Por: Edcarlos Alves Lima,
Procurador do Município de Cotia. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2022), onde também possui o título de especialista em Direito Tributário (2012). Especialista em Gestão Pública pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (2013). L.L.M. em direito municipal da Católica Business School (UNICAP). Coordenador pedagógico e Professor do curso de direito das Faculdades Integradas Rio Branco Granja Vianna. Procurador-Chefe do Departamento de Consultoria Jurídica em Licitações, Contratos e Ajustes Congêneres, da Procuradoria Geral do Município de Cotia. Autor de artigos jurídicos, de capítulos de livros e autor do livro Inovação e Contratações Públicas Inteligentes, pela editora Fórum. Instrutor e palestrante na área de licitações e contratos. Parecerista da Revista da Defensoria Pública da União (DPU). Publicado pelo Jota no dia 25 de julho de 2025.
Proposta legislativa que cria o Sistema de Compra Instantânea (Cix) amplia as hipóteses de contratação direta, desloca a lógica da licitação e desafia os fundamentos constitucionais da seleção pública por competição.
Quando a exceção vira regra? Diante da proposta de criação do Sistema de Compra Instantânea (Cix), em tramitação no Congresso Nacional, impõe-se o questionamento sobre os contornos e limites da contratação direta no atual regime de compras públicas. Estaria o ordenamento jurídico brasileiro preparado para institucionalizar um modelo de aquisição imediata, sem disputa formal, ancorado em credenciamentos permanentes e catálogos padronizados?
É essa a promessa contida no Projeto de Lei nº 2.133/2023, que propõe a criação do Sistema de Compra Instantânea (Cix), a ser inserido na Lei nº 14.133/2021. A proposta legislativa visa estabelecer uma modalidade de contratação direta baseada em credenciamento permanente, operado por meio do Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), para aquisição de bens padronizados e recorrentes — como medicamentos, por exemplo — com entrega e pagamento em prazos reduzidos e previamente regulamentados.
À primeira vista, a ideia atrai: promover agilidade, reduzir custos administrativos, ampliar a competitividade e superar a lentidão — tantas vezes injustificável — dos processos licitatórios convencionais. A justificativa do projeto recorre a dados da CGU para indicar que, em boa parte das contratações públicas, os custos operacionais do pregão superam as economias obtidas pela disputa, frustrando o ideal de eficiência administrativa.
Mas, ao que parece, o PL 2.133/2023 não apenas tenta simplificar a compra pública. Ele sinaliza uma inflexão conceitual: a substituição do modelo de competição formalizada, centrado em ritos e etapas, por um sistema de mercado fluido, aberto e permanente — uma espécie de “marketplace estatal” estruturado com base em catálogos eletrônicos e regras de precificação automatizadas.
Esse modelo levanta diversas questões, ainda não enfrentadas com a devida profundidade no debate público. Como assegurar isonomia e impessoalidade em um ambiente de compras instantâneas? Que garantias de controle ex ante e ex post serão possíveis? Como evitar que o Cix se torne uma porta aberta para a captura dos padrões de padronização por grupos econômicos dominantes ou, ainda, para a manipulação algorítmica dos preços de referência?
Do ponto de vista jurídico, a proposta reforça uma tendência de expansão das hipóteses de contratação direta, ampliando o leque de exceções ao dever constitucional de licitar (art. 37, XXI, da CF). Embora o credenciamento não seja novidade no ordenamento, a configuração prevista no Projeto desloca sua natureza clássica — de procedimento aberto e não competitivo — para algo próximo de um sistema de compra por demanda, em tempo real, com suporte digital e operacionalização automatizada. Trata-se, pois, de uma mutação relevante na forma de contratar, cujo impacto exige mais do que adesão entusiástica.
Mais do que uma discussão técnica, o Cix nos obriga a revisitar os fundamentos do próprio dever de licitar. Se a finalidade da licitação é garantir a melhor contratação e o atendimento eficiente do interesse público, estariam as formas tradicionais — e a própria Lei nº 14.133/2021 — aptas a lidar com as demandas de um Estado mais ágil e responsivo?
Talvez o problema não esteja na existência do rito, mas na forma como ele tem sido concebido e executado: excessivamente burocrático, pouco responsivo e dissociado das reais necessidades da gestão pública. Não se trata de rejeitar os procedimentos — que são essenciais para assegurar impessoalidade e controle —, mas de reconhecer que os atuais modelos licitatórios ainda operam com baixa inteligência institucional. O desafio está em desenhar processos mais inteligentes, orientados por dados, alinhados ao planejamento e com foco em resultados, e não apenas em formalidades.
Por isso, a proposta legislativa precisa ser analisada com atenção não apenas aos seus potenciais ganhos de agilidade, mas também aos riscos de fragilização dos controles e das garantias constitucionais da contratação pública. Automatizar exceções não basta: é preciso construir uma governança transparente, com critérios padronizados, articulação federativa e mecanismos efetivos de responsabilização — sob pena de transformar inovação em fragilidade institucional.
A resposta à pergunta inicial não é simples. A compra pública pode, sim, ser mais célere, responsiva e digital. Mas para que seja instantânea — no sentido de eficaz e legítima — é preciso muito mais do que um sistema automatizado de credenciamento. É preciso um ecossistema de planejamento, controle e inovação institucional que leve o interesse público realmente a sério.
Antes de avançar no Congresso Nacional, o projeto que institui o Sistema de Compra Instantânea demanda uma escuta qualificada da academia, dos profissionais da Administração Pública e dos operadores do direito. O tema exige debate público, técnico e plural, para que os riscos institucionais não sejam subestimados em nome da promessa de agilidade. Porque, em tempos de excepcionalidades normativas, mais do que nunca, é preciso levar o interesse público realmente a sério.
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