderes inerentes ao domínio em desacordo com a sua finalidade econômica e social entre os elementos que caracterizam a perda de poder inerente à propriedade, juntamente ao não-uso deliberado, não percepção dos frutos e não realização de obras de conservação.
Outra novidade trazida pela lei municipal foi a expressa previsão da irreversibilidade da arrecadação do imóvel pelo Município se destinado para finalidade que o torne instrumento de política urbana. Neste caso, ainda que o proprietário se apresente dentro do prazo de 3 anos contados da imissão do Município na posse do imóvel, fará jus tão somente a compensação financeira, descontadas despesas, multas e tributos municipais. Tal previsão, que encontra fundamento jurídico de validade no princípio da função social da propriedade e na prevalência do interesse público sobre o privado, reforça o caráter sancionatório conferido ao instituto do abandono, e só se sustenta formalmente por ter sido veiculada por lei em sentido estrito.
Por fim, a lei de Salvador aponta como destinações prioritárias para os imóveis arrecadados: a sua utilização em programas habitacionais, para a prestação de serviços públicos e para o fomento ao turismo. Alternativamente, caso inviáveis as destinações prioritárias, a lei municipal autoriza a concessão do direito real de uso do imóvel arrecadado a entidades civis com fins filantrópicos, assistenciais, educativos ou esportivos, que tenham por princípio a autogestão, a solidariedade, o reconhecimento e a valorização dos saberes tradicionais.
3.5. São Paulo
A requalificação urbanística do centro antigo da maior e mais rica cidade do país tem sido objeto de debates e de iniciativas frustradas há muitas décadas. A subutilização e abandono de imóveis no centro histórico de São Paulo, bem como a tensão entre as pretensões do mercado imobiliário, do Poder Público e dos movimentos sociais de moradia, é questão amplamente documentada e debatida por diversos estudos (v.g. Alves, 2011; Kara-José, 2007; Martins, 2011; Nakano e Rolnik, 2004; Nobre, 2009; Villaça, 2011).
Nesse contexto, o Plano Diretor de São Paulo, aprovado pela Lei Municipal nº 16.050, de 31 de julho de 2014, inclui expressamente a arrecadação de bens imóveis abandonados entre os instrumentos de política urbana indutores da função social da propriedade, juntamente com o PEUC e o direito de preempção. Consequentemente, o próprio Plano Diretor elencou como hipóteses de destinação prioritária dos imóveis arrecadados: os programas de habitações de interesse social, de regularização fundiária, a instalação de equipamentos públicos sociais ou quaisquer outras finalidades urbanísticas. Alternativamente, se constatada a impossibilidade de destinação a uma das finalidades prioritárias, em razão das características do imóvel ou por inviabilidade econômica e financeira, o Plano Diretor autorizou, como em Porto Alegre, a alienação do imóvel a particulares, destinando porém o proveito da venda ao Fundo Municipal de Habitação para a aquisição de terrenos e glebas.
O Plano Diretor detalhou as circunstâncias que autorizam a arrecadação de um bem imóvel pelo Município como abandonado, a saber: encontrar-se vago, sem utilização e sem responsável pela sua manutenção, integridade limpeza e segurança; o proprietário não tiver mais a intenção de conservá-lo em seu patrimônio; não estar na posse de outrem; e, cessados os atos de posse, estar o proprietário inadimplente com o pagamento dos tributos municipais incidentes sobre a propriedade imóvel.
Tratou, ainda, do procedimento de arrecadação, a ser instaurado de ofício ou mediante denúncia, com a abertura do pertinente processo administrativo instruído com os seguintes documentos: certidão imobiliária atualizada, certidão positiva de existência de ônus fiscais municipais, outras provas do estado de abandono do imóvel, quando existentes, e cópias de ao menos 3 (três) notificações encaminhadas ao endereço do imóvel ou àquele constante da matrícula ou transcrição imobiliária.
Realizados atos de diligência e elaborado relatório circunstanciado contendo a descrição das condições do imóvel, o Plano Diretor de São Paulo, tal como a legislação de Salvador, determina a lavratura de um Auto de Infração, com a adoção subsequente de medidas administrativas de arrecadação e medidas judiciais para regularização do imóvel arrecadado junto ao Registro Imobiliário. Entretanto, não detalhou as medidas a serem adotadas após a lavratura do Auto de Infração, fazendo expressa referência à oportuna edição de um decreto regulamentador para este fim. Suas previsões, portanto, são desprovidas de aplicabilidade imediata, dependendo da edição de um regulamento para produzir amplamente seus efeitos.
Com a edição da Lei da REURB, parecer jurídico lavrado pela Procuradoria do Município no ano de 2020 reforçou a necessidade de edição de regulamento específico para implementação da arrecadação por abandono no Município[3]. Até a conclusão deste estudo (abril de 2021), o citado regulamento ainda havia sido editado, inviabilizando, para o momento, a implementação do instrumento na cidade de São Paulo.
A demora na regulamentação da arrecadação por abandono na cidade de São Paulo destoa dos significativos avanços promovidos pelo Município na implantação do PEUC. Embora os instrumentos indutores da função social da propriedade já tivessem sido contemplados pelo Plano Diretor Estratégico de 2002 e regulamentados pela Lei Municipal nº 15.234/2010, só foram efetivamente aplicados na cidade de São Paulo com a edição do Plano Diretor de 2014 e do Decreto Municipal nº 55.638/2014. Segundo dados oficiais da Prefeitura (SMDU, 2020), já foram notificados para cumprimento da função social os proprietários de 1.746 imóveis. Destes, 501 imóveis já se encontram em fase de cobrança de IPTU progressivo no tempo, 362 apresentaram projetos e 163 cumpriram integralmente as obrigações.
Entre as ações programadas para o ano de 2021 pela Coordenadoria de Controle da Função Social da Propriedade da atual Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento (SMDU, 2020), foi incluída a avaliação dos imóveis com dívida ativa, a fim de estudar a aplicação de instrumentos urbanísticos como a dação em pagamento e a arrecadação por abandono, bem como a integração do consórcio imobiliário e da arrecadação por abandono ao PIU-Setor Central[4], um projeto urbanístico dedicado à qualificação do centro histórico de São Paulo e perímetros adjacentes, focado nos incentivos à habitação, ainda pendente de aprovação na Câmara Municipal de São Paulo.
3.6. Balanço crítico dos resultados observados nos cinco Municípios selecionados
Para viabilizar a comparação entre as legislações dos Municípios investigados, consolidou-se- na tabela abaixo uma matriz comparativa, estruturada com os seguintes temas centrais de análise: (1) base jurídica do instrumento; (2) procedimento; (3) destinação do imóvel arrecadado; e (4) conexão com o PEUC.
Arrecadação por abandono |
Cuiabá - MT |
Manaus - AM |
Porto Alegre - RS |
Salvador - BA |
São Paulo - SP |
1. Base jurídica do instrumento |
|||||
1.1. Previsão no Plano Diretor? |
não |
Sim |
não |
não |
sim |
1.2. Legislação adaptada à Lei da REURB? |
sim - lei em sentido estrito |
Não |
sim - decreto |
sim - lei em sentido estrito |
não |
2. Procedimento |
|||||
2.1. Lavratura de Auto de Infração? |
não |
nada consta |
não |
sim |
sim |
2.2. Imissão na Posse |
3 após a arrecadação |
nada consta |
após a Declaração Municipal de Vacância |
após o Decreto de Arrecadação |
nada consta |
3. Destinação do imóvel arrecadado |
|||||
3.1. Hipóteses de destinação prioritária |
|||||
3.1.1. Habitação |
programas habitacionais |
nada consta |
concessão de direito real de uso para habitação social |
programas habitacionais |
programas de habitação de interesse social e regularização fundiária |
3.1.2. Serviços e equipamentos públicos |
serviços públicos |
nada consta |
equipamentos públicos |
prestação de serviços públicos e fomento ao turismo |
instalação de equipamentos públicos sociais |
3.1.3. Finalidades urbanísticas |
não |
nada consta |
renovação, requalificação e revitalização de área urbana ou consórcio imobiliário |
não |
quaisquer outras finalidades urbanísticas |
3.2. Hipóteses de destinação alternativa |
|||||
3.2.1. Concessão de direito real de uso a entidades civis com fins filantrópicos, assistenciais, educativos e esportivos por meio de concessão de direito real de uso |
sim |
nada consta |
não |
sim |
não |
3.3. Admissibilidade da venda do imóvel arrecadado a particulares |
não |
nada consta |
sim, mediante licitação |
não |
sim, produto da venda destinado ao Fundo Municipal de Habitação para compra de terrenos e glebas |
3.4. Irreversibilidade da transferência da posse do imóvel ao Município |
não |
não |
não |
sim, quando utilizado como instrumento de política urbana |
não |
4. Conexão explícita com preservação do patrimônio? |
não |
sim (Plano Diretor) |
não |
sim (via fomento ao turismo) |
não |
5. Coordenação com o PEUC |
|||||
5.1. Legislação municipal específica sobre o PEUC? |
sim |
não |
não |
sim |
não |
5.2. Transição procedimental PEUC/abandono? |
não |
não |
não |
não |
não |
Tabela 1. Comparação da regulamentação da arrecadação por abandono em Cuiabá, Manaus, Porto Alegre, Salvador e São Paulo.
No que tange à base jurídica do instrumento, verificou-se que apenas os Planos Diretores de Manaus e de São Paulo contemplam expressamente a arrecadação por abandono como instrumento de política urbana. No caso de Manaus, o Plano Diretor alinhou a aplicação do instrumento à política de preservação do patrimônio histórico e cultural da cidade, enquanto em São Paulo, o Plano Diretor conferiu à arrecadação por abandono o status de instrumento indutor da função social da propriedade.
Coincidentemente, os mesmos Municípios foram os únicos a não editar legislação adaptando o procedimento da arrecadação por abandono às normas gerais postas pela Lei da REURB, sendo que, em ambas as cidades, a omissão traz como consequência direta a não-implementação do instrumento. Em Manaus, essa omissão levou à responsabilização judicial da Administração Municipal. Quanto às demais cidades investigadas, verificou-se que Cuiabá e Salvador aprovaram leis específicas para a arrecadação por abandono, enquanto Porto Alegre optou por editar um decreto municipal tratando da matéria.
São Paulo e Salvador conferiram ao procedimento da arrecadação por abandono um caráter sancionatório, caracterizando o abandono de imóvel como infração administrativa, documentada por um Auto de Infração. Em Cuiabá e Porto Alegre, constatada a situação de abandono, expede-se ao proprietário uma simples notificação, tal como especificado na Lei da REURB. As normas das quatro cidades conferem ao proprietário do imóvel a oportunidade de ofertar impugnação e produzir provas, em obediência aos princípios constitucionais do devido processo legal, ampla defesa e contraditório.
Seguindo a norma geral posta pela Lei da REURB, Salvador e Porto Alegre preveem a imissão do Município na posse do imóvel imediatamente após a publicação do ato administrativo que formaliza a vacância, ato este, em ambas as cidades, de competência do Prefeito. Em Salvador, este ato administrativo é designado como “decreto municipal de arrecadação” e em Porto Alegre, “declaração municipal de vacância”.
Cumpre ressaltar, quanto a esse aspecto, que Cuiabá não seguiu o fluxo procedimental traçado pela Lei da REURB, pois só autoriza a imissão do Município na posse do imóvel decorridos 3 anos da publicação do decreto de arrecadação. Nesse ínterim, o imóvel arrecadado permanece, tão somente, sob a guarda do Município, o que impõe custos e complicações de ordem prática que, em última análise, postergam injustificadamente a devida destinação do bem.
O terceiro aspecto analisado na matriz proposta diz respeito à destinação do imóvel arrecadado. Este é o ponto chave de conexão do instrumento com a política de desenvolvimento urbano. Como já se ponderou acima, o rol de possíveis destinações posto pela Lei da REURB não é taxativo, mas meramente exemplificativo.
Considerando o que prescreve o artigo 182, §2º da Constituição da República, cada Município deve eleger para os imóveis arrecadados por abandono as destinações que melhor se coadunem com as “exigências fundamentais de ordenação da cidade” apontadas por seu respectivo Plano Diretor. Um possível parâmetro adicional, para tanto, é dado pelo artigo 26 do Estatuto da Cidade, que elenca as atividades a serem financiadas com os imóveis obtidos por meio do direito de preempção e com os recursos amealhados pela outorga onerosa do direito de construir[5]. Observe-se, nesse ponto, que com a exceção da destinação alternativa a entidades civis sem fins lucrativos, as finalidades apontadas pela Lei da REURB são coincidentes com algumas das destinações apontadas pelo Estatuto da Cidade.
À exceção de Manaus, que nada dispôs sobre a destinação dos imóveis arrecadados, todos os Municípios analisados elegeram como hipóteses de destinação preferencial a aplicação em programas habitacionais, em serviços ou em equipamentos públicos. Salvador, especificamente, acresceu às finalidades possíveis a destinação a atividades turísticas e inovou a Lei da REURB, determinando a irreversibilidade da transferência da posse do imóvel ao Município sempre que este passar a ser utilizado como “instrumento de política urbana”, ou seja, for afetado a qualquer uma das destinações apontadas pela lei municipal como prioritárias.
Apenas Porto Alegre e São Paulo autorizaram a destinação de bens arrecadados por abandono para finalidades urbanísticas; São Paulo, de maneira ampla, e Porto Alegre, indicando a aplicação em projetos de renovação, requalificação e revitalização de área urbana ou consórcio imobiliário, em alinhamento ao novo regime jurídico trazido para o consórcio imobiliário pelo artigo 79 da Lei Federal nº 13.465/2017.
Como destinação alternativa, se inviável o aproveitamento do imóvel em alguma das hipóteses de destinação prioritária, Cuiabá e Salvador seguiram a norma geral da Lei da REURB, facultando a concessão de direito real de uso a entidades civis com fins filantrópicos, assistenciais, educativos e esportivos. Porto Alegre e São Paulo optaram, nesse caso, por facultar a venda do imóvel a terceiros, mediante licitação. Adicionalmente, São Paulo indicou a destinação dos recursos arrecadados com a venda do bem imóvel para o Fundo Municipal de Habitação, com aplicação específica na compra de terrenos e glebas para fins habitacionais.
Considerando a maior vulnerabilidade de imóveis tombados ao abandono, apenas dois dos cinco Municípios pesquisados buscaram conectar o instrumento da arrecadação por abandono à política de preservação do patrimônio histórico e cultural. Manaus contemplou a arrecadação de imóveis tombados abandonados de maneira expressa em seu Plano Diretor. Salvador, por sua vez, incluiu entre as hipóteses de destinação prioritária dos bens arrecadados a aplicação a atividades turísticas, levando em conta o valor histórico e paisagístico de sua arquitetura colonial.
O último elemento de comparação abarcado na matriz de análise foi a coordenação entre a arrecadação de imóveis abandonados e o PEUC. Dos cinco Municípios pesquisados, apenas Cuiabá e São Paulo editaram leis municipais específicas para implementação do PEUC em seus territórios (Denaldi et al, 2015). Infelizmente, nenhum desses Municípios contemplou mecanismos de integração entre os dois instrumentos em sua legislação, embora documento técnico da Prefeitura de São Paulo (SMDU, 2020), citado no item anterior, sinalize futuras ações administrativas no sentido de direcionar o monitoramento de imóveis em situação de descumprimento de sua função social para identificar também a ocorrência do abandono.
O abandono de imóveis é um fenômeno global, mas que apresenta importantes variações em âmbito local quanto às suas causas, forma e intensidade. Nas legacy cities estadunidenses, a conjugação de múltiplos fatores socioeconômicos conduziu ao abandono de propriedades em quadras e até setores inteiros, constituindo uma verdadeira “praga urbana”. Nas grandes cidades brasileiras, o abandono de imóveis associa-se à decadência econômica dos centros históricos e atinge de maneira significativa as edificações tombadas pelos órgãos de preservação do patrimônio histórico e cultural. Em ambos os países, Brasil e Estados Unidos, os imóveis abandonados são expressões importantes da segregação socioespacial urbana, da crise da moradia e das gritantes desigualdades sociais e econômicas das cidades.
As cidades estadunidenses respondem ao fenômeno dos imóveis vagos por meio de planos de renovação urbana pautados pelo “decrescimento”, com enxugamento da infraestrutura ociosa e destinação das propriedades abandonadas a outros usos. As cidades brasileiras, por sua vez, discutem a requalificação urbanística de seus centros históricos e avançam lentamente na implementação dos instrumentos indutores da função social da propriedade.
Apesar das diferenças, as questões que se colocam quanto às áreas urbanas degradadas em cidades brasileiras e estadunidenses são essencialmente as mesmas: quais são os interesses que orientam os projetos de requalificação urbanística dos chamados “vazios urbanos”? As intervenções propostas incluem ou excluem os segmentos populacionais vulneráveis? Os chamados “vazios urbanos” são, inegavelmente, territórios em disputa e no centro desta disputa está o direito à cidade.
A breve análise realizada neste estudo buscou explorar a aplicabilidade da arrecadação por abandono como instrumento de política urbana, ou seja, voltado à concretização da função social da propriedade e à realização da garantia do direito à cidade sustentável, preceitos fundamentais do direito urbanístico brasileiro.
Apesar da alarmante ausência de indicadores atualizados sobre o tema, é possível intuir que a porcentagem de imóveis efetivamente abandonados pelos seus proprietários é, proporcionalmente, bastante reduzida em relação ao total de imóveis ociosos. Não obstante, juntamente com o PEUC, a arrecadação de imóveis abandonados não só pode como deve atuar como um elemento facilitador de projetos de requalificação urbanística que promovam a inclusão social e a melhoria da qualidade de vida urbana.
Nesse sentido, é indispensável que as cidades mapeiem os imóveis urbanos vazios ou subutilizados e elejam indicadores e padrões de monitoramento contínuo, no intuito não só de remediar mas também de prevenir a degradação de áreas urbanas.
Os resultados do estudo de casos múltiplos realizado indicam que a Lei da REURB visa, principalmente, forçar a devolução dos imóveis abandonados à cadeia de circulação econômica pela via da coleta de tributos em aberto. Não obstante, quiçá à revelia dos seus idealizadores, a Lei da REURB trouxe duas contribuições para o amadurecimento da arrecadação por abandono como instrumento urbanístico: (1) estimulou os Municípios a regulamentar a sua aplicação, e (2) apontou como destino preferencial dos imóveis arrecadados finalidades razoavelmente alinhadas às funções sociais da cidade, de acordo com a Constituição da República e o Estatuto da Cidade.
O tratamento jurídico conferido à arrecadação por abandono pelas cinco cidades investigadas neste estudo confirmou a natureza exemplificativa do rol de destinações posto pela Lei da REURB. Cabe, portanto, a cada Município eleger as destinações prioritárias e alternativas que melhor se coadunem com os objetivos de desenvolvimento urbano apontados por seus respectivos Planos Diretores.
Nesse sentido, é preciso ir além dos preceitos tradicionais de gestão do patrimônio imobiliário municipal, para empregar à destinação dos imóveis arrecadados um caráter efetivamente indutor da função social da propriedade e da cidade. Idealmente, a destinação dos imóveis arrecadados deve dar-se no contexto de programas ou projetos de intervenção inclusivos, que integrem políticas municipais e acionem parcerias com o setor privado e a sociedade civil organizada, aí compreendidos os movimentos sociais de moradia.
Cada uma das cinco cidades contempladas neste estudo - Cuiabá, Manaus, Porto Alegre, Salvador e São Paulo - a seu modo e com diferentes graus de evolução normativa, buscou conectar o instrumento da arrecadação por abandono com outras políticas públicas municipais, de acordo com as peculiaridades necessidades locais. Destacam-se, a esse respeito, a política habitacional de interesse social e a preservação do patrimônio histórico e cultural.
Por fim, constatou-se que há espaço significativo para aperfeiçoamentos no que diz respeito à integração entre arrecadação por abandono e o PEUC. É primordial que os Municípios atentem para a complementaridade entre o PEUC e a arrecadação por abandono, prevendo na legislação municipal específica soluções procedimentais que facilitem a integração entre os dois instrumentos.
Tais soluções deverão abranger a coleta de dados em cadastros unificados (tributário, sanitário, edilício) e a orientação das diligências fiscalizatórias a discernir entre situações de não-utilização, não-construção e abandono. Também é necessário prever medidas que facilitem uma transição expedita do PEUC para a arrecadação por abandono quando, na fluência da aplicação dos instrumentos indutores da função social da propriedade, for completado o quinquênio de inadimplência de ônus fiscais.
Os resultados apurados neste estudo indicaram que nenhum dos Municípios investigados promoveu, até o momento, essa desejável coordenação entre o PEUC e a arrecadação por abandono, seja a nível institucional, seja a nível regulamentar. Apenas São Paulo acena com a possibilidade de futuros encaminhamentos nesse campo, mas a iniciativa é ainda bastante incipiente. Há, portanto, muito o que se avançar no aperfeiçoamento do regime jurídico de ambos os instrumentos, dada a sua evidente, embora ainda inexplorada, complementaridade.
ABRAMO, Pedro. A cidade COM-FUSA: a mão inoxidável do mercado e a produção da estrutura urbana nas grandes metrópoles latino-americanas. Revista Brasileira de estudos urbanos e regionais, v. 9, n. 2, p. 25-25, 2007.
ALVES, Glória da Anunciação. A requalificação do centro de São Paulo. Estudos Avançados, v. 25, n. 71, p. 109-118, 2011.
ARNAUD, Michel. Detroit: The dream is now: The design, art, and resurgence of an American city. Abrams, 2017.
AUDIRAC, Ivonne. Shrinking cities: An unfit term for American urban policy? Cities, v. 75, p. 12-19, 2018.
AZCONA, Emilio Luque; ZANIRATO, Sílvia Helena. Gestão do património cultural: políticas de intervenção no Nordeste do Brasil e Andaluzia. Estudos Ibero-Americanos, v. 31, n. 2, 2005.
BAZOLLI, João Aparecido. Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsórios (PEUC): avaliação e resultados da aplicação em Palmas-TO. Revista de Direito da Cidade, v. 8, n. 4, p. 1254-1276, 2016.
BERNARDINO, Iana Ludermir; LACERDA, Norma. Centros históricos brasileiros: tensões entre a obsolescência imobiliária e a construção de novas espacialidades. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 17, n. 1, p. 61-61, 2015.
BONTJE, Marco. Facing the challenge of shrinking cities in East Germany: The case of Leipzig. GeoJournal, v. 61, n. 1, p. 13-21, 2004.
BUCAR, Daniel; PIRES, Caio Ribeiro. Aquisição e titularidade das coisas vagas: tratamento sistemático e o papel institucional da Advocacia Pública. REI-Revista Estudos Institucionais, v. 5, n. 2, p. 317-337, 2019.
CARLET, Fanny; SCHILLING, Joseph; HECKERT, Megan. Greening US legacy cities: urban agriculture as a strategy for reclaiming vacant land. Agroecology and Sustainable Food Systems, v. 41, n. 8, p. 887-906, 2017.
CRUMP, Jeff et al. Cities destroyed (again) for cash: Forum on the US foreclosure crisis. Urban Geography, v. 29, n. 8, p. 745-784, 2008.
COTELO, Fernando Cardoso. Padrões espaciais de ociosidade imobiliária e o Programa Morar no Centro da Prefeitura de São Paulo (2001-2004). Cadernos Metrópole, v. 11, n. 22, 2009.
COTELO, Fernando Cardoso; MOITA, Rodrigo Y. Externalidades, coordenação e imóveis degradados em regiões centrais. Trabalho apresentado no 46º Encontro Nacional da Associação Nacional dos Centros de Pós-Graduação em Economia (Anpec). Rio de Janeiro, 2018.
CYMBALISTA, R.; CARDOSO, P. M. O Plano Diretor de Mariana-MG: a difícil articulação entre planejamento urbano, patrimônio histórico e atores políticos. Academia.edu. 2014.
DE LEON, Erwin; SCHILLING, Joseph. Urban Blight and Public Health: Addressing the Impact of Substandard Housing, Abandoned Buildings, and Vacant Lots. Research Report. Urban Institute, 2017.
DENALDI, R., et al. Série Pensando o Direito, nº 56: Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios e IPTU progressivo no tempo: regulamentação e aplicação. Brasília: Ministério da Justiça, 2015.
DENALDI, Rosana et al. A aplicação do Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios (PEUC). urbe, Rev. Bras. Gest. Urbana, Curitiba, v. 9, n. 2, p. 172-186, ago. 2017.
DE OLIVEIRA, Alberto. Os grandes projetos urbanos como estratégia de crescimento econômico. EURE (Santiago), v. 39, n. 117, p. 147-163, 2013.
DENARDIN, S. E MENDONÇA, L. Declaração de abandono de imóvel pode ser feita sem ação judicial. Procuradoria do Município de Porto Alegre. 2019. Disponível em: <http://www2.portoalegre.rs.gov.br/pgm/default.php?p_noticia=999204769&DECLARACAO+DE+IMOVEL+ABANDONADO+PODE+SER+FEITA+SEM+ACAO+JUDICIAL>. Acesso em 23/04/2021.
DO NASCIMENTO, Marcel Assis Batista et al. Mapeamento de imóveis históricos em estado de abandono: estudo em uma parte do centro comercial de Belém/PA. Anais do 2º Encontro de Cartografia da UFPA, Belém do Pará, p. 122 -126,6 a 9 mai. 2019.
DOUCET, Brian. Deconstructing dominant narratives of urban failure and gentrification in a racially unjust city: The case of Detroit. Tijdschrift voor economische en sociale geografie, v. 111, n. 4, p. 634-651, 2020.
FELONIUK, Wagner. Comentários à aplicação do art. 1.276 do Código Civil em âmbito municipal. Revista Do Ministério Público Do Rio Grande Do Sul, v. 2, n. 86, p. 99-118, 2019.
FERNANDES, Eduardo Faria; QUEIROZ, Marcelo. A Lei Brasileira de Incorporação de Imóveis Urbanos Abandonados: O Caso dos Imóveis Ocupados por Famílias Sem-Teto. Rev. Digital de Derecho Admin., v. 22, p. 9, 2019.
FINGER, Otávio Martins; CELLA, André Augusto. A (in) efetividade do instituto do tombamento como forma de preservação do patrimônio histórico e cultural brasileiro. Disciplinarum Scientia| Sociais Aplicadas, v. 16, n. 1, p. 17-39, 2020.
FRASER, Emma. Unbecoming place: Urban imaginaries in transition in Detroit. cultural geographies, v. 25, n. 3, p. 441-458, 2018.
FRAZIER, Amy E.; BAGCHI-SEN, Sharmistha. Developing open space networks in shrinking cities. Applied Geography, v. 59, p. 1-9, 2015.
GLEDHILL, John; HITA, Maria Gabriela. Requalificação urbana e despejos em centros novo e antigo de Salvador. Caderno CRH, v. 31, n. 82, p. 39-58, 2018.
HACKWORTH, Jason. The limits to market-based strategies for addressing land abandonment in shrinking American cities. Progress in Planning, v. 90, p. 1-37, 2014.
HARVEY, David. Rebel cities: From the right to the city to the urban revolution. Verso books, 2012.
HERMANY, Ricardo; GIACOBBO, Guilherme Estima. O município e o direito à cidade: políticas públicas tributárias e o enfrentamento da exclusão urbana no espaço local. Revista de Direito da Cidade, v. 10, n. 2, p. 806-833, 2018.
HERMANY, Ricardo; SCOPEL VANIN, Fábio. Análise crítica das mudanças promovidas pela Medida Provisória n. 759/2016 na regularização fundiária no Brasil. Revista de Direito da Cidade, v. 9, n. 2, p. 482-516, 2017.
JARDIM, Felipe; DE MELO ROCHA, Danielle; DE ALMEIDA SOUZA, Maria Ângela. Arrecadação de bem vago abandonado: estudo procedimental e panorama de efeitos. Revista de Direito da Cidade, v. 12, n. 2, p. 1-26, 2020.
KARA-JOSÉ, Beatriz. Políticas culturais e negócios urbanos: a instrumentalização da cultura na revalorização do centro de São Paulo (1975-2000). Annablume, 2007.
KONCHINSKY, V.. Número de casas vazias supera déficit habitacional brasileiro. Agência Brasil - Empresa de Comunicação. 11 dez. 2010. Disponível em: <https://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2010-12-11/numero-de-casas-vazias-supera-deficit-habitacional-brasileiro-indica-censo-2010>. Acesso em 23/04/2021.
LOSNAK, Sérgio Ricardo; LOPES, Camila Santos Doubek. Políticas públicas de preservação histórica: diagnóstico de risco dos imóveis tombados na cidade de Bauru/SP Brasil. Territorium, n. 22, p. 239-248, 2015.
MALLACH, A., & BRACHMAN, L. Regenerating America’s Legacy Cities. Cambridge, MA: Lincoln Institute of Land Policy, 2013.
MARTINS, Maria Lucia Refinetti. São Paulo, centro e periferia: a retórica ambiental e os limites da política urbana. Estudos Avançados, v. 25, n. 71, p. 59-72, 2011.
MASCARO, L., & TORRES, G. Ainda existem habitações no centro tombado de Cuiabá - MT? Anais do II Congresso Nacional Para Salvaguarda do Patrimônio Cultural, vol. 2, n. 1, p. 140–156, 2019.
MINISTÉRIO PÚBLICO DO AMAZONAS. Justiça atende MP-AM e Prefeitura de Manaus deverá resolver problema de imóveis abandonados. Notícias. Ministério Público do Amazonas, Procuradoria de Justiça, 2018. Disponível em: <https://www.mpam.mp.br/slides-noticias/10833-justica-atende-mp-am-e-prefeitura-de-manaus-devera-resolver-problema-de-imoveis-abandonados>. Acesso em 29 abr. 2021.
MORCKEL, Victoria. Using suitability analysis to select and prioritize naturalization efforts in legacy cities: An example from Flint, Michigan. Urban Forestry & Urban Greening, v. 27, p. 343-351, 2017.
NAKANO, Kazuo; CAMPOS, Candido Malta; ROLNIK, Raquel. Dinâmicas dos subespaços da área central de São Paulo. Caminhos para o centro: estratégias de desenvolvimento para a região central de São Paulo. São Paulo: PMSP/Cebrap/CEM, p. 123-158, 2004.
NEWMAN, Galen et al. Vacant urban areas: Causes and interconnected factors. Cities, v. 72, p. 421-429, 2018.
NOBRE, Eduardo Alberto Cusce. Políticas Urbanas para o Centro de São Paulo: renovação ou reabilitação? Avaliação das propostas da Prefeitura do Município de São Paulo de 1970 a 2004. Pós. Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP, n. 25, p. 214-231, 2009.
RHODES, James; RUSSO, John. Shrinking ‘smart’? Urban redevelopment and shrinkage in Youngstown, Ohio. Urban Geography, v. 34, n. 3, p. 305-326, 2013.
ROCHA, S. L. F. R. Função social da propriedade pública. São Paulo: Malheiros, 2005.
ROLNIK, Raquel. Um novo lugar para o velho centro. Cidades do Brasil. Minha Cidade, São Paulo, v. 6, n. 071.01, jun. 2006.
SADLER, Richard C.; PRUETT, Natalie K. Mitigating blight and building community pride in a legacy city: lessons learned from a land bank's clean and green programme. Community Development Journal, v. 52, n. 4, p. 591-610, 2017.
SAFRANSKY, Sara. Greening the urban frontier: Race, property, and resettlement in Detroit. Geoforum, v. 56, p. 237-248, 2014.
SCHETKE, Sophie; HAASE, Dagmar. Multi-criteria assessment of socio-environmental aspects in shrinking cities. Experiences from eastern Germany. Environmental Impact Assessment Review, v. 28, n. 7, p. 483-503, 2008.
SCHINDLER, Seth. Detroit after bankruptcy: A case of degrowth machine politics. Urban Studies, v. 53, n. 4, p. 818-836, 2016.
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 6ª edição. São Paulo: Malheiros, 2010.
STERN, Matthew; LESTER, T. William. Does Local Ownership of Vacant Land Reduce Crime? An Assessment of Chicago’s Large Lots Program. Journal of the American Planning Association, v. 87, n. 1, p. 73-84, 2021.
VANIN, Fábio Scopel. A política pública de intervenção urbanística e o regime jurídico dos grandes projetos urbanos: os limites e as possibilidades de inovação no exercício da competência municipal. Tese (Doutorado em Direito), Programa de Pós-Graduação em Direito - Mestrado e Doutorado. Universidade de Santa Cruz do Sul, 2020. Disponível em: <http://hdl.handle.net/11624/2909>. Acesso em 22/07/2021.
VILLAÇA, Flávio. São Paulo: segregação urbana e desigualdade. Estudos avançados, v. 25, n. 71, p. 37-58, 2011.
[1] O atraso na realização do novo Censo Populacional pelo IBGE, pendente desde 2020, é fato gravíssimo e comprometerá o monitoramento, controle e elaboração de políticas públicas em todo o país e em todos os âmbitos - federal, estadual e municipal.
[2] É certo que parte importante dos imóveis abandonados nas cidades brasileiras não são de propriedade particular, mas sim do Poder Público federal, estadual ou municipal. Imóveis públicos, embora também devam cumprir sua função social, sujeitam-se a um regime jurídico distinto dos imóveis particulares e não são passíveis de arrecadação por abandono, razão pela qual extrapolam o escopo de investigação deste estudo.
[3] Parecer Procuradoria Geral do Município - nº 83 de 11 de fevereiro de 2020. Legislação Municipal, 2020. Disponível em: <http://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/parecer-procuradoria-geral-do-municipio-pgm-83-de-11-de-fevereiro-de-2020>. Acesso em 18/04/2021.
[4] PIU Setor Central. Gestão Urbana, 2021. Disponível em: <https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/estruturacao-territorial/piu/piu-setor-central/>. Acesso em 23/04/2021.
[5] As destinações previstas no artigo 26 do Estatuto da Cidade são: regularização fundiária, execução de programas e projetos habitacionais de interesse social, constituição de reserva fundiária, ordenamento e direcionamento da expansão urbana, implantação de equipamentos urbanos e comunitários, criação de espaços públicos de lazer e áreas verdes, criação de unidades de conservação ou proteção de outras áreas de interesse ambiental e proteção de áreas de interesse histórico, cultural ou paisagístico.
Este é um espaço de debate e manifestação para os associados publicarem artigos. Os textos expressam a opinião de seus autores e não a posição institucional da ANPM.
Envie seu artigo para [email protected].