Por: Lilian Oliveira de Azevedo Almeida,
Presidente da Associação Nacional das Procuradoras e dos Procuradores Municipais (ANPM).
Gustavo Machado Tavares,
Procurador do município do Recife e ex-presidente da Associação Nacional das Procuradoras e dos Procuradores Municipais (ANPM).
Cláudio Pereira de Souza Neto,
é professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e advogado da Associação Nacional das Procuradoras e dos Procuradores Municipais (ANPM). Artigo publicado pelo Conjur, no dia 14 de setembro.
Nos meses de abril e de agosto de 2024, o Supremo Tribunal Federal julgou duas importantes ações de controle concentrado de constitucionalidade que tratavam dos contornos e da densidade constitucional da Advocacia Pública Municipal.
A primeira delas — ADI 6.331/PE — foi ajuizada pela Procuradoria-Geral da República, a partir de representação de inconstitucionalidade formulada pela ANPM (Associação Nacional das Procuradoras e dos Procuradores Municipais) [1], em desfavor de dispositivos inseridos por emenda na Constituição de Pernambuco.
O texto constitucional pernambucano emendado autorizava a contratação de advogados privados para o exercício das mesmas atribuições dos procuradores municipais, sem considerar a existência, em muitos municípios, de procuradorias municipais já instituídas.
O Supremo Tribunal Federal, de forma unânime, julgou parcialmente procedente o pedido formulado na ADI 6.331/PE. Vejamos a ementa:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. (…) ART. 81-A DA CARTA ESTADUAL PERNAMBUCANA. INTERPRETAÇÃO QUE PERMITE OBRIGATORIEDADE DE INSTITUIÇÃO DE PROCURADORIA NOS MUNICÍPIOS. OFENSA À AUTONOMIA MUNICIPAL. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO. NORMA QUE PERMITE A CONTRATAÇÃO DE ADVOGADOS PARTICULARES PARA A EXECUÇÃO DE ATRIBUIÇÕES DO ÓRGÃO DE ADVOCACIA PÚBLICA. EXCEPCIONALIDADE. VIOLAÇÃO À REGRA CONSTITUCIONAL DO CONCURSO PÚBLICO. ARTS. 37, CAPUT E INCISO II, 131 E 132 DA CRFB/88. INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE PARCIALMENTE PROCEDENTE. 1. A instituição de Procuradorias municipais depende da escolha política autônoma de cada município, no exercício da prerrogativa de sua auto-organização. 2. É inconstitucional a interpretação de norma estadual que conduza à obrigatoriedade de implementação de Procuradorias municipais, eis que inexiste norma constitucional de reprodução obrigatória que vincule o poder legislativo municipal à criação de órgãos próprios de advocacia pública. Precedentes.
3. É materialmente inconstitucional dispositivo de Constituição Estadual que estabeleça a possibilidade de contratação direta e genérica de serviços de representação judicial e extrajudicial, por ferir a regra constitucional de concurso público.
4. Realizada a opção política municipal de instituição de órgão próprio de procuradoria, a composição de seu corpo técnico está vinculada à incidência das regras constitucionais, dentre as quais o inafastável dever de promoção de concurso público (artigo 37, inciso II, da Constituição Federal). 5. Ação direta de inconstitucionalidade cujo pedido se julga parcialmente procedente para: (i) conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 81-A, caput, da Constituição do Estado de Pernambuco, no sentido de que a instituição de Procuradorias municipais depende de escolha política autônoma de cada município, no exercício da prerrogativa de sua auto-organização, sem que essa obrigatoriedade derive automaticamente da previsão de normas estaduais; (ii) declarar a inconstitucionalidade do § 1º e do § 3º art. 81-A da Constituição do Estado de Pernambuco, tendo em vista que, feita a opção municipal pela criação de um corpo próprio de procuradores, a realização de concurso público é a única forma constitucionalmente possível de provimento desses cargos (art. 37, II, da CRFB/88), ressalvadas as situações excepcionais situações em que também à União, aos Estados e ao Distrito Federal pode ser possível a contratação de advogados externos, conforme os parâmetros reconhecidos pela jurisprudência desta Corte.” (ADI 6331, Relator LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 09-04-2024, DJe-s/n 25-04-2024).
Nessa ação de controle concentrado não estava em discussão se a capital do Amapá deveria ou não instituir a procuradoria. A decisão político-administrativa de institucionalizar a Procuradoria-Geral do Município de Macapá havia sido tomada desde 1998.
O que se discutia era a existência de lei municipal permitindo o exercício das atribuições de representação judicial e extrajudicial, assessoria e consultoria jurídicas por pessoas não ocupantes do cargo efetivo de procurador municipal.
O Pleno do STF, seguindo de forma unânime o voto do relator ministro Gilmar Mendes, julgou parcialmente procedente o pedido formulado na ADPF 1.037/AP. Segue a ementa:
Arguição de descumprimento de preceito fundamental. 2. Art. 43, V, §§ 4º e 5º, da Lei Complementar 136/2020, do Município de Macapá/AP. 3. Municípios não são obrigados a instituir Advocacia Pública Municipal. Liberdade de conformação. 4. Criada Procuradoria Municipal, há de observar-se a unicidade institucional. Exclusividade do exercício das funções de assessoramento e consultoria jurídica, bem assim de representação judicial e extrajudicial. Ressalvadas as hipóteses excepcionais, conforme a jurisprudência do STF. 5. Impossibilidade de ocupantes de cargos em comissão, estranhos ao quadro da Procuradoria-Geral do Município, exercerem as funções próprias dos Procuradores Municipais. 6. Parcial procedência do pedido. (ADPF 1037, Relator GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 19-08-2024, DJe-s/n 22-08-2024).
As decisões representaram a consolidação da jurisprudência do Supremo conferindo densidade constitucional às procuradorias já instituídas nas municipalidades.
Dois pontos importantes merecem ser ressaltados. Vejamos.
O primeiro: o STF já tinha estabelecido o entendimento de que a Constituição não determinava a instituição de procuradorias municipais, afirmando que os municípios poderiam conformar sua assessoria jurídica considerando as peculiaridades locais.
As decisões disponíveis no acervo jurisprudencial da Corte, porém, haviam sido proferidas pelas turmas, inexistindo precedente do plenário. Ademais, tais decisões reportavam ao precedente fixado no julgamento do RE 225.777/MG, o qual, porém, não havia tratado efetivamente da obrigatoriedade das procuradorias municipais.
O ponto é esclarecido por Gustavo Machado Tavares e Elisa Albuquerque Maranhão Rego [2]:
Explica-se. O mérito deste recurso extraordinário era a legitimidade ad causam do Ministério Público Estadual para ajuizamento de ação civil pública na defesa do patrimônio público, no caso: “a anulação de contrato de compra e venda de imóvel e a afirmação de pretenso direito ao ressarcimento de danos ao patrimônio público municipal”. A situação fática e jurídica envolvia a atuação do ex-gestor da Prefeitura de Viçosa. O Ministro Eros Grau, em trecho do seu voto, consignou:
“Em suma: o Ministério Público não é titular de legitimidade para pleitear a anulação de contratos administrativos considerados lesivos ao patrimônio público, onde não há direito ou interesse difuso. Insisto em que aí não se trata de direito ou interesses cujos titulares sejam pessoas indeterminadas”.
O Ministro Dias Toffoli, após pedido de vista, apresentou voto divergente entendendo pela legitimidade do Ministério Público, e em um dos pontos abordou foi a questão, de forma tangencial, do órgão da Advocacia Pública Municipal, como no trecho que se segue:
“Ressalte-se, em arremate, que a não previsão, na Constituição Federal, da obrigatória instituição da figura da advocacia pública no âmbito dos municípios brasileiros reforça, ainda mais, essa convicção, na medida em que muitos desses não contam com adequado serviço próprio de assessoria jurídica, o que torna imprescindível a atuação do Ministério Público, tal como se deu na hipótese em análise nestes autos”.
Ocorre que, apesar de esta posição refletir apenas e tão somente uma passagem isolada no corpo do voto em pedido de vista e explanada através de mero obter dictum, este julgado passou a ser referido dentro do próprio Supremo Tribunal Federal, seja através de suas Turmas, seja através de decisões monocráticas de seus Ministros, como “verdadeiro” precedente jurisprudencial da Corte, para fins de consignar a existência de (suposta) jurisprudência consolidada sobre a inexistência de obrigatoriedade constitucional quanto à implantação do órgão Procuradoria Municipal, incorrendo-se em graves distorções.
Perceba-se o argumento do Ministro Dias Toffoli, esposado em seu voto-vista no RE nº 225.777/MG, no sentido de que “a não previsão, na Constituição Federal, da obrigatória instituição da figura da advocacia pública no âmbito dos municípios brasileiros” não foi levantado na qualidade de fundamentos jurídicos que sustentavam a decisão. Ao revés, foi referido de forma tangencial ao mérito do julgado, representando apenas e tão somente mera análise periférica que não vincula juízes nem tribunais, nem, outrossim, consolida entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal. Em suma, é matéria qualificada como obiter dictum.
Entenda-se, não era ponto objeto da decisão, seja porque não constava como pedido, seja porque não constava como causa de pedir. Foi trazido pelo Ministro Dias Toffoli de forma lateral ao enfrentamento da questão da legitimidade ativa ad causam do Ministério Público para o ajuizamento de ação civil pública na defesa do patrimônio público municipal, sem maior aprofundamento. Tratava-se, portanto, de argumento obiter dictum e que, em realidade, fugia à discussão da causa.
Desta forma, enquanto argumento obter dictum, não foi sequer debatido pelos demais Ministros, assim como não foi objeto de discussão entre as partes envolvidas no processo.
Com o julgamento, agora há jurisprudência consolidada que, nada obstante reconheça a possibilidade de o município criar ou não procuradoria municipal, determina que, uma vez instituída a procuradoria municipal, ela deve seja composta por ocupantes de cargo efetivo de procurador. Vejamos abaixo essa última parte.
O segundo: a partir dos julgamentos tem-se que há apenas um único modelo constitucional de advocacia pública a ser observado pelos municípios — o desenho provido pelos artigos 131 e 132 da Constituição.
Instituída a advocacia pública municipal, (i) a contratação de advogados externos é excepcional, devendo seguir os critérios legais, justificando-se apenas quando for inadequada a prestação do serviço pelos integrantes do corpo próprio de procuradores; (ii) servidores comissionados não podem exercer as atribuições de representação judicial e extrajudicial, de assessoria e de consultoria jurídica.
Os julgados reforçam a densidade constitucional da advocacia pública municipal como função essencial à Justiça, enfatizando o já assentando no RE 663.696/MG, Tese 510 da Repercussão Geral (trecho do acórdão):
“os procuradores municipais integram a categoria da Advocacia Pública inserida pela Constituição da República dentre as cognominadas funções essenciais à Justiça, na medida em que também atuam para a preservação dos direitos fundamentais e do Estado de Direito.”
Estudos mostram que municípios que contam com Procuradorias estruturadas tendem a apresentar melhores IDH, IGM-CFA e IRGF-Firjan (I Diagnóstico da Advocacia Pública Municipal do Brasil, ed. Fórum, Herkenhoff & Prates, 2017).
A advocacia pública devidamente instituída é uma realidade em inúmeras cidades, em todas as capitais e em diversos municípios de grande, médio e mesmo de pequeno porte. E com a ADI e a APDF, o Supremo reconhece e valoriza os esforços realizados nos municípios que já estruturaram a advocacia pública, assegurando a sua continuidade e garantindo que o esforço de institucionalização municipal já empreendido não seja prejudicado.
A advocacia pública é especialmente responsável pela atribuição de maior segurança jurídica aos atos do poder público. Ao contar com o agir da advocacia pública municipal — seja na representação judicial e extrajudicial, seja na assessoria e consultoria jurídica —, as políticas públicas ganham em consistência, tornando-se juridicamente sustentáveis, o que propicia ao administrador público imprimir maior agilidade e eficiência na implementação e na concretização dos direitos fundamentais.
Preservam-se, assim, as procuradorias municipais já instituídas e, com isso, o interesse público, a segurança jurídica e a continuidade na gestão das políticas públicas locais. Essa estabilização, proporcionada pelo reconhecimento constitucional da Advocacia Pública Municipal, é o legado dos pronunciamentos do Supremo na ADI 6.331/PE e na ADPF 1.037/AP.
[1] A representação de inconstitucionalidade foi posteriormente transformada em artigo publicado na Revista Brasileira de Direito Municipal: REGO, Elisa Albuquerque Maranhão; TAVARES, Gustavo Machado. Emenda Constitucional nº 45 do Estado de Pernambuco: comprometimento da autonomia municipal e esvaziamento da memória jurídica de suas procuradorias. In: NERY, Cristiane da Costa; PRESTES, Vanêsca Buzelato (coords). Revista Brasileira de Direito Municipal, ano 20 -n. 73, julho/setembro. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2019.
[2] TAVARES, Gustavo Machado; REGO, Elisa Albuquerque Maranhão. Advocacia pública como função essencial à justiça e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 88-90.
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